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NOVA YORK – Na semana passada fui ao James, um restaurante no Brooklyn, encontrar amigos. Como tantos moradores de Nova York, tenho de aproveitar os últimos dias em que ainda dá para sentar ao ar livre – “o inverno está chegando”, como dizem em “Game of Thrones”.
Toda a equipe estava do lado de dentro, com exceção de um único garçom que, de luvas e máscara, trazia a comida e os drinks. As outras interações eram feitas pelo celular.
Em todas as mesas havia um display com um QR code. Basta fotografá-lo com o celular para ser direcionado a um site com o cardápio. O cliente pode fazer o pedido e pagar pelo smartphone (embora uma funcionária postada na porta, de máscara e guardando distância segura, também tirasse pedidos e recebesse pagamentos).
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O James é um dos vários exemplos de uma realidade que muitos acreditavam ser passageira, mas que, como o coronavírus, deve fazer parte de nossa vida por um bom tempo: a vida low touch, ou de pouco contato.
Enquanto alguns países europeus voltam a decretar medidas radicais de isolamento para conter uma nova escalada onda da pandemia, em outras partes do mundo a economia voltou a funcionar – mas de maneiras muito diferentes.
Sentar-se à mesa e pedir a comida pelo celular é, na prática, uma transação de comércio eletrônico in loco. Ou talvez a comparação mais adequada seja comprar online e retirar na loja.
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Essa modalidade de venda pela internet, aproveitando a conveniência e a capilaridade da rede de lojas, é uma das grandes transformações da pandemia e deve ser uma realidade para todos os varejistas no futuro.
Segundo uma pesquisa da consultoria Digital Commerce 360, 53% dos varejistas esperam que o BOPIS (sigla em inglês para “comprar online e retirar na loja”) se torne cada vez mais importante para seus negócios.
Entre os supermercados, esse tipo de venda aumentou 81% entre janeiro e junho – enquanto os pedidos para entrega em casa cresceram 33%.
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Em alguns casos, isso representa uma mudança radical nos negócios. O Walmart treinou mais de 30 mil funcionários para buscar nas lojas os produtos que seus clientes colocaram em seus carrinhos virtuais.
A rede americana Albertsons criou mini centros de distribuição em suas lojas para atender a esse tipo de demanda – o que ajuda a evitar a superlotação dos corredores.
Mas alguns varejistas vão ainda mais longe: eles estão abrindo lojas em que os clientes não podem entrar. Elas são parecidas com um supermercado tradicional, mas sem a sinalização de marketing, os itens estrategicamente posicionados para estimular as compras por impulso e, é claro, os caixas.
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O Walmart abriu um protótipo chamado Walmart Pickup Point na região de Chicago. O espaço era ocupado por um supermercado, mas agora está fechado para o público. Os clientes fazem o pedido pela internet, estacionam o carro e um funcionário coloca as compras diretamente no porta-malas. A dark store também atende pedidos de delivery.
“Todas as redes do mundo farão o mesmo no futuro”, afirmou numa entrevista recente Ken Morris, da consultoria Cambridge Retail Advisors. “E o futuro é agora, porque a Covid-19 acelerou esse tipo de iniciativa.”
Ginástica na sala
O comércio eletrônico é só a parte mais visível da economia low touch, e para muita gente as compras pela internet já faziam parte da rotina. Mas as mudanças vão além do varejo.
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Considere as academias, um setor particularmente atingido pela pandemia. Exercitar-se em casa não é uma ideia nova – há quase 40 anos a atriz Jane Fonda já vendia aulas em fitas VHS.
Mas a ideia nunca pegou de verdade – até as academias serem vistas como um risco de adoecer, não como um lugar para ficar mais saudável.
A Peloton, empresa que vende ergométricas e esteiras e oferece aulas ao vivo pela internet, mais que dobrou seu número de usuários em relação ao ano passado.
A Smart Fit, maior rede de academias do Brasil, já reabriu a maioria de suas unidades, mas com limites de ocupação. Para manter a clientela ativa, a companhia criou a plataforma Treine em Casa e adquiriu o serviço Queima Diária.
