Bolsonaro não pode ter “posto Ipiranga” para aprovar Previdência, diz Zeina Latif

Para economista-chefe da XP Investimentos, presidente não poderá se furtar da responsabilidade de arbitrar conflitos e decidir sobre texto final para defender no Congresso Nacional

Marcos Mortari

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SÃO PAULO – O horizonte de desaceleração da economia global e as incertezas sobre os rumos da guerra comercial entre China e Estados Unidos deverão impor desafios adicionais para a retomada brasileira. Do governo Jair Bolsonaro, poderá ser cobrada uma “lição de casa” mais profunda para que o país supere um ambiente de menor apetite por riscos e atraia investimentos externos, passando inevitavelmente por uma reforma previdenciária convincente. Essa é a avaliação que faz Zeina Latif, economista-chefe da XP Investimentos.

Para a especialista, o desafio é muito maior na política do que na própria economia e o novo presidente terá de mostrar capacidade de arbitrar conflitos e negociar para aprovar no parlamento um texto eficaz na indicação de caminhos para a saída da crise fiscal em que o país se encontra. Só assim o Brasil poderia se descolar parcialmente do mundo emergente e ter um desempenho destacado no plano global, mesmo em um ambiente nebuloso.

“Ainda há muitas incertezas. Precisamos ver Bolsonaro arbitrando a decisão de que reforma enviar e ele precisa assumir a paternidade da medida. Nessa questão, não existe ‘posto Ipiranga’, não dá para terceirizar. Bolsonaro e seu partido não podem delegar”, afirma Zeina.

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Apesar do discurso adotado durante a campanha eleitoral e dos primeiros movimentos no comando do país, ela acredita que Bolsonaro não terá alternativas senão negociar politicamente para fazer avançar sua agenda. “Bolsonaro vai ter que fazer política. Pode dar o nome que quiser, mas vai ter que fazer acordos”, observa.

Zeina vê como positiva a possibilidade de se aproveitar a PEC 287 – reforma previdenciária encaminhada pelo governo Temer, que já está pronta para ser pautada no plenário da Câmara dos Deputados – para dar celeridade à tramitação e elevar as chances de aprovação da pauta, mas defende dois ajustes no texto: redução no tempo de transição e reinclusão de policiais militares e bombeiros.

Além da Previdência, espinha dorsal do ajuste fiscal, a economista-chefe da XP Investimentos vislumbra uma série de medidas fundamentais para elevar o potencial de crescimento brasileiro e o país voltar a ‘acompanhar o mundo’. “O mundo foi e a gente colapsou. Fazendo uma analogia com a medicina, estamos falando de um paciente que ainda está fragilizado, hospitalizado, que precisa de mais medicação (leia-se reformas)”, pontua.

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Confira os destaques da entrevista:

InfoMoney – Quanto o cenário externo pode prejudicar a retomada da economia brasileira?

Zeina Latif – É verdade que o Brasil não é uma economia lá muito aberta, mas nosso ciclo econômico é muito influenciado pelo cenário internacional, pelo canal do crédito, da balança comercial, pelo canal financeiro. Se o mundo vai mal, vai entrar menos FDI (Foreign Direct Investment), vai ter menos gente disposta a financiar o Brasil, nossa exportação não vai ser tudo isso.

Ainda que seja uma economia relativamente fechada, não estamos isolados. Quando olhamos para o comportamento dos preços dos ativos, mais importante é o cenário internacional. Até porque, se você tem um mercado muito volátil, o banqueiro espera e os empresários esperam. A volatilidade do dólar, por exemplo, deve ter tirado cerca de 0,3 ponto percentual do PIB ao longo de 2018.

Às vezes ficamos muito ensimesmados olhando para as coisas no Brasil, quando na verdade o grosso é lá fora. Agora, isso não quer dizer que seja inócuo [qualquer esforço em nível doméstico]. Toda vez que a gente fez a lição de casa, conseguimos descolar um pouquinho, e quando não fizemos a lição de casa com a Dilma, afundamos.

O cenário internacional atrapalha. Mas, com um agenda forte de reformas, a gente consegue dar uma descolada, ainda que limitada, do mundo emergente. É possível contar uma história melhor. O problema é que o desafio hoje é maior do que no passado.

