Por que as SPACs estão em uma corrida bilionária pelas empresas de tecnologia da América Latina?

SPACs com tecnologia latino-americana entre os alvos estão levantando quase R$ 7 bilhões. Potencial do setor e remuneração atrativa estão entre motivos

Mariana Fonseca

Vista do mirante da Avenida Paulista (Fernando Fileno/ Getty Images)

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SÃO PAULO – O que gestoras como SoftBank, Valor Capital, XP Investimentos e Kaszek têm em comum? Elas vão investir em empresas de tecnologia da América Latina de uma nova forma, sem anunciar rodadas de venture capital e private equity ou roadshows para IPOs.

Esses fundos receberam “cheques em branco” de investidores para tomar um atalho para os mercados públicos, por meio da criação de “empresas de aquisição com propósito específico”. Mercado Livre e Kaszek foram os mais novos a engordar essa lista, com a captação de um “cheque” de US$ 287 milhões na última quinta-feira (30).

Tais empresas também são conhecidas como SPACs. Elas movimentaram mais de US$ 126 bilhões apenas neste ano e nos Estados Unidos. Agora, crescem tanto em geografia quanto em segmentação setorial.

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O Do Zero Ao Topo, marca de empreendedorismo do InfoMoney, calculou que apenas as SPACs que colocam tecnologia latino-americana entre seus alvos de aquisição abertas nas bolsas americanas estão levantando US$ 1,317 bilhão, ou R$ 7,07 bilhões pela cotação atual. Também conversou com fontes de mercado para entender por que elas estão apostando nesse formato de aplicação financeira e na tecnologia da América Latina.

Os especialistas também refletem se essas SPACs poderão mostrar um desempenho diferente das SPACs americanas e de boa parte das empresas de tecnologia abertas até o momento na B3. A Bolsa de Valores brasileira também falou ao Do Zero Ao Topo sobre seu interesse futuro em SPACs criadas no país.

“Cheques em branco” para a América Latina

Os SPACs (Special Purpose Acquisition Companies), ou companhias de propósito específico de aquisição, são empresas que servem apenas para comprar outras empresas e abrir seu capital sem passar pelo lento, incerto, longo e arriscado processo de tradicional de IPO.

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O patrocinador (sponsor) cria uma pessoa jurídica, que abre o capital na bolsa mesmo sem produzir nada ou prestar nenhum serviço. Essa empresa é só uma casca, ou shell company. Depois de investidores embarcarem nessa oferta inicial da SPAC, inicia-se uma contagem regressiva. O “negócio de fachada” tem dois anos para encontrar um alvo de aquisição. Com o contrato fechado, a SPAC deixa de existir e as ações listadas da shell company passam a representar a da empresa adquirida. A ideia é acelerar a entrada na Bolsa de negócios privados.

Os investidores escrevem um “cheque em branco” para os gestores da SPAC. Então, eles devem ter um bom histórico de encontrar e desenvolver novos negócios. As SPACs tendem a adquirir companhias que prometem crescimento, mas ainda não estão bem estabelecidas em termos de receita, lucratividade ou marca a ponto de chamar a atenção dos investidores. Os prospectos podem conter indicações de quais setores estão sendo considerados, assim como a área de atuação dos patrocinadores.

Os recursos dos investidores ficam em uma conta de destinação específica para a operação, e o investidor que não concordar com a empresa recebida pode receber seu dinheiro de volta com uma correção conservadora.

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Gestoras com histórico de investimento em tecnologia estão entre as promotoras dos SPACs que buscam techs na América Latina. Por exemplo, a Alpha Capital tem o ex-presidente da Qualcomm na América Latina entre seus membros. A SPAC captou US$ 230 milhões. O SoftBank captou US$ 200 milhões para sua SPAC na América Latina, chamada LDH Growth I. O anúncio veio alguns meses antes de anunciar um novo fundo de venture capital para a região.

O Valor Capital Group, fundo que tem empresas como os unicórnios Gympass e Loft no portfólio, lançou a Valor Latitude Acquisition, SPAC que levantou US$ 200 milhões. Por fim, a empresa de e-commerce Mercado Livre e o fundo de venture capital Kaszek levantaram US$ 287 milhões com sua SPAC.

Outros SPACs colocam o setor de tecnologia como uma dentre diversas possibilidades. É o caso da Itiquira Acquisition Corp., formada por ex-executivos de EBX, Credit Suisse e XP. A Itiquira levantou US$ 200 milhões para investir em uma empresa brasileira nos segmentos de tecnologia, saúde e educação. A XP Investimentos também captou US$ 200 milhões em seu SPAC, que investirá em uma empresa de saúde, serviços financeiros, consumo e varejo, tecnologia ou educação.

