De olho em protagonismo internacional, BNDES pode viver guinada como instrumento de política externa; economistas questionam modelo de atuação

Operações em outros países podem expandir mercados e ampliar influência brasileira no exterior, mas trazem riscos financeiros

Luís Filipe Pereira

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As manifestações públicas do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) sinalizando a retomada de protagonismo e um possível reposicionamento internacional do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) têm suscitado questionamentos em relação à natureza das operações envolvendo grandes corporações responsáveis por erguer obras públicas em outros países.

Criado em 1952 por decreto assinado por Getúlio Vargas, o então Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico nasceu com a função de “atuar, como agente do governo, nas operações financeiras que se referirem ao reaparelhamento e ao fomento da economia nacional”.

Anos mais tarde, na ditadura militar, passou a ter status de empresa pública, com a prerrogativa de “efetuar todas as operações bancárias necessárias à realização do desenvolvimento da economia nacional”.

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Ao longo das décadas, o banco se transformou e teve modificações na estrutura do seu funding, passando a contar com novas fontes de recursos e um aumento expressivo em seu balanço.

Em 2002, o banco público contava com um ativo total de R$ 150,99 bilhões e um patrimônio líquido de R$ 12,35 bilhões. Doze anos mais tarde, os números estavam em R$ 693,84 bilhões e R$ 52,17 bilhões. Considerando a inflação do período medida pelo Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), o balanço cresceu 189,97% e 169,63% em termos reais nas duas métricas.

Ano Ativo total (nominal)* Patrimônio líquido (nominal)* Inflação (IPCA) Ativo (real)** Patrimônio (real)**
2002 R$ 150.989.064 R$ 12.350.243 12,53% R$ 300.515.375,02 R$ 24.580.839,22
2003 R$ 151.893.421 R$ 12.856.901 9,30% R$ 276.592.248,66 R$ 23.411.936,71
2004 R$ 161.872.131 R$ 14.114.732 7,60% R$ 273.943.408,01 R$ 23.886.988,84
2005 R$ 171.427.399 R$ 15.710.879 5,69% R$ 274.495.423,50 R$ 25.156.797,63
2006 R$ 184.530.283 R$ 19.091.930 3,14% R$ 286.480.715,73 R$ 29.639.957,64
2007 R$ 198.668.103 R$ 24.923.350 4,46% R$ 295.260.852,01 R$ 37.041.122,58
2008 R$ 272.092.458 R$ 25.266.621 5,90% R$ 381.854.811,80 R$ 35.459.199,71
2009 R$ 379.279.940 R$ 27.628.044 4,31% R$ 510.288.395,15 R$ 37.171.146,55
2010 R$ 520.854.166 R$ 65.899.265 5,91% R$ 661.660.170,27 R$ 83.714.255,83
2011 R$ 603.698.324 R$ 61.012.425 6,50% R$ 720.094.033,62 R$ 72.775.890,66
2012 R$ 693.840.197 R$ 52.169.463 5,84% R$ 781.949.791,03 R$ 58.794.374,94
2013 R$ 762.953.109 R$ 60.626.150 5,91% R$ 811.858.403,29 R$ 64.512.286,22
2014 R$ 871.410.178 R$ 66.276.468 6,41% R$ 871.410.178,00 R$ 66.276.468,00

* Em R$ milhares
* Em R$ milhares, a valores de 2014
Fontes: BNDES e IBGE

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Captação de recursos

Fontes governamentais, como o FAT e o Tesouro Nacional, representam parcela significativa da estrutura de financiamento do BNDES. Em 1990, o FAT passou a representar a principal fonte de recursos do banco, que tem livre decisão sobre a aplicação destes recursos. Antes disso, a promulgação da Constituição de 1988 havia determinado que parte da arrecadação do PIS-PASEP deveria ser destinada ao financiamento de programas de desenvolvimento econômico através do BNDES.

O banco também capta recursos do FAT sob a forma de depósitos especiais, remunerados pela taxa de longo prazo do BNDES a partir da liberação dos empréstimos aos beneficiários finais. Os recursos captados nessa modalidade são aplicados em programas previamente aprovados pela Secretaria Executiva do Conselho Deliberativo do FAT. De acordo com relatório disponibilizado pelo banco, em setembro de 2022, o saldo total de recursos do FAT para o BNDES era de R$ 364,4 bilhões.

