Drible ao teto de gastos abre espaço para Auxílio Brasil, mas deterioração fiscal pode impedir ganho de popularidade a Bolsonaro

Especialistas divergem sobre a dinâmica das regras fiscais no futuro, mas veem mudança estrutural de regime e saldo político ainda incerto para o governo

Marcos Mortari

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SÃO PAULO – A versão da Proposta de Emenda à Constituição que trata do pagamento de precatórios e modifica a metodologia de cálculo do teto de gastos em análise na Câmara dos Deputados traz sinais negativos sobre a credibilidade fiscal do país e pode ter efeitos colaterais sobre os planos de reeleição do presidente Jair Bolsonaro (sem partido).

Economistas consultados pelo InfoMoney divergem sobre a dinâmica das regras fiscais no futuro, mas concordam que haverá uma mudança estrutural na forma como o país administra suas receitas e despesas caso o texto, patrocinado pelo governo federal, receba o aval dos parlamentares e seja promulgado pelo Congresso Nacional.

Para eles, embora movimento tenha todos os traços de motivação eleitoral, não há garantias de que Bolsonaro conseguirá surfar na onda do Bolsa Família “turbinado” para recuperar popularidade e chegar a outubro de 2022 com uma candidatura mais competitiva.

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O parecer de autoria do deputado federal Hugo Motta (Republicanos-PB) abre espaço fiscal superior a R$ 80 bilhões para o ano que vem ao impor uma “trava” para o pagamento de dívidas judiciais do governo federal sem possibilidade de novos recursos e uma alteração na forma como o teto de gastos é definido de um ano para outro.

Atualmente, a regra fiscal prevê a atualização dos gastos públicos pela inflação acumulada em 12 meses até junho do ano anterior. Pelo texto aprovado pela comissão, o período que determinaria a correção na regra fiscal passaria para janeiro a dezembro, mantendo o IPCA, medido pelo IBGE, como indexador.

A nova metodologia provocaria em um ajuste retroativo da regra desde a sua criação, em 2016. Pela Constituição Federal, uma revisão do instrumento somente seria possível em 2026 – após dez anos da sua vigência –, mas o governo optou por antecipar esse processo, propondo a revogação de tal dispositivo da Carta Magna.

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Na prática, isso faz com que o teto salte de R$ 1,609 trilhão para cerca de R$ 1,644 trilhão (diferença de R$ 35 bilhões) em 2022, considerando as projeções mais recentes da Secretaria de Política Econômica (SPE) do Ministério da Economia para o IPCA – de 7,90% em 2021.

Considerando as projeções do último Relatório Focus, divulgado semanalmente pelo Banco Central, que indicaram IPCA a 8,96% no acumulado do ano, o governo poderia ter um “fôlego” de R$ 50,946 bilhões no teto de gastos.

Além disso, o texto aprovado permite contornar a chamada regra de ouro – dispositivo constitucional que prevê que o governo não pode se endividar para bancar gastos correntes.

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O substitutivo também aplica a mesma regra do teto de gastos para limitar o valor destinado ao pagamento de precatórios em um dado exercício, o que garante mais R$ 50 bilhões para o governo federal dentro da nova versão “light” da regra fiscal.

Agentes econômicos reagiram mal ao movimento, interpretando a medida como saída conveniente, injustificável – e até eleitoreira –, que enfraquece a principal âncora fiscal do país. Embora Guedes tente convencer o mercado de que o teto segue em vigor, a impressão de investidores é que o mundo político pode modificá-lo sempre que julgar adequado.

A manobra, por outro lado, é tida como fundamental para garantir a criação do Auxílio Brasil, novo programa de transferência de renda que deverá substituir o Bolsa Família. Politicamente, uma espécie de “bala de prata” do presidente em seu plano para a reeleição em 2022.

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Mas também não encontrou guarida entre técnicos do Ministério da Economia, onde uma nova debandada de figuras relevantes amplificou a crise na pasta comandada por Paulo Guedes, que preferiu matar no peito a mudança e permanecer no posto, mas ainda não convenceu o mercado.

Na semana do furo ao teto de gastos, o Ibovespa acumulou queda de 7,28%, aos 106.296 pontos ‒ menor patamar em 2021. O dólar comercial, por sua vez, foi de R$ 5,4542 na compra para R$ 5,6268. Os contratos longos de juros com vencimento em janeiro de 2027 (DIF2027) eram negociados com taxas dos 10,61% no início do mês e bateram 11,81% na sexta-feira (22).

“O que estamos assistindo é uma mudança de regime. Temos um novo regime fiscal”, alertou Caio Megale, economista-chefe da XP Investimentos em live realizada na semana passada. Com uma percepção de outro arcabouço fiscal em vigor, os agentes econômicos ajustam os preços dos ativos à nova realidade do país e expectativas para o futuro.