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Todas essas gestoras fazem uma aposta acumulada de US$ 1,317 bilhão (R$ 7,07 bilhões) na tecnologia na América Latina.

Por que SPACs?

SPACs unem etapas típicas de uma negociação privada com as de uma negociação pública, segundo os especialistas ouvidos pelo Do Zero Ao Topo. Assim como em um fundo de venture capital e private equity, os investidores confiam seus recursos no currículo e na tese de investimento de seus gestores. O processo de diligência e avaliação das empresas é delegado aos fundos e se faz em diversas conversas, não por um documento de prospecto com os riscos envolvidos.

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Porém, as rodadas de venture capital e private equity costumam focar em empresas menos maduras, ter tíquetes menores e uma presença mais marcante das gestoras na operação. Nesses quesitos, a SPAC se aproxima mais das empresas que estão dando o pulo para a abertura de capital. O resultado é o mesmo de uma oferta pública inicial de ações: uma companhia capta recursos ambiciosos e se torna negociada na Bolsa de Valores. Os acionistas têm pouca participação na administração do novo negócio.

Para as empresas adquiridas, a SPAC é uma forma de acelerar suas entradas no mercado acionário. “A companhia precisa fazer um roadshow, contratar bancos, pedir registros regulatórios, emitir uma análise preliminar e estipular uma faixa de preço para suas ações. Mas essa cotação só se sabe efetivamente no dia da estreia, dependendo da disposição dos investidores e do momento no mercado acionário”, explica Carlos Lobo, sócio do escritório Hughes Hubbard and Reed Advogados.

O SPAC é uma economia de tempo, dinheiro e volatilidade. A avaliação da empresa-alvo e seu preço de aquisição se definem antes mesmo da chegada à Bolsa. No caso das empresas de tecnologia, as negociações privadas também permitem apresentar projeções futuras de receita para justificar uma avaliação de mercado menos conservadora. Os prospectos costumam usar dados históricos ou de mercado.

Mário Mello, sócio do Valor Capital Group, afirma que os fundadores podem “deixar menos dinheiro na mesa” por meio das SPACs. “Um estudo do Bank of America mostra que a valorização da ação no primeiro dia das empresas em tecnologia gira em torno de 50% a 60%. Quando analisamos SPACs, esse número é de 10%”, diz. Mello também destaca o earn out, ou pagamento realizado aos antigos donos quando a empresa-alvo bater metas pré-estabelecidas no contrato de aquisição. “Existe mercado para IPO e para SPAC. No momento, estamos muito seguros das vantagens da SPAC em relação ao IPO.”

Especificamente para os gestores, outro grande atrativo está na remuneração das SPACs. Os fundos detêm um promote, ou participação na nova empresa formada após a aquisição. Essa fatia costuma ficar em 20%, uma diluição superior à geralmente vista nos IPOs.

Por que tecnologia na América Latina?

As gestoras dos atuais SPACs investem há anos nas empresas de tecnologia latino-americanas por venture capital, private equity ou IPOs. O momento tem sido bom para o setor: uma combinação de taxas básicas de juros baixas mundialmente e a digitalização forçada pela pandemia impulsionou o investimento nas empresas de tecnologia nos últimos anos.

“Os patrocinadores estão num ambiente de mercado em que conseguem levantar US$ 300 milhões com investidores. Agora, veem nas SPACs uma opção altamente rentável para fazer uma rodada desse tamanho”, analisa Renato Pavan, sócio da gestora de venture capital KPTL.

O resultado está em mais aportes e IPOs no setor de tecnologia. Segundo o Inside Venture Capital, relatório da empresa de inovação Distrito, US$ 5,2 bilhões foram investidos em startups brasileiras por venture capital e private equity no primeiro semestre deste ano. É um recorde histórico, superando em 45% o visto ao longo de todo o ano de 2020. Na comparação apenas com o primeiro semestre de 2020, a alta é de 299%.

Considerando apenas empresas públicas, o valor de mercado das companhias de tecnologia nacionais como porcentagem do PIB foi estimado em 2,8% em 2020. Em 2021, a projeção é chegar a 4,5%. “Tínhamos janelas de IPOs concentradas em segmentos, como só imobiliário ou só saúde. De 2019 para cá, vimos uma elevação e uma diversidade de ofertas públicas no Brasil, incluindo um apetite do mercado em viabilizar as companhias de tecnologia”, afirma Flavia Mouta, diretora de emissores na B3. “Vimos também a fusão de vários segmentos com a tecnologia. É difícil ver uma empresa listada que não coloca em sua documentação alguma pegada de tecnologia. É um atrativo também ao investidor pessoa física, que cresceu nos últimos anos dentro da B3.”