Um conjunto de leis que entraram em vigor na década de 2010 autorizaram a União a conceder créditos ao BNDES por meio de recursos do Tesouro Nacional. Neste período, os desembolsos do banco cresceram, conforme relatório disponibilizado pelo setor de Transparência, chegando a R$ 190 bilhões em 2013.

Em dezembro de 2016, após o impeachment de Dilma Rousseff (PT), o governo de Michel Temer (MDB) tomou iniciativas com o propósito de restringir o gasto público e consequentemente mudar o perfil de atuação do banco. Em um cenário de crise econômica, foram devolvidos R$ 100 bilhões ao Tesouro Nacional.

Outra medida colocada em prática foi a MP 777/2017, que instituiu uma nova taxa para o custo financeiro básico do banco, a taxa de longo prazo (TLP), reajustada mensalmente e atrelada à inflação corrente. Sua implementação eliminou “subsídios” implícitos na antiga taxa de juros de longo prazo (TJLP), fixada pelo Conselho Monetário Nacional, composto pelos ministros da Fazenda e do Planejamento e pelo presidente do Banco Central, e mais suscetível à ingerência política sobre os recursos públicos.

Recursos do Fundo da Marinha Mercante (FMM), do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) e de seu fundo de investimento (FI-FGTS) complementam a estrutura de capital. O BNDES também capta recursos no mercado internacional por meio de operações de emissão de bonds; e por meio de empréstimos junto a organismos multilaterais, agências governamentais, como o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e o China Development Bank (CDB). Neste caso, os recursos captados junto a essas instituições têm, geralmente, destinação específica a setores ou segmentos empresariais e devem atender às condições da instituição credora.

Atuação no exterior

Em 1997, com o nome de BNDES Exim, a linha de financiamento às exportações brasileiras, criada em 1990, foi ampliada e passou a incluir nos itens financiáveis serviços de engenharia. Segundo dados divulgados pelo banco, América Latina e África passaram a concentrar os recursos desembolsados na modalidade, incluindo bens de fabricação nacional a serem utilizados nas obras.

Os recursos eram destinados ao exportador brasileiro, em reais, com desembolso no Brasil, sem incluir gastos locais. O devedor era o importador, ou seja, a empresa ou país estrangeiro que compra o bem ou serviço. Em caso de inadimplência, a estrutura de garantias é acionada e o BNDES é ressarcido pelo Fundo de Garantia à Exportação (FGE).

Esse modelo de atuação, com o papel de financiar a exportação de bens e serviços, foi interrompido a partir do governo de Michel Temer, que adotou postura conservadora quanto à participação do banco em empreendimentos estrangeiros, muito por conta da crise econômica e também devido aos escândalos revelados pela Operação Lava Jato envolvendo empresas nacionais que foram protagonistas em diversas operações fora do país.

Uma das obras alvos de investigações realizadas no Brasil e no exterior foi o aeroporto de Nacala, em Moçambique, construído pela empreiteira Odebrecht com recursos financiados pelo Brasil. A inauguração ocorreu em 2014. A antiga base aérea foi transformada em terminal com capacidade de receber até 500 mil passageiros por ano e voos internacionais, mas nunca operou em sua capacidade plena.

Antes dos desdobramentos da Lava Jato, a estratégia de marcar presença no território africano tinha ganhado outro capítulo um ano antes, quando foi inaugurado um posto de representação do BNDES em Joanesburgo, na África do Sul. Além disso, o banco já havia criado uma diretoria específica para tratar de assuntos que envolvessem os países africanos. Em novembro de 2016 o escritório encerrou suas atividades, na esteira das mudanças promovidas pelo governo Temer.

Com as investigações, a atuação do BNDES no financiamento de operações internacionais passaram frequentar o noticiário policial. Foram desembolsados R$ 32,9 bilhões para empresas controladas pelo grupo Odebrecht, que recebeu 76% dos recursos disponíveis para a exportação dos serviços de engenharia desde 1998. Do valor total desembolsado pelo banco, R$ 16,1 bilhões foram direcionados para a exportação de bens e serviços de engenharia para realizar obras de infraestrutura em países como Angola, Argentina, Cuba e Venezuela.

Segundo dados do BNDES, atualmente há US$ 935 milhões em saldo a vencer referente a obras realizadas na Argentina, em Cuba, no Equador, em Gana, na Guatemala, em Honduras, em Moçambique, na República Dominicana e na Venezuela.


