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SÃO PAULO – O mercado financeiro brasileiro viveu, no último mês de junho, uma das piores crises de confiança desde a desvalorização do Real, no início de 1999. Após a divulgação de uma série de pesquisas eleitorais que apontavam o candidato do PT, Luiz Inácio Lula da Silva, se distanciando cada vez mais dos adversários, os investidores, principalmente estrangeiros, passaram a cogitar a hipótese de uma abrupta mudança no rumo da economia caso um candidato de oposição viesse a ser eleito.
Além disso, a crise se intensificou após a decisão do Banco Central estipular mudanças na contabilização de alguns ativos presentes nas carteiras dos fundos DI e de Renda Fixa. Com isso, os fundos de investimentos de algumas instituições financeiras registraram perdas consideráveis, abalando a imagem de segurança aliada à rentabilidade que essa aplicação trazia, culminando uma seqüência de saques por parte dos investidores.
Em meio à turbulência, o presidente Fernando Henrique afirmou que, caso seja eleito um presidente “incompetente”, seria possível que a economia brasileira seguisse rumo semelhante ao da Argentina. Mas, será que o Brasil pode mesmo se transformar numa Argentina?
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Regime cambial prejudicou economia argentina
Em primeiro lugar, é importante salientar algumas particularidades do regime econômico instituído desde o início da década de 90 na Argentina, o chamado currency board. Ele estabelecia que, para garantir a paridade entre o dólar e o peso, seria necessário que o volume de reservas internacionais, em dólares, equivalesse à somatória, em valores, de papel moeda circulante na economia.
Isso significa que, para cada peso que circulava no país, era necessária a presença de um dólar em reservas no Banco Central, deixando a economia vulnerável ao fluxo de capitais externos ao país. O regime, a exemplo do ocorrido no Brasil após o início do Plano Real, foi inicialmente bem sucedido, com a elevação da renda per capita e crescimento significativo do PIB (Produto Interno Bruto).
| Variação anual do PIB | Argentina | Brasil |
| 1994 | 8,9% | 5,9% |
| 1995 | 0,2% | 4,2% |
| 1996 | 5,5% | 2,7% |
| 1997 | 7,6% | 3,3% |
| 1998 | 2,1% | 0,1% |
| 1999 | -5,2% | 0,8% |
| 2000 | 0,2% | 4,4% |
| 2001 | -5,5% | 1,5% |
| 2002* | -16,3% | -0,73% |
Fonte: IBGE e Indec
* Primeiro trimestre de 2002 em relação à igual período de 2001
Porém, um dos pré-requisitos fundamentais para o sucesso do currency board é a obtenção de superávit primário, ou seja, a diferença entre os recursos provenientes dos impostos arrecadados e os gastos para manutenção da máquina pública. Mesmo ciente disso, os governantes argentinos não se preocuparam em gastar menos que arrecadavam e, com isso, os recursos de investimentos externos foram secando, já que o risco de calote aumentava conforme aumentava o déficit público.
Fechando o círculo vicioso, o governo não podia emitir mais moeda, muito menos investir em projetos que visassem crescimento da economia, como obras públicas, educação, entre outros, já que suas contas eram freqüentemente deficitárias.
Dólar barato estimulou importações
Além disso, o peso fortalecido favorecia as importações, o que desestimulava a indústria local, cujos produtos geralmente eram de qualidade inferior aos estrangeiros. Assim, o país passou a depender cada vez mais não somente de produtos externos, como de capitais estrangeiros, ao mesmo tempo em que o saldo da balança comercial, diferença entre exportações e importações, se tornava deficitário frente ao crescimento das importações.
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| Variação anual | Exportações | Importações |
| 1992 | 3,4% | 80,2% |
| 1993 | 6,5% | 15,8% |
| 1994 | 20,6% | 27,8% |
Fonte: Indec
Diferentemente da Argentina, o regime cambial brasileiro também estabelecia a paridade entre o dólar e o Real, mas a cotação da moeda norte-americana era mantida à custa de queima de reservas pelo Banco Central. Além disso, o dólar nunca circulou na economia brasileira como ocorre na Argentina, onde era possível até mesmo depositar dólares nos bancos e utilizar a moeda norte-americana para pagamento de serviços ou produtos.
Argentina passa por grave crise econômico-social e institucional
Assim, a Argentina começou a enfrentar, desde o final de 2000, sérias crises de desconfiança por parte dos investidores internacionais. Nem mesmo com uma série de empréstimos, concedidos principalmente pelo FMI (Fundo Monetário Internacional) em 2000 e 2001, os governantes argentinos conseguiram sanear as contas públicas e passaram a penalizar a população, essencialmente através de cortes de salários, como o ocorrido com as aposentadorias, e elevação de impostos.
