Bastidor de 2002: a impressionante habilidade de cooperação entre FHC e Lula na transição

"Fiquei impressionado com a habilidade com que Lula e Fernando Henrique conduziram o processo sem transparecer para o grande público que nos bastidores eles estavam cooperando intimamente", destaca Matias Spektor

Lara Rizério

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SÃO PAULO – No final de 2002, aumentavam as expectativas de que o Brasil poderia sofrer mais uma das viradas que já teve em termos políticos e econômicos.

Os temores vinham aumentando, à medida que um nome ganhava forças para ocupar a cadeira presidencial: o de Lula, um ex-metalúrgico que já teve valores bastante extremistas na área econômica.

Porém, os problemas foram amenizados. E muito disso pode ser atribuído ao que aconteceu nos bastidores entre a eleição de Lula em outubro de 2002 e a sua posse no primeiro de 2013. Para contar um pouco como se deu a transição entre os governos Fernando Henrique Cardoso para o de Lula, a Rio Bravo entrevistou Matias Spektor, cientista político e autor do livro “18 dias”, publicado pela editora Objetiva, ressaltando como FHC colaborou para conduzir a mudança de mandato para o petista. 

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Além de um gabinete criado para a política interna, o então presidente Fernando Henrique Cardoso também interveio no contexto internacional, ajudando a dissipar a desconfiança que existia do governo norte-americano em relação ao Partido dos Trabalhadores e ao presidente Lula.

O entrevistado também observa como, a partir dessa transição, a política externa brasileira estabeleceu conexão privilegiada com a diplomacia norte-americana, o que contrasta com o atual status da relação Brasil-Estados Unidos. Matias Spektor é professor-adjunto de Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas, com doutorado pela Universidade de Oxford. É autor do livro “Kissinger e o Brasil”. Confira a entrevista abaixo: 

Rio Bravo – Em relação à apuração do livro, como surgiu a proposta dessa obra?
Matias Spektor – Durante a transição de 2002, estava fazendo doutorado e uma das coisas que me chamaram a atenção era o grau de sensibilidade daquela transição. Foi a transição mais delicada da nova República nos últimos anos, porque a nossa economia estava na berlinda, a América do Sul estava desmanchando, a Argentina tinha acabado de dar o maior calote da história, a Colômbia estava perdendo a guerra contras as Farc, havia tido uma tentativa de golpe de Estado contra Hugo Chávez. No sistema internacional, estávamos caminhando em direção para a guerra do Iraque, ou seja, era uma situação muito delicada.

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Eu passei a me interessar muito pela costura política, que era a política atrás da política externa do período, pois uma transição presidencial é igual quando se troca a roda de um carro com ele em movimento, tem muitas operações delicadas aparecendo ao mesmo tempo. Fiquei impressionado, na época, com a habilidade com que Lula e Fernando Henrique conduziram o processo sem transparecer para o grande público que nos bastidores eles estavam cooperando intimamente. Na época, não tive tempo de trabalhar nisso porque estava fazendo meu doutorado.

Anos depois comecei a batalhar o acesso aos documentos, entrei com pedido de acesso à informação nos EUA, mobilizei os contatos no Brasil, fiz dezenas de horas de entrevistas com as pessoas envolvidas e, ao longo de um período de quatro anos, pude montar um acervo de documentos que me permitiram voltar aos detalhes da história que aconteceu nesse período tão importante, que tende a passar batido quando nós contamos a história.

RB – Ainda no primeiro semestre daquele ano de 2002, ganharam bastante destaque na cobertura política nacional uma declaração de Robert Zoellick sobre a necessidade do Brasil de se adequar à Alca e a não resposta, em consequência dessa declaração do Zoellick, do então candidato Lula sobre o tema, afirmando que ele não responderia ao “sub do sub do sub”. Qual era o grau de desconfiança do governo americano sobre o Brasil daquele momento? E, principalmente, com a reeleição do Lula?

