Com US$ 600 bilhões sonegados no exterior, repatriação é chave para ajuste fiscal no Brasil

O tributarista e professor titular da USP Heleno Torres acredita que o país consiga arrecadar R$ 70 bilhões com o projeto, o que pode garantir um colchão de estabilidade na crise, regularizando pessoas e trazendo dinheiro novo ao caixa das empresas

Marcos Mortari

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SÃO PAULO – O movimento global pelo combate aos crimes de sonegação fiscal e evasão de divisas vem em boa hora para o ajuste fiscal no Brasil, em meio ao cenário de dificuldades para presidente Dilma Rousseff e sua equipe promoverem cortes necessários no Orçamento para reequilibrar as contas públicas. Hoje, um dos pilares para a recuperação da economia do País defendidos pelo ministro da Fazenda Joaquim Levy caminha no sentido de um maior nível de arrecadação por meio da regularização de ativos lícitos do exterior, que ficou conhecido como “repatriação” de recursos – alvo de alguma polêmica, e cuja eficácia não é garantida, tendo como fator decisivo o provimento de segurança jurídica aos contribuintes.

De acordo com dados levantados por Dev Kar, economista-chefe da Global Finance Integrity e ex-economista sênior do FMI (Fundo Monetário Internacional), entre 1960 e 2012, o Brasil perdeu cerca de US$ 590,2 bilhões em decorrência de fuga de capitais, sendo 68,04% provenientes de saídas ilícitas, principalmente pelo subfaturamento proposital de exportações ou até o superfaturamento de importações – este último menos frequente. O projeto, que voltou a ganhar corpo neste ano com o patrocínio do governo e evoluções das discussões no Congresso Nacional, em meio às sessões da CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) do HSBC no Senado, pretende anistiar contribuintes que declarem voluntariamente recursos, bens ou direitos de origem lícita, não declarados, remetidos ou mantidos no exterior – ou seja, cuja irregularidade cometida não supere a sonegação e evasão de divisas no momento do envio dos recursos a outros países.

Um dos defensores da medida como mecanismo importante para o ajuste fiscal, a recuperação das bases tributárias brasileiras e a adequação do País às normas estabelecidas pela OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) é o tributarista e professor titular de Direito Financeiro da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo – Largo São Francisco – Heleno Torres, que participou ativamente das discussões até o amadurecimento do projeto final, apresentado pelo relator na Câmara, deputado Manoel Júnior (PMDB-PB). Entre os desafios enfrentados para o êxito da proposta estão a sensação de insegurança jurídica de contribuintes que mantém contas não declaradas no exterior, a baixa adesão popular ao projeto por conta da anistia, o elevado preconceito direcionado a cidadãos que mantém recursos fora do País e a alíquota elevada para a regularização da situação. Confira os destaques da entrevista:

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InfoMoney – O senhor esteve muito envolvido na discussão e na formulação da lei de repatriação de ativos lícitos no exterior. Quais são suas expectativas com relação ao êxito dessa pauta?

Heleno Torres – Estamos em um momento crucial da aprovação deste projeto. Em uma sessão sobre o assunto na Câmara dos Deputados, percebi nos advogados que falaram e nos membros da Fazenda ali presentes um grande consenso sobre a oportunidade, urgência e técnica executada no projeto. Acho que é uma fonte muito importante neste momento. As pessoas já perceberam que o cenário mundial mudou, no sentido de estabelecer agendas de aplicação dos acordos FATCA e da OCDE. Tudo me faz crer que a aprovação desse projeto e o endurecimento contra a sonegação fiscal são iminentes. O momento não é de repatriação propriamente. Usamos esse termo porque foi o que caiu na mídia, mas, na verdade, é um programa de regularização de ativos. Não importa se a pessoa quer continuar com os recursos no exterior ou no Brasil. O que importa é que o governo brasileiro os tenha declarados.

IM – Recentemente se discutiu a possibilidade de a multa aplicada ser reduzida. Qual é a sua posição sobre isso?