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“Hoje nós projetamos taxa de câmbio em R$ 5,20 no cenário base para este ano e R$ 5,10 para o final do ano que vem. Mas isso era dentro do cenário em que as regras fiscais eram mantidas. Se nós temos um novo regime fiscal de mais gastos, provavelmente a taxa de câmbio não vai ser de R$ 5,20, vai ser maior por causa da diferença da credibilidade”, pontuou Megale.

“Uma taxa de câmbio mais depreciada põe em risco a inflação. Já tem mais pressão para gasolina, alimentos, para todos os produtos que têm alguma relação com a taxa de câmbio. Com a inflação mais alta, o Banco Central provavelmente tende a reagir, subindo mais a taxa de juros”, explicou o especialista.

A XP foi uma das casas que revisou suas projeções para os principais indicadores do país. A expectativa para a taxa de câmbio saiu de R$ 5,20 em 2021 e R$ 5,10 em 2022 para R$ 5,70 nos dois períodos.

A projeção para o PIB recuou de crescimento de 5,3% para 5,0 neste ano e de 1,3% para 0,8% no ano que vem. A inflação medida pelo IPCA foi de 9,0% para 9,1% e de 3,9% para 5,2% nos respectivos anos. E a Selic, de 8,25% para 9,25% em 2021 e de 9,25% para 11% em 2022.

No relatório em que expõe os novos cenários, a equipe de análise econômica da XP sustenta que os acontecimentos recentes mostram que “a regra constitucional do teto de gastos, principal norte de controle das despesas públicas, terá menor efetividade daqui para frente”.

“Estamos observando uma mudança de regime na condução da política fiscal, e não ‘apenas’ uma piora na margem”, sustentam no texto. A avaliação de “desancoragem” fiscal justifica em grande medida as expectativas mais elevadas para o câmbio, a inflação e os juros.

“Em vez de o governo cortar despesas não relevantes, como as emendas parlamentares ou subsídios a diversos setores da economia ou programas que não são tão efetivos, a decisão foi manter todos esses gastos e gastar além do teto”, observou Megale.

“Se você tem uma regra que limita suas despesas e, na hora que essa regra fica apertada, em vez de você cortar despesas você afrouxa a regra, isso diminui muito a credibilidade desse regime”, complementou o especialista durante live.

Avaliação similar tem a economista Alessandra Ribeiro, sócia e diretora de Macroeconomia e Análise Setorial da Tendências Consultoria Integrada, que vê no episódio um claro sinal de indisposição da classe política em fazer escolhas que contemplem as restrições impostas pelas regras fiscais em vigor.

“O significado [da mudança na metodologia do teto de gastos] é a total falta de confiança em uma regra que limite o crescimento de gastos ao longo do tempo. Perde-se totalmente a credibilidade no funcionamento da regra”, afirmou.

“Colocamos em xeque o trabalho que o teto estava tentando fazer de reduzir esses gastos em relação ao PIB. O risco é entrarmos em uma trajetória de crescimento expressivo dos gastos, que vão ter que ser ajustados pelo lado das receitas”, alertou.

Com a mudança, a especialista diz que o teto de gastos sofre significativa perda de credibilidade e o país se aproxima dos tempos pré-2016. “A classe política não quer arcar com o custo de fazer reformas pelo lado dos gastos. No fundo, essa agenda realmente não caminhou”, lamentou.

“O que extraio dessa história toda é que, sempre que o teto for inconveniente, ele será alterado, porque entendemos que a classe política não quer lidar com a restrição. Ela prefere mudar a regra. O risco de mudanças sistemáticas é muito grande”, disse.

A tendência, diz a economista, é o país caminhar para uma gestão fiscal feita “na boca do caixa”, mas em uma conjuntura desconfortável e com pouca margem de manobra para resolver os problemas do resultado primário pelo lado da receita.

“Considerando esse ponto, o que nos sobra [de regra fiscal] é o resultado primário. Voltamos um pouco ao passado, mas sabemos que não era suficiente também para forçar reformas. Por isso que o teto veio”, destacou.

O economista Adriano Laureno, da Prospectiva Consultoria, há muito tempo chama atenção para a perda de credibilidade do teto de gastos. Desde que foi instituída, a regra acumulou “goteiras”, com a exclusão de recursos da cessão onerosa, os gastos com o novo Fundeb ou mesmo com o auxílio emergencial e outras medidas durante o enfrentamento à pandemia de Covid-19.

“O teto de gastos já foi flexibilizado por diversas vezes nos últimos anos. Sempre que aperta o calo, ele é flexibilizado. Não é a primeira vez e provavelmente não será a última. Mas a grande questão desta vez foi a velocidade com que o valor [do Auxílio Brasil] foi aumentando”, afirmou.