Mas ainda existe potencial de expansão: nos Estados Unidos, o valor de mercado das companhias de tecnologia nacionais como porcentagem do PIB foi de 48,2% em 2020 e deve chegar a 69,8% em 2021. Na China, esse mesmo percentual deve ser de 30,2% neste ano e na Índia, de 14,2%. “O espaço para techs é grande em mercados digitalizados, mas com muitas ineficiências. O Brasil ainda tem os adicionais de ter barreiras de entrada burocráticas para a entrada de players estrangeiros, e uma Bolsa de Valores ainda muito tradicional. É um dos poucos mercados em que uma empresa pode virar unicórnio apenas com atuação nacional”, diz Pavan.

O Valor Capital Group investiu em empresas como Coinbase, Gympass e Stone quando elas estavam em um estágio mais inicial. “O mercado amadureceu bastante. Vimos os fundos que começaram como early stage passarem para growth, e o SPAC é uma extensão natural desse ciclo”, afirma Mello. “O movimento está atrelado ao conhecimento que acumulamos do mercado latino-americano, especialmente o brasileiro, e ao histórico de performance dos nossos fundos anteriores. É uma questão de oportunidade, de olhar os melhores ativos brasileiros e ter a vantagem de sermos os primeiros a nos mover.”

Alerta de desempenho

Segundo a empresa de dados SPAC Research, os IPOs por meio de SPACs já levantaram mais de US$ 126 bilhões em 2021 nos Estados Unidos. Em 2020, foram US$ 83,4 bilhões.

Mas a arrecadação não tem se refletido em bons resultados, pelo menos na média. Um estudo da Universidade de Stanford mostrou que cada US$ 10 investidos viram US$ 6,67 na mão da empresa-alvo, quando se leva em consideração que parte de suas ações foram para promotes, direito de compra adicional de ações na mesma cotação do período de aquisição (warrant) e outras taxas. Em média, os investidores em média veem o preço de sua ação cair um terço depois da aquisição.

Pavan, da KPTL, afirma que as taxas e a oportunidade de saída rápida são incentivos para que os patrocinadores façam uma negociação mediana ou em uma avaliação de mercado cara. Do lado das empresas, a SPAC permite a oferta pública de negócios que talvez não estejam prontos para um IPO. Portanto, a escolha de um bom patrocinador e a de um bom negócio são essenciais para o investidor não sair perdendo.

“Existe um retorno bem positivo aos patrocinadores e uma parte pequena do que o investidor coloca chega a algum tipo de valor para a SPAC. Então, a capacidade de fazer uma boa negociação e ter múltiplos de retorno é ainda mais importante nesse tipo de investimento. A diferença é grande entre os sponsors mais e menos notórios”, afirma Pavan.

O índice CNBC SPAC 50, que acompanha as 50 maiores SPACs americanas que ainda não fecharam uma aquisição, caiu em 2021. A baixa está em cerca de 4% no acumulado do ano. O índice IPOX SPAC (SPAC), que acompanha o desempenho de um amplo grupo de empresas de cheque em branco, apresentou queda de cerca de 8,32% neste ano.

Para Carlos Lobo, da Hughes Hubbard and Reed Advogados, o intervalo de análise ainda é muito curto para tirar conclusões. “A SPAC ganhou tração mesmo em 2020. O risco existe de a avaliação dos gestores ser inflada e de tanto o valuation quanto o papel da empresa-alvo cair assim que o mercado digerir as informações. Assim como existe a chance de essa depreciação ser momentânea e o papel voltar a uma performance favorável em longo prazo. Muitas empresas de tecnologia performam mal nos primeiros meses, especialmente em um segmento novo e sem o costume de avaliação dele.”

A quantidade de ofertas também está caindo ao longo deste ano. O pico aconteceu em fevereiro, com 143 IPOs. Em agosto, foram apenas cinco, segundo a consultoria FactSet.

Segundo Lobo, as ofertas foram afetadas tanto pelas discussões regulatórias com a Securities and Exchange Comission (SEC) quanto por meses fortes anteriormente.