HT – Essa alíquota de regularização, em todos os países que assim têm procedido, é alta, em torno de 25% a 40%. Agora mesmo, a Índia acabou de fazer um programa com alíquota de 30%. Acho que a média brasileira atinge a internacional. Se colocarmos dentro da perspectiva do que um contribuinte normal pagaria no país pelo mesmo patrimônio, vamos ver que os valores são equivalentes. Não há nada excessivo.

A Colômbia acaba de fazer um programa idêntico neste ano, mas com alíquotas realmente baixas, de 11%, 13% e 15%, a depender do momento em que o contribuinte adimpliu a declaração. No entanto, o projeto traz a criação de imposto sobre grandes fortunas, que alcança inclusive o valor repatriado. Se pensar assim, imagine que, em dez anos, o contribuinte terá pago o mesmo valor que está sendo cobrado no Brasil.

A questão de alíquota varia de país a país, mas nós devemos ter atenção ao momento histórico que estamos vivendo. Estamos entre um FATCA já aprovado e um acordo de troca de informações sobre contas bancárias que começa a partir de 1º de janeiro de 2016. Todos os países, inclusive aqueles que tinham uma tradição, não de paraísos fiscais (que nunca foram), mas de força ao sigilo bancário, ou mesmo considerados um pouco mais flexíveis ou os próprios paraísos fiscais, estão tomando as mesmas atitudes: exigindo que os proprietários dessas contas apresentem a declaração de ativos no país de origem. É uma revolução financeira mundial. É o que a OCDE disse em update: esta é a última janela [para regularizar as contas]. Não haverá outra oportunidade. Depois que se faz essa justiça de transição com quem tem capital de origem lícita, as instituições terão ainda mais poderes e justificativas para impor a entrega dos nomes desses correntistas. E aí, já não se trata mais de 35%, mas do confisco de 100%, que deverão ser repatriados e incorporados ao patrimônio público brasileiro.

IM – Quais são os limites entre o lícito e o ilícito nessa questão da repatriação?

HT – Essa é uma questão extremamente cara para nós. Sabemos muito bem que há um volume muito grande de capital ilícito no exterior, proveniente de corrupção, tráfico de drogas, armas, venda de órgãos, prostituição. Cálculos indicam que isso gire em torno de US$ 400 bilhões provenientes do Brasil, enquanto os ativos lícitos estariam na ordem de US$ 190/200 bilhões. E por que anistiar os valores que estão no exterior, mas que são objeto do ilícito da evasão de divisas? Se esse dinheiro estivesse no Brasil, o sujeito poderia regularizar isso a qualquer hora. Se alguém tem um caixa dois, ele pode perfeitamente ir à Receita Federal e fazer uma denúncia espontânea, pagar o tributo e a multa e resolver seu problema. Se o Fisco já autuou esse contribuinte, até mesmo durante um processo criminal ou ao fim dele, o código penal admite que, se forem pagos todo o tributo e as multas atualizadas, suspende-se a pretensão punitiva do Estado.

IM – Portanto, seria uma forma de não se criar rigor excessivo a correntistas com situação irregular no exterior?

HT – Não estou falando de um bandido, um corrupto, que tem contas no exterior, com recursos provenientes de lavagem de dinheiro, corrupção ou de qualquer crime que assim se qualifique. Estamos falando de um sujeito que, diante dos planos econômicos brasileiros que assustavam a todos, resolveu transferir parte de seu patrimônio para o exterior; que recebeu uma herança lá fora ou recebeu um bônus de uma empresa estrangeira. Basta lembrar quando o presidente Lula estava prestes a ingressar na presidência e diversas empresas fizeram remessas ao exterior ou mantiveram lá fora recursos que poderiam ter nacionalizado.