IM – Qual é o peso de uma eventual alta do dólar sobre a estratégia de política econômica e o desempenho de alguns dos principais indicadores da economia brasileira?

ZL – Às vezes se superestima a importância do diferencial de juros para explicar o fluxo financeiro no Brasil. Se a gente fizer a lição de casa, provavelmente teremos aumento de investimento direto de longo prazo, que não é o sujeito que está procurando o ganho com carry trade. Agora, é óbvio que faz diferença para o mundo e para a classe de emergentes como um todo ter um Fed que está apertando as condições monetárias. Estamos falando de menos liquidez, de maior potencial de volatilidade nos mercados. Há muitas dúvidas de como o mundo vai reagir a essa correção dos estímulos do passado. Já estamos vendo uma desaceleração da economia mundial. Será que já não tem a ver com o Fed? Acho que sim. O diabo da política monetária é que ela funciona.

Qual é o melhor cenário para o mercado? É um mundo crescendo com juros baixos. Qual é o segundo melhor? Crescimento econômico com juros crescentes. O que é o pior? É o mundo crescer pouco. Se a gente pudesse ter um Fed que falasse que manteria o plano original porque não vê nenhum risco de desaceleração, seria melhor. Na hora em que o Fed chega e fala em moderação por conta de uma desaceleração lá na frente, ainda que gere um alívio do mercado no curto prazo, é ruim. O ponto é que, no fim do dia, estamos falando de menos crescimento no mundo.

IM – Além da Previdência, o que é urgente na pauta econômica?

ZL – É claro que temos que ter clareza de que é impossível Bolsonaro chegar e resolver tudo. A questão é estabelecer prioridades e colocar foco nelas. Nessa linha, pensando nas grandes reformas, o que deveria ser uma segunda medida é a reforma tributária, a implementação do IVA. No Custo Brasil, o quesito em que estamos mais problemáticos é a complexidade do nosso sistema tributário. Bernard Appy estima que o PIB potencial subiria de 1,5%. Não é brincadeira, estamos tirando produtividade da economia brasileira com essa estrutura. Ninguém está feliz, mas todo mundo tem medo de mudança.

Aqui entra uma questão estratégica que é a Previdência. Não é qualquer reforma, tem que ser uma que dê horizonte para os estados, que estão quebrados. Assim, fica mais fácil discutir uma reforma tributária, porque o estado já não fica mais tão preocupado assim de perder alguma receita, o próprio setor produtivo aceita sentar na mesa para dialogar. Quando a coisa está confusa na macroeconomia, não há clima para sentar e negociar, é muito mais difícil.

IM – A Previdência torna-se ainda mais importante pelo fato de destravar outras reformas necessárias.

ZL – Ela ajuda a destravar, dá uma musculatura política para Bolsonaro. É o Banco Central que não precisa subir juros, são os estados topando diálogo evitando pautas-bombas no Congresso. Agora, a reforma pequena dá dor de cabeça: dificuldade para cumprir a regra do teto, tem estados quebrados… Não é neutra.

IM – A versão atual da reforma previdenciária encaminhada pela gestão do ex-presidente Michel Temer seria um nível intermediário?

ZL – A julgar pelo que sai na imprensa e a própria cobertura do nosso pessoal, a ideia do time econômico é seguir com a proposta do Temer, mas fazer ajustes. Você usa a carcaça, que já estava pronta para ir a plenário, e faz as mudanças com emendas aglutinativas, sem ter que passar de novo nas comissões. Isso, de acordo com os analistas e com os políticos, economiza vários meses de tramitação. Em um cenário como esse, aumenta a chance de termos uma reforma da Previdência aprovada na Câmara no primeiro semestre.

Agora, há muitas incertezas ainda, precisamos ver a sinalização de Bolsonaro. No fim do dia, é ele que vai ter que arbitrar [os conflitos]. Outro dia, ele disse que a reforma de Temer matava velho e foi muito criticado. Precisamos ver Bolsonaro arbitrando a decisão de que reforma enviar e ele precisa assumir a paternidade da medida. Nessa questão, não existe “posto Ipiranga”, não dá para terceirizar. Bolsonaro e seu partido não podem delegar. É essencial que o PSL não repita o erro do PT em 2015, quando Joaquim Levy mandava as reformas para o Congresso e o partido não apoiavam em bloco e gerava reação de outras siglas, como do PSDB, que apoiou a derrubada do fator previdenciário.

