Governar bem com a Constituição atual é quase inviável, avalia ex-presidente do TST

Em entrevista ao podcast da Rio Bravo, Almir Pazzionotto ainda comentou a  proposta de “lipoaspiração da Constituição“, com ideia de “retirar todos os excessos para reconstruir a harmonia entre os Poderes“

Lara Rizério

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SÃO PAULO – Como governar com a atual Constituição? Para Almir Pazzianotto, advogado, ex-ministro do Trabalho e ex-presidente do TST (Tribunal Superior do Trabalho), essa é uma tarefa impraticável. 

É o que o jurista apontou em entrevista ao Podcast Rio Bravo, em que analisou porque a administração com a Constituição atual não é viável. Os motivos são diversificados, mas passam pelo momento em que a Constituição foi elaborada, há mais ou menos 30 anos. Na avaliação de Pazzianotto, quatro elementos guiaram os trabalhos da Constituinte naquela ocasião: pela ordem, o ativismo das corporações, o ambiente revanchista, o predomínio da utopia e a ignorância da realidade. 

“Ao olharmos a relação dos integrantes da Assembleia Nacional Constituinte [naquela época], é muito difícil encontrar um constitucionalista. Na escolha dos integrantes, o povo não teve a preocupação de eleger constitucionalistas, preferindo, em vez disso, os candidatos com maior popularidade”. Almir Pazzianotto sugere que a mudança efetiva na Constituição Federal passa pela seleção de melhores quadros para o Congresso, mas é pessimista: “A sensação é de que cada legislatura é pior do que a anterior”.

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Na entrevista, ele comenta ainda a proposta de “lipoaspiração da Constituição”, conforme as palavras do ex-ministro do STF, Nelson Jobim. A ideia da proposta é “retirar todos os excessos para reconstruir a harmonia entre os Poderes”. 

Confira abaixo a entrevista: 

Rio Bravo: Por que a Constituição de 1988 faz com que governar seja impraticável?

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Almir Pazzianotto: Porque ela não é, a não ser formalmente, uma Constituição. Uma Constituição deve expressar um Estado verdadeiro. O Estado desenhado pelos constituintes em 1998 está em absoluto desacordo com a nossa realidade e com as nossas possibilidades presentes e futuras. É uma Constituição que encerra um vasto elenco de utopias, a começar pela presunção de que todos são iguais perante a lei, o que no Brasil não acontece. Nós somos um país que, historicamente, foi construído em cima das desigualdades. Há alguma coisa mais descabida do que o foro privilegiado? 

Rio Bravo: De acordo com os constitucionalistas, o foro privilegiado se justifica, inclusive dentro da perspectiva da Constituição de 1988.

Almir Pazzianotto: Sim, porque os constitucionalistas, de maneira geral, são privilegiados. Você não vai encontrar os constitucionalistas aqui em Paraisópolis, Heliópolis, no entorno de Brasília. A Constituição de 1988 não chega sequer a ser uma obra de constitucionalistas. Nós tivemos alguns constitucionalistas em nossa história, como Pontes de Miranda, João Barbalho, Rui Barbosa, o ex-ministro Carlos Maximiliano, Prado Kelly, Aliomar Baleeiro. Foram grandes constitucionalistas.

Hoje, ao olharmos a relação dos integrantes da Assembleia Nacional Constituinte é muito difícil encontrar um constitucionalista ou um renomado bacharel em Direito. Por quê? Na escolha dos integrantes, o povo não teve essa preocupação de eleger constitucionalistas. O povo elegeu, como sempre tem eleito, aqueles candidatos que gozam de maior popularidade e a popularidade nem sempre coincide com uma sólida formação intelectual, moral e jurídica. A Constituição de 1988, como eu digo em meu artigo, foi elaborada sem projeto ou ante-projeto. É como se quiséssemos construir um edifício de 35 andares ou uma casa térrea sem projeto, à base do palpite e da improvisação.

Ora, sem projeto como poderia ter nascido uma Constituição racional, organizada, bem estruturada? E esta é a oitava da nossa história. Nós tivemos a Carta Imperial de 1824, feita por determinação de Dom Pedro I, tivemos a Constituição de 1891, em grande parte da responsabilidade é Rui Barbosa, tivemos a Constituição de 1934, e a partir daí a qualidade já se torna um pouco discutível. Não só a qualidade como a vulnerabilidade.