A verdade é que esses recursos não foram declarados. Qual é a diferença entre isso e o caso que está no Brasil? Uma fronteira no meio. Mas ficou na ilusão popular que o sujeito que tem dinheiro no exterior é, por si só, um criminoso igual a qualquer outro. Eu não tenho dúvida, ele comete um crime: o de evasão de divisas. E é exatamente sobre este que recai a anistia. Esses valores serão declarados e passarão pelos bancos internacionais, que também têm sua expertise de controle de origem de lavagem de dinheiro. Diante de qualquer suspeita relevante, qualquer agente será absolutamente legitimado para provocar as autoridades competentes, porque não se pode admitir que um programa sério como este sirva de instrumento de oportunistas.

IM – Qual é a capacidade das nossas autoridades de fiscalizar sobre a origem dos recursos e se as regras servirão apenas para quem, de fato, está respaldado por ela?

HT – É difícil para todo mundo. É como se a economia brasileira estivesse estilhaçada em diversos países sem saber onde estão esses pequenos pedaços. O que se faz com os programas de Offshore Voluntary Disclosure é recompor o quadro de tributação, que valerá para hoje e amanhã. Agora, onde há lei, existe a fraude. É indesejável, mas ocorre. Temos que coibir ao máximo. Mas, se alguém se aproveita da repatriação e o Ministério Público ou a própria Receita Federal, em suas investigações, identificam um servidor público que aparece com valor altíssimo de patrimônio a pretexto de ter feito uso da lei, não é a repatriação por si só que vai justificar a investigação, mas ela apresenta um indício e poderá levar ao conhecimento do delito que gerou os recursos. E, de forma muito mais fácil, o MP poderá até bloquear aqueles recursos e ter condições para acessar os valores que foram suprimidos dos cofres públicos.

Depois da recomendação do GAFI de 2012, os países que promovem esses programas não podem deixar de adimplir às regras de controle de lavagem de dinheiro. No Brasil, o ministro Joaquim Levy já insistiu várias vezes que essas regras não são afetadas pelo projeto. O que isso vai fazer é que, na regulamentação pelo Banco Central e pela Receita Federal, esses cuidados serão aprimorados para que o contribuinte tenha segurança jurídica de que a simples declaração não vai ser objeto de exposição pública. Também temos que resguardar a segurança jurídica dos bancos, porque eles também não podem ficar sob uma acusação de leniência ou patrocínio a qualquer prática dessas simplesmente por ter promovido o ingresso de recursos. E o mais importante: segurança jurídica da sociedade. Ou seja, aprimorar os instrumentos de tal sorte a dar à sociedade a sensação de segurança de que esse instrumento não será objeto de uso indevido por parte de quem quer que seja. As coisas deveriam prosseguir com esses três graus de segurança.

IM – Muitos críticos taxam a repatriação como ferramenta de desespero do governo para conseguir alguma fonte de arrecadação extra e fechar as contas. No entanto, pelo que o senhor explica, a iniciativa faz parte de um contexto mais amplo no plano internacional, de maior rigor nessas investigações sobre sonegação e outros crimes que envolvem a economia global. Além disso, em tese, seria mais interessante não propor a repatriação e confiscar todos os recursos com alguma irregularidade. Nesta ótica, a repatriação seria uma forma de arrecadar menos, não?

HT – Sem dúvida. O governo foi o último a saber desse projeto. Quando fui convidado para fazer sugestões ao aprimoramento normativo brasileiro na CPI do HSBC, falei sobre os tratados recentemente firmados pelo Brasil e também da necessidade de a Receita Federal pôr em prática esses controles. Os outros 47 países que fizeram isso, por estímulo da OCDE, promoveram uma espécie de justiça de transição, já que até cerca de sete anos atrás, a ideia de sigilo bancário era proteger tudo. Com a crise de 2008 e aquelas enormes transferências de recursos em razão de segundos, os países deram-se conta de que tinham que assumir controle muito forte sobre essas contas bancárias de não-residentes. O FATCA surge nesse ambiente. Ao mesmo tempo, a OCDE, a partir de 2013, dá início à elaboração de seu projeto para promover o controle das contas bancárias.