“O problema maior é que temos inúmeras regras fiscais, mas que nenhuma é realmente crível e todas acabam sendo descumpridas. O ideal seria que tivéssemos um arcabouço fiscal unitário, uma regra transparente que fosse factível e cumprida”, pontuou.

Apesar das mudanças, o economista ainda trata o teto de gastos como foco de restrição fiscal do país. “Do ponto de vista jurídico, o teto segue sendo a principal regra fiscal restritiva para o ano que vem. Se quiserem fazer gastos adicionais, vai ser essa restrição com a qual vão precisar lidar. Segue o mesmo processo: créditos extraordinários ou PEC”, observou.

“Segue não sendo tão trivial como era aprovar novos gastos extrateto. Então, há alguma forma de limitação, no mínimo burocrática. Cada nova flexibilização gera essa reação negativa que temos visto do mercado, e desgaste para o governo. Não é algo que vai se tornar cotidiano necessariamente”, complementou.

Para ele, a mudança na metodologia da regra fiscal representa uma forte flexibilização e abre espaço significativo no Orçamento de 2022, mas o movimento tem novos limites para até onde gastos eleitorais poderão ir.

“A questão é se vão ver isso como necessário e vão ver a tempo das eleições ou não ‒ se esses R$ 83 bilhões já são suficientes para os planos eleitorais do governo. Isso não está claro. Parece que os ministros políticos do governo gostariam de mais”, avaliou.

Mas vai dar votos?

Embora politicamente o Auxílio Brasil seja tratado como uma espécie de “bala de prata” do presidente Jair Bolsonaro em seu projeto pela reeleição, analistas ainda avaliam qual pode ser o saldo para a popularidade do mandatário.

A consultoria de risco político internacional Eurasia Group rebaixou de neutra para negativa a perspectiva de curto prazo para o Brasil em meio às movimentações para furar o teto de gastos ‒ no longo prazo, a avaliação da casa já era negativa.

Para seus analistas, o impacto econômico das mudanças na regra fiscal pode anular eventuais ganhos eleitorais de um programa mais generoso.

“Não haverá solução fácil para os dilemas sociais brasileiros: moeda mais fraca, inflação mais elevada e crescimento econômico menor aprofundarão a dor social, apesar do Auxílio Brasil, potencialmente alimentando propostas heterodoxas e diminuindo as chances de reformas construtivas serem aprovadas no Congresso”, avaliam.

“Para 2022, esse ambiente pode enfraquecer a posição de Bolsonaro e colocar pressão nas chances de um candidato de terceira via (20%)”, complementam.

Na avaliação de Laureno, há poucas dúvidas de que as 17 milhões de famílias atendidas pelo programa com repasses mensais de R$ 400,00 terão um ganho maior do que a perda inflacionária no curto prazo. Também poderá haver um estímulo à atividade econômica.

“Do ponto de vista de curto prazo e das famílias que recebem o benefício, com certeza vai ter um ganho de renda. Também entendo que o aumento do benefício social para famílias de baixa renda com alta propensão a consumir, em um momento em que temos capacidade ociosa na economia, aumenta a possibilidade de crescimento do PIB no ano que vem”, salientou.

“A discussão sobre o efeito para o longo prazo e para outras famílias, que não estão recebendo o benefício, é outra. Qual vai ser a reação do Banco Central para a taxa de juros e como isso afeta o crescimento de 2023, 2024, e uma certa estabilidade da economia?”, questionou.

“A classe média vai ser mais afetada por esses juros maiores, a inflação possivelmente maior, a taxa de câmbio mais desvalorizadas. Para o resto da população, talvez os efeitos [colaterais da medida] possam vir mais rapidamente”, concluiu.

Já Alessandra Ribeiro aposta em um saldo líquido negativo para o governo com o movimento. “É o famoso tiro no pé. Com R$ 400 para 17 milhões de famílias, você pode ficar com aquele segmento, com uma popularidade um pouco maior. Mas a questão é todo o resto. Há um segmento que ele não vai atacar com o Auxílio Brasil”, argumentou.

“A popularidade dele é baixa na classe média. E essa classe média depende muito de vaga no mercado de trabalho, a principal fonte de renda é trabalho. A partir do momento em que ele faz isso tudo, a economia perde tração, essa recuperação que observamos no mercado de trabalho vai ser interrompida. Isso vai penalizar esse grupo, inclusive com pressões inflacionárias corroendo o poder de compra”, complementou.