Fonte: BNDES

Debate ideologizado

Nos últimos anos, a atuação do BNDES voltou ao debate político, com questionamentos sobre a natureza das operações de engenharia realizadas durante os dois primeiros mandatos de Lula e também durante o governo de Dilma Rousseff.

Argumentos contrários à atuação do BNDES no cenário internacional engrossaram a campanha eleitoral de 2018, que trouxe à tona a pauta anticorrupção. Candidatos associavam as obras realizadas em países estrangeiros como fruto de alinhamento quase orgânico dos petistas a governos considerados autocráticos, e reclamavam sobre o sigilo envolvendo as operações do banco em países estrangeiros.

Com a eleição de Jair Bolsonaro, que tinha entre suas promessas de campanha a iniciativa de “abrir a caixa-preta do BNDES”, como forma de levar à população supostas irregularidades praticadas pelo banco, foi devolvida ao Tesouro Nacional a quantia de R$ 235 bilhões, seguindo uma tendência de seu antecessor, Michel Temer.

Em janeiro de 2020, o então presidente do BNDES, Gustavo Montezano, disse, no entanto, que a auditoria realizada não havia encontrado indício de operações fraudulentas em âmbito interno, e que as alegadas práticas de corrupção de outrora haviam sido permitidas pela legislação brasileira.

Volta ao protagonismo internacional?

Ao ser empossado como novo presidente do banco, Aloizio Mercadante se colocou de maneira favorável à concessão de linhas de crédito destinadas à exportação de bens e serviços por empresas brasileiras.

Do ponto de vista das Relações Internacionais, o professor Rodrigo Gallo, coordenador do curso de pós-graduação em Política e Relações Internacionais da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP), acredita que o debate sobre a atuação internacional do BNDES deve ir além dos aspectos econômicos celebrados em cada acordo.

“O Brasil perdeu parte do protagonismo internacional nos últimos anos, quando houve um isolamento nas relações com outras nações. Essa retomada da política de financiamento de obras de infraestrutura em outros países pelo BNDES reposiciona o país como média potência internacional. Abre postos de negociação e cria canais de aproximação comercial”, afirmou.

Se por um lado o maior engajamento em empreendimentos estrangeiros pode significar em ganhos sob o ponto de vista político, como maior influência junto a outros países e a abertura de novos mercados para companhias brasileiras, por outro os riscos financeiros associados às operações preocupam economistas.

O Fundo Garantidor das Exportações, que na prática funciona como um seguro para eventuais calotes, é um ponto de crítica dos especialistas, já que, apesar de proteger o banco público, não blinda a União dos impactos da inadimplência. Nos últimos anos, ele garantiu o pagamento de mais de US$ 1 bilhão em parcelas de financiamentos em atraso, referentes a dívidas contraídas após obras realizadas em Cuba, Moçambique e Venezuela.

“Não tem nada de errado em financiar operações de exportação. A questão é o tipo de operação. No caso de atraso mais longo, quem garante o pagamento é a União. É como tirar de um bolso e colocar no outro, e quem paga é o contribuinte”, argumentou Maurício Canêdo Pinheiro, doutor em Economia pela Escola de Pós-graduação em Economia da Fundação Getulio Vargas.

A crítica feita por Maurício encontra eco em Maria Silvia Bastos Siqueira, que dirigiu o banco entre os anos de 2016 e 2017, durante o governo de Michel Temer (MDB). Em entrevista recente ao Valor Econômico, ela defendeu que o governo estabeleça prioridades levando em consideração as restrições orçamentárias.

Outro argumento é sobre a concessão de juros mais baixos, ancorados na antiga TJLP, a grandes grupos de engenharia. Dos US$10,5 bilhões que foram financiados para a exportação de serviços de engenharia, a Odebrecht recebeu 76%, Andrade Gutierrez 14%, Queiroz Galvão 4%, Camargo Correa 2% e OAS 2%. Todas foram alvo de investigação da Lava Jato.

“Grandes empresas têm a possibilidade de captar no mercado. As obras, no geral, são polêmicas e as taxas dos empréstimos muito baixas. O ganho de produtividade é questionável numa área como a construção. Seria diferente, por exemplo, se houvesse o fomento a iniciativas que envolvessem uma nova tecnologia de impacto ambiental positivo”, ilustra Sergio Lazzarini, professor da Ivey Business School e Insper.

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