O governo imediatamente compreendeu a importância do instrumento, não só para o projeto de aproximação com a OCDE, mas também para garantir um aumento de arrecadação. Lembro a frase do senador Randolfe que me marcou muito: “mas professor, se nós aplicarmos essa alíquota de 30% em média sobre esses US$ 100 bilhões, não precisaria fazer ajuste fiscal”. Nós teríamos algo em torno de R$ 70 bilhões arrecadados, o que pode assegurar um colchão de estabilidade nessa transição do momento de crise, regularizando pessoas e trazendo dinheiro novo que se incorpora ao caixa das empresas. Agora, isso é secundário, uma vez que o grande benefício é a recuperação das bases tributárias da nossa economia para o futuro. Também vale deixar claro que não se trata benefício nenhum a réu de Lava Jato ou quem quer que seja, porque o projeto tem uma cláusula expressa que proíbe sua aplicação para quem tem processos em curso.

Outro mito construído em torno desse assunto é supor que o sujeito que não repatriar vai ficar feliz lá fora. Não vai. As leis vão mudar, os tratados internacionais vão entrar em vigor e – palavras da autoridade da Receita Federal que esteve nessa audiência pública da Câmara na terça-feira passada – o Brasil já recebeu o primeiro lote de informações de contribuintes com contas nos Estados Unidos. É um processo que está só começando. A ilusão de que os países queriam dinheiro não declarado não existe mais. Com esse projeto, também teremos como grandes colaboradores os próprios bancos. Isso é uma coisa virtuosa do mundo de compliance, de um mundo novo de transparência, onde o segredo bancário não oculta mais o ilícito. O segredo bancário agora protege o bom cidadão, aquele que tem seus bens declarados.

IM – Como os senhores fazem para estimar quanto vai ser recuperado? Usam-se experiências internacionais?

HT – Partimos de um estudo elaborado pelo economista Dev Kar que apurou os recursos que saíram do Brasil entre 1960 e 2012. É ele que chega a esse resumo de US$ 400 bilhões de origem ilícita e algo em torno de US$ 200 bilhões de origem lícita que estariam no exterior. Agora, com esse salto cambial, você imagina o seguinte: se do lícito nós trouxermos um quarto, que significaria US$ 50 bilhões, teríamos a entrada de R$ 200 bilhões na economia, R$ 70 bilhões de arrecadação, com impacto de mais de 3% no PIB e o valor que é o déficit que está no Orçamento de 2016 coberto integralmente.

Só para se ter uma ideia, apenas aquelas contas do HSBC da Suíça que estão sendo analisadas pela CPI do Senado têm US$ 7 bilhões, com seis mil correntistas. As contas desse estudo e outros sugerem algo em torno de duzentos mil correntistas brasileiros com contas não declaradas no exterior.

IM – O caso HSBC revelou nomes muito conhecidos do mundo de negócios e cultura brasileira. O senhor seria capaz de estimar o percentual de casos que se enquadrariam ou não na lei de repatriação?

HT – Esse é o trabalho que a Receita Federal está fazendo de identificar aqueles correntistas e notificá-los, porque ali estão pessoas com bens declarados, que não poderiam ter sigilo fiscal quebrado na forma como foi; e também estão aqueles que tenham eventualmente origem ilícita ou origem lícita não declarada. Essas três possibilidades estão presentes. É preciso que as autoridades depurem esses números.

IM – Quais casos de origem ilícita podem ser regularizados com a janela revista na lei da repatriação, se aprovada pelo Congresso e sancionada pela presidente?

HT – Nenhum.

IM – Sonegação também não?

HT – Sonegação só se for do próprio fato da evasão de divisas daí decorrente. O sujeito não pagou o imposto correspondente, essa sonegação que está alcançada.

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Marcos Mortari

Responsável pela cobertura de política do InfoMoney, coordena o levantamento Barômetro do Poder, apresenta o programa Conexão Brasília e o podcast Frequência Política.