Mas o maior sinal de que a tendência malhar em casa parece destinada ao mainstream foi um anúncio da Apple, feito em setembro. A empresa vai lançar até o fim do ano o serviço Apple Fitness+.
Mediante uma mensalidade de 10 dólares, os assinantes terão acesso a aulas de 10 modalidades diferentes. O serviço vai funcionar em conjunto com o Apple Watch, para monitorar batimentos cardíacos e queima de calorias, por exemplo.
No mundo do entretenimento, a situação não é muito diferente. Na maior parte do mundo, os cinemas ou estão fechados ou operam às moscas – enquanto os serviços de streaming batem recorde atrás de recorde.
No ano passado, os cinemas americanos venderam cerca US$ 11,3 bilhões em entradas. Este ano, a receita até aqui foi de pouco mais de US$ 2 bilhões. Dois grandes blockbusters do ano, “Tenet” e “Mulan”, tiveram desempenho muito aquém do esperado, apesar do adiamento das estreias.
Uma das consequências da pandemia foi a redução das chamadas janelas de distribuição. Tradicionalmente, os filmes eram lançados nos cinemas e só chegavam ao pay-per-view meses depois. Por causa da pandemia, o prazo encurtou dramaticamente: a animação “Dois Irmãos: Uma Jornada Fantástica”, da Pixar, estava disponíveis para consumo doméstico duas semanas depois da estreia.
Apesar da comodidade de serviços como Netflix e Amazon Prime Video, a bilheteria dos cinemas ainda é parte essencial do negócio do cinema. De um total de US$ 136 bilhões de dólares movimentados no ano passado, US$ 42 bilhões vieram da venda de entradas.
Mas, se a história do mercado da música serve como indicador, quando a conveniência entra em cena é praticamente impossível tirá-la da equação. Serviços de assinatura como Spotify e Apple Music devastaram a venda de MP3 – que por sua vez deram um golpe mortal na venda de discos físicos.
Com exceção da China, que tornou-se o maior mercado cinematográfico do mundo, na maioria dos países o público que frequenta cinemas está em queda, apesar do aumento do conforto das salas e das inovações em som e áudio.
Mas é difícil competir com o sofá da sala e uma TV conectada à internet. Uma relação custo-benefício que já era atraente antes de março tornou-se imbatível desde o começo da pandemia.
A vida longe do escritório
Quanto à atividade que consome a maior parte dos nossos dias – o trabalho –, ainda existem mais dúvidas do que respostas.
No segundo debate entre os candidatos à Presidência dos Estados Unidos, Donald Trump afirmou que Nova York virou uma “cidade fantasma” por causa das restrições impostas pelo governo local (que é democrata).
Não é verdade, nem de perto. Mas é visível que algumas regiões, como Midtown, que concentra maior parte dos prédios de escritório da cidade, seguem com pouca movimentação.
Uma pesquisa recente realizada pela Partnership for New York City, entidade que reúne empresas que fazem negócios na cidade, indica que 90% do funcionários de escritórios ainda estão trabalhando de casa. Em julho do ano que vem — daqui oito meses — a expectativa é que somente 48% tenham voltado às suas mesas.
Além do impacto óbvio no setor de imóveis comerciais, algumas companhias já imaginam um futuro do trabalho pós-pandemia muito diferente, com mais flexibilidade de horários, menos exigência de presença física e otimização do uso dos espaços.
Mas estes são todos pontos que podem ser expressos em linhas de planilhas. Mais difícil será medir o “batimento cardíaco” desse escritório virtual, como diz Vaibhav Gujral, da consultoria McKinsey & Company, “a energia dos encontros casuais, a criatividade da colaboração espontânea, a confiança e os relacionamentos construídos ao longo de horas de interações e pequenos gestos silenciosos”.
O serviço de videoconferências Zoom entrou para o vocabulário de quase todas as línguas do mundo. Mais recentemente, essa entrada ganhou um apêndice: “fadiga do Zoom”. Até quando teremos uma vida low touch no trabalho?