MS – O governo norte-americano tinha profunda desconfiança em relação ao Brasil. Agora, é importante ressaltar que essa desconfiança se aplicava também ao governo do FHC, ou seja, o governo FHC, no quesito da ALCA, adotou uma postura negociadora de empurrar com a barriga. Quando o Zoellick falou a respeito da necessidade do Brasil se adequar ao que viria ser o sistema de regras da Alca, ele tinha em mente o governo FHC.

A reação do Lula, muito representativa da postura do PT, era a de que a Alca deveria ser ativamente resistida. Anos mais tarde o próprio Lula reconheceu que havia cometido um erro. O Zoellick era um dos principais assessores de política externa do presidente Bush e se encarregava de uma agenda bastante complexa. O governo norte-americano, na véspera da eleição brasileira de 2002, temia que a economia brasileira fosse por água abaixo e junto arrastasse boa parte da América do Sul. Esse é o contexto da eleição.

Em termos de discurso, principalmente do PT, os EUA eram considerados os parceiros mais interessantes, ainda assim, segundo o livro “18 dias”, houve uma sensação de alívio junto a staff do Lula quando do recebimento da ligação do Bush para parabenizá-lo. Na sua avaliação, uma vez no governo, o PT sempre manteve essa conduta ambivalente em relação aos EUA?
Ninguém na equipe do candidato Lula imaginou que os EUA pudessem se transformar em um parceiro preferencial de um eventual governo Lula, agora, toda a equipe e o próprio candidato tinham certeza de que uma relação negativa com os EUA teria efeitos deletérios sobre o início do governo Lula.

A equipe de Lula, ainda na eleição, percebeu que para poder avançar o programa de reformas que o PT tinha em mente, precisava de uma boa relação com os EUA. Por isso o Lula enviou o José Dirceu a Washington ainda durante a campanha e, combinando o jogo com FHC, enviou-se também o então chefe da Casa Civil, Pedro Parente, que foi à Casa Branca para recomendar ao governo Bush que abrisse a porta para o PT.

Qual foi o papel desempenhado pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso para que essas boas relações se estabelecessem?
MS – O presidente Fernando Henrique teve dois papéis fundamentais na transição presidencial de 2002. O primeiro foi interno, em que ele montou uma comissão de transição, criou 50 cargos comissionados para que a equipe do presidente eleito pudesse tomar “pé” do governo, mandou criar um portal na internet com todas as informações sigilosas e o cronograma de atividades legislativas e diplomáticas do Brasil, instruiu todos seus ministros a conversarem ativamente com a equipe que viria a assumir o governo a partir de janeiro de 2003.

Nos bastidores, FHC manteve diálogo constante com José Dirceu, à época o artífice político da chegada do Lula ao poder. Na dimensão externa diplomática, FHC mobilizou tudo o que ele tinha de acesso nos EUA e de prestígio pessoal na Casa Branca para garantir que o partido republicano, muito resistente à ideia do PT no poder, não condenasse Lula antes da hora.

RB – Em relação a esses “18 dias” que estão relatados no livro, qual foi o momento mais tenso dessas conversas?


MS – Foi, sem dúvidas, a delicadíssima operação que o governo FHC e a equipe do presidente eleito Lula precisavam fazer quando da vinda de uma missão do FMI. Pedro Malan, então ministro da Fazenda, e Antonio Palocci, representante de Lula para política econômica, precisavam combinar o jogo um com o outro para equalizar o discurso em relação ao FMI. O que eles não queriam era que o FMI impusesse regras draconianas que prendessem o início do governo Lula, mas, ao mesmo tempo, eles sabiam que precisavam mostrar ao FMI que a transição para um governo de esquerda não acarretaria uma suspensão dos contratos assinados.

Foi uma operação bastante delicada, cheia de simbolismos. No dia em que a missão do FMI pousou no Brasil, Palocci e Malan fizeram questão de ser fotografados juntos, só que é preciso lembrar que, na época, ninguém sabia que o PT honraria a carta ao povo brasileiro. Ninguém sabia que o compromisso do PT com a política econômica do FHC valeria de fato, portanto havia boa dose de desconfiança, entre Palocci e Malan pessoalmente, mas também entre seus grupos políticos. Esse, para mim, foi o contexto mais difícil da transição, tendo em vista que toda transição é muito difícil em uma democracia.