“Aconteceram muitos IPOs de SPACs em fevereiro. Existe um universo limitado de investidores e eles já estão com essa classe de ativos na carteira agora. Os últimos meses foram de esperar a realização dos investimentos para partir para novos SPACs”. Luciana Simões, sócia da área de Mercado de Capitais do Baptista Luz Advogados, concorda que seja uma questão de cronograma dos patrocinadores. “Nesses primeiros meses houve a captação. Agora, estão na corrida contra o tempo para negociar com as empresas-alvos.”

Não é apenas o desempenho das SPACs que está em xeque. Um levantamento da Economática mostrou que apenas três empresas do setor de tecnologia que abriram capital desde o ano passado registram valorização até o momento.

Os especialistas concordam que as atuais SPACs de olho na tecnologia da América Latina olham menos para o desempenho das techs na B3 e mais para desempenhos privados ou de techs nas bolsas americanas. “As gestoras olham para o universo das empresas fechadas de tecnologia: suas rodadas ambiciosas de investimento, suas avaliações crescentes e suas listagens bem sucedidas nos Estados Unidos. O papel no Brasil pode estar volátil por fatores que não tem nada a ver com a companhia, como riscos políticos e do próprio país”, diz Lobo.

Pavan também ressalta que a B3 ainda tem uma amostra pequena de empresas de tecnologia. “Se você olha o avanço de tecnologia ao longo dos anos nas bolsas americanas, você vê empresas como petrolíferas, supermercados e bancos dando espaço para as empresas de tecnologia, ou os próprios negócios tradicionais viram techs. É um movimento que tende a ser parecido por aqui nos próximos anos ou décadas”. “Definitivamente tem espaço para crescer. Recém começamos a trazer esse segmento para a B3, e as empresas de tecnologia precisam de capital intensivo para se desenvolver”, completa Flavia, da B3.

Essas SPACs podem chegar à B3?

Todas as SPACs mencionadas foram abertas nas Bolsas de Valores dos Estados Unidos, como Nasdaq e NYSE. Mas a primeira empresa do gênero na bolsa brasileira pode vir em breve. A consultoria Alvarez & Marsal solicitou recentemente um registro de companhia aberta junto à Comissão Mobiliária de Valores (CVM) para fazer uma oferta nos moldes de uma SPAC. No momento, não há restrições legais para uma oferta do tipo, mas ainda não existe uma regulação específica. A CVM está discutindo o tema.

Flavia, da B3, afirma que a instituição também está analisando o tema das SPACs no Brasil. “Entendemos que é saudável trazer mais uma opção de investimento, e interagimos com escritórios que assessoram essas operações nos Estados Unidos para entender a dinâmica em detalhes. Não existe uma vedação aos SPACs na legislação brasileira, mas isso não significa que não possamos estudar e melhorar nosso arcabouço para viabilizá-los no nosso mercado. As regras do jogo têm de ficar claras aos investidores.”

“A tendência é que tenhamos um modelo similar ao americano, no qual as regras específicas para SPACs estão dentro de normas gerais. Não vejo uma grande necessidade de adaptações no nosso arcabouço regulatório”, diz Lobo, do Hughes Hubbard and Reed. Para Luciana, do Baptista Luz Advogados, haverá uma alteração da instrução 400, que regula as ofertas públicas de distribuição de valores mobiliários no país.

As regras específicas devem girar em torno de quais informações precisam ser dadas ao investidor para o IPO do patrocinador, incluindo remuneração, riscos e conflitos de interesse; se o patrocinador terá um tempo mínimo exigido de posse das ações da empresa-alvo; qual deve ser o público-alvo das SPACs, entre investidores profissionais, qualificados ou de varejo; se o veículo de investimento deve ser uma sociedade anônima (SA) ou um fundo de investimento em participações (FIP); e como deve ser o processo de incorporação da empresa privada pela shell company.

Para Luciana, as SPACs já lançadas nos mercados acionários americanos e as previstas para a B3 podem fomentar ainda as empresas de tecnologia da América Latina. “É uma forma de conectar o negócio a mais investidores. Existe uma grande possibilidade de projeção, concorrência e consolidação de empresas no setor”.

Mello, do Valor Capital Group, afirma que a gestora está aberta a SPACs na B3. “Porém, estamos muito concentrados no nosso SPAC no momento. De todo modo, temos acompanhado esse movimento e a abertura do mercado brasileiro, liderada pela B3”. Resta ver se a febre vai pegar por aqui – e se o desempenho vai ficar acima da média.

Mariana Fonseca

Subeditora do InfoMoney, escreve e edita matérias sobre empreendedorismo, gestão e inovação. Coapresentadora do podcast e dos vídeos da marca Do Zero Ao Topo.