A Constituição de 1824 teve uma emenda, a de 1891 sofreu uma emenda, a de 1934 teve uma duração muito rápida, porque logo foi abatida pelo golpe de 10 de novembro de 1937 e aí começam as emendas. A de 1967, dois anos depois, teve a emenda número 1, subscrita pelos três ministros militares que se alvoraram o papel de Assembleia Nacional Constituinte, e a de 1988, que, se não me falha a memória, tem 69 ou 79 emendas e que pode ser adquirida por 5 reais na livraria do Supremo Tribunal Federal. E isto nos coloca diante de um paradoxo interessante. O Supremo, que vende a Constituição, às vezes parece desconhecer a Constituição, quando ele é o guarda, por determinação constitucional, da própria Constituição.

Rio Bravo: Quais são os excessos que impedem efetivamente a harmonia entre os Poderes nessa ou de acordo com essa Constituição de 1988?

Almir Pazzianotto: São os homens. O excesso não nasce exatamente da Constituição porque ela é uma obra inerte. Ela é um livro que está aí para ser consultado, aplicado e interpretado. O melhor exemplo de Constituição interpretada é a norte-americana, por isso é que ela se conserva ao longo de mais de 200 anos. O papel do Supremo é interpretar a Constituição. Acontece que existe dentro da Constituição tanta matéria constitucional que torna-se praticamente impossível aos 11 ministros se debruçarem sobre cada processo com o necessário vagar para retirar uma interpretação lógica, racional e duradoura. Esse conflito, essa falta de harmonia entre os três Poderes, uma vez que o Executivo legisla por medidas provisórias e o Congresso altera a Constituição ao sabor da conveniência, do momento ou da necessidade ou da pressão política ou da compra de votos.

Entre os dois, o Supremo fica numa situação também extremamente difícil, é testado a todo instante sob quase que irresistível pressão de opinião pública, a qual ele se tornou muito vulnerável na medida em que as sessões do Supremo passaram a ser transmitidas como se fossem um show de auditório. Hoje, o Brasil tem uma quantidade inacreditável de constitucionalistas. Todo mundo hoje comenta a Constituição e interpreta a Constituição, às vezes sem tê-la aberto uma única vez, sem ter lido, porque não é simples. Não se pinça um texto. Sobretudo numa Constituição prolixa como a nossa, é preciso combinar os vários dispositivos que, direta ou indiretamente, tratam da mesma matéria.

Aparentemente, não há nada mais claro do que a disposição que diz “Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Aparentemente, é verdade, mas nós precisamos entender o porquê desse dispositivo e por que tanta celeuma em torno desse dispositivo.

Rio Bravo: Por que tanta celeuma em torno desse dispositivo, então?

Almir Pazzianotto: Porque anteriormente à Constituição de 1988 no processo penal só havia um recurso, que era o de apelação. Além da apelação, o réu condenado poderia recorrer à revisão, mas revisão, conforme ensinou Pontes de Miranda, não é recurso, é um remédio de caráter extraordinário utilizado pelo condenado mesmo após o cumprimento da pena. Não é um recurso, não está dentro da plataforma de recursos. Com a Constituição de 1988 foi criado um outro recurso, além da apelação. Foi criado o recurso especial. Por quê? Porque a Constituição criou o Superior Tribunal de Justiça como órgão de uniformização de jurisprudência dos Tribunais Estaduais de Justiça e o STJ recebe o chamado recurso especial ou REsp.

Então, da sentença de segundo grau, contra a qual anteriormente não havia recurso, proferida em apelação, hoje cabe um terceiro recurso. Ora, se há um terceiro recurso, não há o trânsito em julgado. Mas não é só o REsp, existe o embargo de declaração, existe o agravo de instrumento, enfim, nós somos especialistas em proliferação de recursos. Há uma família numerosa de recursos, então na interpretação de um dispositivo aparentemente simples precisa ser entendido o porquê.