Bolsonaro vai ter que decidir qual reforma vai avançar, porque é óbvio o time econômico vai puxar de um lado e o grupo da política de outro. Acho que os militares até topariam em rever suas regras, o que é essencial. Isso seria importantíssimo. Se mexer nos militares, fica mais fácil convencer a Polícia Militar de que tem que mexer, e aí vai em cascata, porque se não os estados não aguentam.

IM – E qual é o tamanho da preocupação com um contexto que combina insatisfação da sociedade com a política tradicional, o discurso do governo de uma nova forma de organizar o jogo, e a necessidade de se implementar medidas complexas?

ZL – É preciso tomar muito cuidado com o potencial de ruído que ainda vamos ter até que haja clareza da decisão de Bolsonaro e como vai ser a habilidade política, ainda mais nesse ponto da nova forma de fazer política – que acho que não vai ser tão nova assim. Nenhum dos relatores das reformas de Temer na Câmara e no Senado se reelegeu, a sociedade puniu. Querer que o Congresso seja reformista sem o presidente ter que se desgastar, acho improvável. Não tem jeito, Bolsonaro vai ter que fazer política. Pode dar o nome que quiser, mas vai ter que fazer acordos. Isso é no Brasil e no mundo, ainda mais no nosso sistema político.

IM – O que está faltando no texto em tramitação na Câmara?

ZL – É uma boa reforma, mas acho que há dois pontos que valeria a pena reforçar: 1) a regra de transição, que acho muito lenta (20 anos); 2) policiais e bombeiros ficaram de fora na negociação no Congresso. Acho que tem que reinserir, tentar nivelar essas regras o máximo possível. É preciso ir eliminando os regimes especiais.

O que há de positivo agora é que os estados estão desesperados, então tendem a ajudar nesse convencimento. Claro que o principal aqui é Bolsonaro. Ele precisa usar sua habilidade para comunicação, mas precisa ter mais estratégia e foco. Aquilo funcionou para ganhar a eleição. Para governar o país, é outra conversa.

O desafio é da política. Não é que não exista o desafio técnico de desenhar boas leis, mas, por incrível que pareça, esse é mais fácil do que o da política. Os números estão aí, tem gente que sabe do riscado. O Armínio não conseguiu fazer uma proposta de Previdência? A questão é a política. A questão é como montar uma estratégia que garanta a aprovação de uma boa reforma, porque o risco de uma reforma aguada é concreto. Vamos ver se Bolsonaro consegue aproveitar essa elevada taxa de aprovação, e portanto lua de mel no Congresso, e correr.

O primeiro semestre é muito importante. Conseguindo uma boa notícia, ele ganha capital político e vai para o segundo semestre em outro patamar. O Banco Central deixa de subir juros. Mesmo que tenhamos volatilidade do dólar lá fora, a volatilidade dos mercados aqui é mais tênue. Agora, não temos essa resposta.

Não pode brincar com economia. Tenho convicção que Bolsonaro sabe disso. A economia é a grande âncora de governabilidade nesse país. E faz sentido. O país, com tanto desafio social, não pode brincar com isso. E inflação é o primeiro ponto: quando começa a ficar esquisita, desestabiliza. Tenho convicção de que a inflação foi um dos fatores que expulsaram Dilma. Aqui, presidente cai se brinca com a economia ou se não entrega o que a sociedade espera.

IM – Do ponto de vista microeconômico, onde é possível avançar neste momento?

ZL – Entre medidas estruturantes, tivemos reforma trabalhista, terceirização, TLP, lei das estatais. Também houve a questão de conteúdo nacional, que melhorou, marco regulatório para o petróleo, o distrato. Tem ainda em tramitação, mas já em estágio avançado, o cadastro positivo, a agenda BC+. O ponto é que Bolsonaro não começa do zero, tem um monte de proposta iniciada, umas mais avançadas, outras menos.

Precisamos observar esse tema da insegurança jurídica no país, no sentido de arrumar um pouco a forma como o Estado brasileiro trata essas normas e leis. Há muita insegurança, muito ativismo do Judiciário, do Ministério Público, do Tribunal de Contas. O Direito Econômico brasileiro precisa de um freio de arrumação sério. Aqui, um ponto de preocupação, porque não vejo Sérgio Moro abraçando essa agenda. Ninguém está discutindo isso, infelizmente.