RB – Do seu ponto de vista, mesmo entre os membros do PT havia desconfiança com relação ao cumprimento dos ditames da carta ao povo brasileiro?


MS – Sem dúvida. Basta olhar, por exemplo, as declarações do então senador eleito por São Paulo, com 10 milhões de votos, Aloizio Mercadante, que era do grupo muito próximo ao candidato Lula. Tinha um discurso muito diferente do discurso de Antonio Palocci.

A equipe em volta do Lula precisou ajustar e reescrever cada um dos discursos do candidato Lula, e depois do presidente eleito Lula, porque havia facções dentro do PT que queriam empurrar o barco em uma direção distante. É necessário lembrar que o PT que chegou ao poder em 2002 é uma federação de facções, onde havia uma facção mais poderosa encabeçada pelo próprio Lula e articulada por José Dirceu, mas que de nenhuma maneira era única.

RB – Essas diversas facções em termos de política internacional mudaram com tempo seu ponto de vista?
MS –
Sim, houve muita mudança. O grupo que ocupou o palácio do Planalto (ou seja, o presidente Lula, José Dirceu, Antonio Palocci, Marco Aurélio Garcia) desenvolveu uma visão de política externa substancialmente diferente da visão da militância petista. O governo Lula adotou muitas áreas de política externa do FHC, acelerando-as e as aprofundando. Um exemplo é estratégia de lidar com Chávez. A ideia de que a postura do Brasil diante de Hugo Chávez não deveria ser desolar o Chávez, mas de trazê-lo para dentro, era uma ideia desenhada pelo governo FHC que o Lula abraçou com muito vigor.

A ideia da integração sul-americana, de trazer todos os presidentes da América do Sul para Brasília, para que lá fosse montado um projeto de cooperação sul-americana muito calcada em projetos de integração física, com investimento de infra-estrutura financiado pelo BNDES, é uma estratégia do governo FHC de 2000, que o Lula abraçou e saiu “cavalgando” com ela, produzindo anos mais tarde a Unasul. Nesse sentido, é injusto e incorreto dizer que a política externa do governo Lula é uma política externa meramente ideologizada. Claro que é ideologia, tudo no partido do poder tem ideologia, mas há linhas de continuidade entre FHC e Lula na área de política externa que são muito marcadas e que muitas vezes são esquecidas na polarização do debate público atual.

RB – Essa busca por protagonismo internacional nos últimos anos, principalmente depois de 2004, quando o Brasil começa a galgar mais espaços na política mundial, já com a chancela dos Brics e também com a busca por assento no Conselho de Segurança na ONU, também já era uma estratégia que tenha sido desenhada antes?


MS –
Isso certamente vem de antes. Na democracia brasileira todo presidente eleito tenta transformar a política externa e seu prestígio pessoal no mundo, como uma alavanca para facilitar e legitimar seu projeto de poder. Tivemos isso com José Sarney, com Fernando Collor, e certamente com Fernando Henrique Cardoso.

A política externa de FHC foi muito de prestígio pessoal do presidente, para consagrar a ideia mundo afora de que o presidente era o fiel das reformas. Lula não foi diferente. Na década de 2000, o Brasil se beneficiou regiamente do aumento dos preços de commodities, nos quais nós somos muito competitivos, de que nossa diversificação do comércio permitiu que a China nos empurrasse para cima e da percepção, depois da guerra do Iraque, de que era necessário repactuar o poder mundial. Lula beneficiou-se da crise gerada pela guerra do Iraque, no sentido de que ficou impossível fazer governança global sem ter países emergentes sentados à mesa. O Brasil se beneficiou desse processo muito típico da década de 2000, que era impensável na década de 90.