Rio Bravo: O senhor também aponta que foram quatro os vetores que guiaram os trabalhos da Constituinte. Pela ordem, o ativismo das corporações, o ambiente revanchista, o predomínio da utopia e a ignorância da realidade. Onde é que esses vetores estão efetivamente visíveis na Constituição? O senhor conseguiria citar alguns exemplos para a gente?

Almir Pazzianotto: Vou me prender aos dois últimos. Quando ela diz, bem lá no início, “São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social (…) Salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender às suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim”.

Existe uma utopia mais gritante do que esse salário mínimo? E existe uma fuga maior à realidade? Olha o salário mínimo, menos de mil reais. Como é que vai atender à necessidade básica do cidadão e de sua família? Não importa se a família é a esposa, um filho, dois filhos, três filhos, cinco filhos, oito filhos e se ele ainda tem como dependentes a idosa mãe, o idoso pai e algum sobrinho que ficou órfão, de sorte que isto é uma agressão à realidade. Mas vou dar um outro exemplo, o tratamento dado pela Constituição à família. “A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado”, artigo 226. Tem? Eu posso ter me transformado num cético, mas eu me confronto diariamente com a realidade.

Rio Bravo: Em outra passagem do seu artigo, o senhor escreve que, embora impraticável, a Lei Magna será mantida. Então, diante disso, minha pergunta é a seguinte: quais condições seriam necessárias para que fosse reformulada a Constituição?

Almir Pazzianotto: A Carta Imperial é fruto de um golpe. A de 1891 é fruto de um golpe. Derrubaram o imperador, precisavam de uma nova Constituição. A de 1934 foi fruto da Revolução de 1930. A de 1937 foi fruto de um golpe. A de 1946 foi fruto de um golpe. A de 1967 foi fruto de um golpe. A de 1969 foi de um golpe dentro do golpe. A de 1988 foi fruto de um arreglo. Por quê? Afastado o regime militar… E vamos dizer afastado e não derrotado, porque ele permaneceu em grande parte no governo Sarney. Afastado o predomínio dos militares, precisaríamos de uma nova Constituição. Esse era um compromisso do Dr. Tancredo Neves, na campanha ele falou de uma Constituinte. E havia nas ruas um movimento, “Constituinte Já”. O Sarney manteve o compromisso, convocou uma Assembleia Nacional Constituinte.

Os eleitos de 1986 eram simultaneamente deputados, senadores e constituintes, trabalharam num ambiente de absoluta liberdade, sem projeto, sem controle, sem liderança, e está aí a Constituição. Como é que nós faríamos para substituí-la? O presidente Temer convoca uma nova Constituinte e condena à forca a atual Constituição? Porque, ao convocar uma nova Constituinte, ele invalidou a atual, decretou a morte. Mas o presidente Temer não tem força política para isso. Chama uma eleição para Constituinte? Diz “Olha, a eleição de 2018 será para uma Assembleia Nacional Constituinte”. Quem serão os eleitos? Os mesmos que estão hoje lá. Ou, se não todos, 50%, 60%. E os novos, quem serão? Pessoas de popularidade.

Então, o risco é que nós não vamos ter um Congresso muito diferente do atual. Creio que foi o Guzzo, da Veja, que disse “E o povo?”. O povo vai ser o mesmo. A matéria-prima de uma Constituinte é o povo. Qual é a garantia que nós temos de que esse povo saberá eleger? Eu fui deputado estadual, me elegi três vezes. Quando encontro um velho companheiro da Assembleia, ele diz o seguinte… Todos eles dizem a mesma coisa. Todos, é uma regra sem exceção. Eles dizem: “Almir, a Assembleia piorou muito desde a nossa época”. E a sensação é que cada nova legislatura é pior do que a anterior. E não pode ser melhor porque são 30, 40 partidos, então os nossos partidos não têm expressão. Eles não representam absolutamente nada. Eu não sei se eu, na idade que estou, fiquei muito pessimista, mas de fato eu fico aqui dentro, saio, converso, escrevo, pergunto e não encontro resposta.

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Lara Rizério

Editora de mercados do InfoMoney, cobre temas que vão desde o mercado de ações ao ambiente econômico nacional e internacional, além de ficar bem de olho nos desdobramentos políticos e em seus efeitos para os investidores.