IM – A China já manifestou incômodo com algumas posições de Bolsonaro. Emmanuel Macron (França) e Angela Merkel (Alemanha) também já deram declarações negativas sobre o presidente antes de assumir. O mundo árabe também não gostou das indicações de mudança da embaixada brasileira em Israel. No Mercosul, há dúvidas sobre os caminhos a serem seguidos. Até que ponto esses eventos podem prejudicar o desempenho da economia brasileira e o ganho de exposição de empresas nacionais no plano internacional?

ZL – Percebo que existe certa apreensão, principalmente na nossa agropecuária. Em um país que já enfrenta as incertezas do ambiente externo e da agenda de reformas, soma-se a isso a diplomacia. Há muita dúvida e incômodo com os riscos que podem vir dessas questões, que podem atrapalhar o Brasil. Tomar partido, por exemplo, na guerra comercial entre China e Estados Unidos, uma briga de cachorro grande, não vai ser bom para nós. Provocar a China não vai ser uma boa história. Temos que evitar retrocessos. Como se não bastasse o risco de não conseguir avançar, tem que evitar retrocessos, no sentido de dificultar a relação do Brasil com parceiros comerciais relevantes. É mais um fator de insegurança que o setor produtivo está lidando. Espero que prevaleça o pragmatismo.

IM – Como está seu otimismo em relação ao futuro e nossas condições de retomar um caminho para o desenvolvimento?

ZL – O Brasil precisa voltar a acompanhar o mundo. O mundo foi e a gente colapsou. Fazendo uma analogia com a medicina, estamos falando de um paciente que ainda está fragilizado, hospitalizado, que precisa de mais medicação (leia-se reformas). Os remédios foram corretos, o governo Temer tinha diagnósticos corretos e tratamento, que é a questão fiscal adequada, mas falta mais. Também tivemos equívocos no meio do caminho, como ajuste de funcionalismo. Ainda é uma economia muito frágil.

Para voltar a acompanhar o mundo, precisa garantir que a dívida pública se estabilize nos próximos anos. Isso só se faz com reforma da Previdência, que é a espinha dorsal, e outras medidas. Precisamos deste alicerce, porque, sem isso, não há como garantir inflação baixa e Selic de um dígito, não tem como garantir um ambiente macroeconômico saudável e pouco volátil.

Também vamos precisar de reformas estruturais, porque é muito possível que nosso potencial de crescimento esteja baixo – acho que está em menos de 2%. Agora está mais difícil acompanhar o mundo, foram muitos anos sem investimento e muitos retrocessos institucionais nos últimos anos. Má alocação de recursos, BNDES fazendo campeão nacional, o país construindo estádio, refinaria da Petrobras sem sentido econômico, avançando em Angra III. Foram muitos equívocos na alocação de recursos, crédito direcionado e subsídio para lá e para cá.

O mundo cresce entre 3% e 3,5%. Para acompanharmos isso, só com reforma. Essa é a responsabilidade que está nos ombros de Jair Bolsonaro. Não tenho dúvida que, do ponto de vista econômico, foi a eleição mais importante da nossa história. Se for um governo com poucas ambições, vai ser também um país com crescimento modesto. Agora, se começa com uma boa reforma da Previdência, isso vai abrindo a agenda política para outros temas e o Brasil surpreende positivamente. Só que essa resposta não temos ainda e o Brasil é um país difícil. Então, por ora estou mantendo uma expectativa mais conservadora, em que conseguimos ter algum crescimento mas ainda sem conseguir acompanhar o mundo. Tomara que eu esteja errada e que a gente tenha boas surpresas.

Tem o outro lado da história de por que eu não descarto um cenário mais benigno que esse que estou trabalhando. O Brasil é um país com muitas distorções. Todas as vezes em que apertamos os botões certos, fizemos acertos de política econômica, o país reagiu. Eu não seria tão pessimista, mas hoje precisamos de uma sinalização mais forte do governo. Ainda vamos ter que aguardar um pouco.

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Marcos Mortari

Responsável pela cobertura de política do InfoMoney, coordena o levantamento Barômetro do Poder, apresenta o programa Conexão Brasília e o podcast Frequência Política.