“Mesmo nas classes altas, em que ele tem mais apoio, a partir do momento em que eles veem um horizonte complicado, essa falta de rumo e esse problema para a atividade econômica, isso bate direto nos negócios, na rentabilidade. Mesmo nesse segmento, ele deve perder apoio. O risco é ele ter uma perda de popularidade importante ao longo dos próximos meses, viabilizando inclusive outra força que seria uma terceira via, que hoje é menos provável”, concluiu.

O governo federal também trabalha para tirar do papel um “auxílio diesel” a 750 caminhoneiros, como forma de agradar uma categoria que tem feito reiteradas ameaças de paralisação, em razão da forte alta dos preços dos combustíveis.

Para o cientista político Ricardo Ribeiro, da MCM Consultores, o “drible” ao teto de gastos explicitou uma preocupação eleitoral de Bolsonaro a pouco menos de um ano do pleito, mas pode ter efeitos colaterais relevantes para o governo.

“A ansiedade eleitoral rasgou fantasias remanescentes a respeito de Bolsonaro, de Paulo Guedes e dos rumos de uma administração controlada politicamente pelo ‘centrão’. A ruptura efetiva do teto de gastos, muito mal-disfarçada pela decisão de alterar a indexação da regra, derrubou os resquícios da grande fantasia criada em 2018 sobre a adesão de Bolsonaro a uma agenda econômica liberal e fiscalista e sobre a capacidade de Paulo Guedes de controlar um presidente eleito com 57 milhões de votos”, observou.

“O governo Bolsonaro fez uma aposta custosa. Comprometeu o que restava de apoio junto a setores econômicos que se alinharam a ele em 2018 na expectativa duvidosa de que o Auxílio Brasil restabelecerá a competitividade eleitoral de Bolsonaro. Neste ano, vimos que a transferência de recursos aos eleitores de menor renda (o auxílio emergencial mais modesto do que em 2020) não conteve a deterioração da popularidade do governo. Se o ambiente macroeconômico se deteriorar ainda mais, o Auxílio Brasil de R$ 400 também não deverá ser suficiente para alavancar Bolsonaro nas pesquisas”, alertou.

Novos riscos fiscais

Para os analistas da consultoria Arko Advice, cada vez mais Bolsonaro entra no “modo eleição”. “Apesar dos instrumentos que o governo possui, há obstáculos pela frente. O debate envolvendo o teto de gastos provocou nervosismo no mercado e pode contaminar a economia, em especial aumentando a inflação. O reajuste do Bolsa Família, embora ajude Bolsonaro a melhorar a popularidade, não garante que será suficiente para equilibrar o jogo que, por ora, pende para Lula entre o eleitorado de menor renda”, observam.

“Mesmo com os obstáculos e as críticas que o governo vem sofrendo, Bolsonaro operou uma inflexão e, cada vez mais, o ‘modo eleição’ balizará suas ações. Além da necessidade que Bolsonaro tem de melhorar sua popularidade, há o desejo dos deputados por mais gastos em suas bases eleitorais. Sem falar nos ministros que serão candidatos e pressionam por uma agenda menos fiscalista”, destacam.

Com o teto de gastos aparentemente fora do caminho do mundo político (caso a tendência de aprovação da PEC dos Precatórios no Congresso Nacional se confirme), outros riscos fiscais entram no horizonte dos agentes econômicos.

Um deles está relacionado ao próprio texto que será apreciado pelos parlamentares. Há preocupações de os congressistas ampliarem o buraco nas contas públicas durante a tramitação da PEC.

Um dos caminhos seria pela elevação da parcela mínima do Auxílio Brasil para R$ 500,00 até dezembro de 2022 ‒ o que poderia custar R$ 20 bilhões a mais, que poderiam ser pagos fora do “novo teto”.

Outro seria a inclusão de 15 milhões de “invisíveis”, que hoje recebem auxílio emergencial e não fazem parte das 17 milhões de famílias contempladas pelo novo programa. O pagamento de R$ 200,00 mensais para esse grupo poderia aumentar em mais de R$ 30 bilhões a conta.

“O risco mais imediato seria de o texto sofrer alterações e acabar ficando com um buraco ainda maior. Neste caso, vamos para mais gastos com uma economia cada vez mais enfraquecida: as projeções de crescimento vão cair mais, os juros vão para cima”, alertou Alessandra Ribeiro.

“Qual é o resultado disso tudo? Resultados primários muito negativos, batendo em endividamento. Resultado, inclusive, alavancado por taxas de juros mais altas ‒ ou seja, aumentando de forma importante o endividamento, sendo que já estamos em um ponto de partida muito alto”, salientou.

Marcos Mortari

Responsável pela cobertura de política do InfoMoney, coordena o levantamento Barômetro do Poder, apresenta o programa Conexão Brasília e o podcast Frequência Política.