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Com isso, o povo foi ficando cada vez mais descontente e receoso, à medida que a crise financeira se intensificava. Assim, a renúncia do então Ministro da Economia, Domingo Cavallo, e do presidente, Fernando de la Rúa, em meio a grandes protestos de manifestantes, gerou outra crise no país, a institucional.
Como o vice-presidente já havia renunciado há bastante tempo, somente em janeiro, após desistência de outros políticos, o peronista Eduardo Duhalde aceitou assumir o cargo para tentar re-estabelecer a ordem no país.
Porém, após decretar moratória e estabelecer a flutuação livre do câmbio, a Argentina tem enfrentado sérios problemas para conseguir novos empréstimos, enquanto a crise social se agrava, levando metade da população da grande Buenos Aires a níveis inferiores à chamada linha de pobreza.
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| Variação anual (2002) | Exportações | Importações |
| Janeiro | -10,6% | -56,3% |
| Fevereiro | -1% | -64,3% |
| Março | 2,1% | -70,9% |
| Abril | -10,2% | -68,1% |
| Maio | -8,7% | -58,6% |
Fonte: Indec
Situação brasileira preocupa
Logo, é pouco provável que a economia brasileira tenha o mesmo trágico destino da Argentina, já que o PIB brasileiro, apesar da conjuntura externa adversa dos últimos anos, manteve-se em crescimento e as taxas de desemprego no Brasil sempre foram inferiores às da Argentina.
| Desemprego | Argentina | Brasil |
| 1991 | 6% | 5% |
| 1992 | 7% | 6,2% |
| 1993 | 9,3% | 5,2% |
| 1994 | 12,1% | 4,7% |
| 1995 | 16,6% | 5,3% |
| 1996 | 17,3% | 5,4% |
| 1997 | 13,7% | 5,9% |
| 1998 | 13,2% | 7,7% |
| 1999 | 14,5% | 7,8% |
| 2000 | 13,8% | 6,9% |
| 2001 | 14,7% | 6,7% |
Fontes: IBGE e Indec
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Além disso, o Brasil não corre o risco de atravessar por uma crise institucional nos próximos anos, já que o poder do Presidente da República, assim como de outros componentes do Poder Público, é bem definido e não existe tamanha agitação social no Brasil. No entanto, existem alguns fatores preocupantes. Dentre eles, é importante citar a desaceleração do ritmo de crescimento da economia brasileira. Em meio à recessão mundial, não seria de se esperar que o Brasil saísse ileso.
Porém, alguns fatores como o racionamento de energia, em 2001, a desvalorização do real e a alta taxa de juros, aliada ao crescimento do desemprego e à queda da renda da população, acabam acentuando essa trajetória de queda do crescimento da economia. Além disso, a elevação do nível de desemprego nas maiores cidades brasileiras começa a preocupar, na medida em que o número de trabalhadores desempregados bate níveis recordes.
| Desemprego | SP | RJ | BH |
| Janeiro | 7,2% | 5,7% | 8,1% |
| Fevereiro | 8,3% | 4,6% | 7,2% |
| Março | 8% | 7,9% | 7,3% |
| Abril | 8,9% | 6,3% | 7,1% |
| Maio | 9,2% | 5,7% | 8% |
Fonte: IGBE
| Período | Variação anual da renda do trabalhador |
| 1994 | 6% |
| 1995 | 11% |
| 1996 | 7% |
| 1997 | 2% |
| 1998 | 0% |
| 1999 | -5,5% |
| 2000 | -0,6% |
| 2001 | -3,9% |
Fonte: IBGE
Dados deflacionados pelo INPC (Índice Nacional de Preços ao Consumidor
Junte-se a isto o fato de que o mercado financeiro atravessa período de grande tensão, associado às incertezas em relação ao quadro sucessório presidencial brasileiro, que segue indefinido. Finalmente, a crescente elevação da dívida pública, que já atinge R$ 708 bilhões, registrou assustadores patamares de 56% do PIB (Produto Interno Bruto), bastante superior aos 30% do início do primeiro mandato de Fernando Henrique, alimentando as dúvidas quanto à capacidade do governo em arcar com suas dívidas.
Situação brasileira é delicada, mas bom senso deve prevalecer
Em resumo, a situação brasileira atual é difícil, mas tem um forte componente eleitoral. Embora existam grandes diferenças nos programas de governo dos principais candidatos, a opinião pública já começa a cobrar uma postura mais séria e em linha com os princípios de mercado, o que tem levado alguns candidatos a mudarem algumas linhas básicas de seus programas.
Com isso, desde que o próximo presidente mostre uma atitude consciente e em linha com as necessidades da economia do país, a chance do Brasil seguir a Argentina são muito pequenas. Porém, a adoção de políticas econômicas inconsistentes e de medidas populistas pode levar a uma severa deterioração do cenário, talvez não tão profunda como no caso argentino, mas ruim suficiente para muita gente se arrepender do seu voto.