RB – A relação do Bush e do Lula foi melhor do que a relação entre Obama e a Dilma?
MS –
Sem dúvida alguma, a relação diplomática entre o Brasil e os EUA durante os governos Bush e Lula foi a mais próxima que nós já tivemos em democracia. No sentido de que os dois países abriram áreas de cooperação formal e informal, muita consulta e interlocução para discutir tema de América Latina, cooperação concreta no Caribe e na África pela primeira vez, cooperação em temas comerciais que depois acabou não vingando, mas não deixou de vingar por causa de problemas na relação bilateral, não vingou por outros fatores como o colapso da Rodada Doha. E o nível de diálogo muito mais próximo do que nós vivenciamos no passado, isso que os documentos mostram.

Isso não é como a memória histórica vai sendo construída, porque ninguém no PT gosta de reconhecer hoje em dia que o presidente Lula teve muito acesso à Casa Branca de Bush, e da mesma maneira ninguém no PSDB gosta de reconhecer que o governo Lula teve mais proximidade dos EUA do que teve FHC, em relação à Casa Branca de Clinton.

fato é que os países se aproximaram muito na década de 2000, mas boa parte dessa aproximação é explicada pela promessa de uma grande negociação comercial e pela empatia dos dois presidentes. Quando o Doha colapsou e quando esses dois homens deixaram a cena, Lula e Bush, não havia instituições nem canais formalizados de comunicação que permitissem manter o ritmo dessa parceria. No início do governo Dilma, ela fez uma sinalização de que haveria reaproximação. Obama visitou Brasília, a Dilma visitou Washington, mas essa relação nunca decolou. Depois, a crise da espionagem naturalmente terminou jogando isso por água abaixo. Depende agora do próximo governo, a partir de janeiro de 2015, para restaurar esse vinculo diplomático.

RB – Ainda sobre essa influência que os EUA exercem no mundo, em que medida essas duas crises, que você citou anteriormente entre Brasil e EUA, afetaram o cenário para além do econômico e comercial, mas o de desenvolvimento político?

MS – A crise provocada pela declaração de Teerã, ou seja, pela tentativa do Brasil e da Turquia de trazerem o Irã para a mesa de negociações a respeito de seu programa nuclear, foi o maior golpe para a relação diplomática entre Brasil e EUA nos últimos 35 anos. Em Washington, o clima ficou muito negativo em relação ao Brasil, porque a narrativa que ficou vingando foi a qual o Brasil estava sendo leniente com o governo iraniano.

No contexto da negociação com o Irã, que foi muito difícil para o presidente Lula e sua equipe, ele tentou preservar a negociação tentando reduzir as críticas daqueles que diziam que era impossível conversar com o Irã. Em um processo de fazer isso, ele terminou chamando o Ahmadinejad de “irmão”, referindo-se ao Irã como uma democracia, ou seja, fazendo menos do caráter autoritário do regime iraniano. Essas declarações caíram como bombas nos EUA. Paralelamente a isso, enquanto o Brasil estava negociando com o Irã, a então secretária de Estado, Hillary Clinton, estava negociando no Conselho de Segurança da ONU uma nova rodada de sanções.

Antes de Lula ir para Teerã negociar, a Hillary Clinton esteve no Brasil pedindo para que o Brasil não o fizesse, e o governo reagiu dizendo que o faria. É necessário lembrar que a declaração de Teerã em 2010 era vista pelo Palácio do Planalto como o coroamento da política externa de dois mandatos do presidente Lula e era a contribuição mais precisa que o Brasil poderia dar à construção da ordem internacional.

Então, o governo brasileiro estava muito investido nisso, e quando ficou claro que os EUA estavam operando contra, o governo brasileiro não teve opção a não ser a de tencionar a corda e polarizar o debate. E o resultado, como sabemos, é que a declaração de Teerã acabou não vingando. Já estava chegando ao fim o segundo mandato de Lula, nada se resolveu, e o que ficou foi uma imagem brasileira em Washington muito manchada e vice-versa, e estamos nessa situação que é muito ruim há 4 anos já.

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Lara Rizério

Editora de mercados do InfoMoney, cobre temas que vão desde o mercado de ações ao ambiente econômico nacional e internacional, além de ficar bem de olho nos desdobramentos políticos e em seus efeitos para os investidores.