Fundos apoiam empreendedores nas periferias com dificuldade de acesso ao crédito

Organizações e entidades do setor privado se juntam para ajudar empreendedores nas periferias e favelas do Brasil durante a pandemia

Pablo Santana

Michelle Fernandes, proprietária da marca Boutique de Krioula

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SÃO PAULO –  Diante do cenário formado pela pandemia de coronavírus, organizações de fomento ao afroempreendedorismo e desenvolvimento de negócios nas periferias estão criando fundos emergenciais para conter os efeitos da crise na vida dos empreendedores que atuam nesse segmento.

Mesmo com as políticas de ampliação ao crédito criadas pelo governo para ajudar as micro e pequenas empresas durante o período de distanciamento social – que resultou no fechamento da maioria dos negócios -, esse grupo de empreendedores ainda encontram dificuldades para conseguir empréstimo no mercado tradicional.

Os fundos, frutos da construção de soluções coletivas através da aliança de atores do setor privado e sociedade civil, trabalham com dois modelos de destinação dos seus recursos para apoio dos negócios periféricos: doação e empréstimos a custos reduzidos e com maiores prazos de pagamento.

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O cenário fez com que a Coalizão Éditodos, aliança fundada em 2017 entre as organizações AfroBusiness, Agência Solano Trindade, Pretahub, FA.VELA, Instituto Afrolatinas e Vale do Dendê mudasse seu plano de atuação para este ano e criasse o Fundo Emergências Econômicas.

“Começamos a fazer o planejamento da coalizão para construir a teoria da mudança com as seis instituições, de repente veio a Covid-19 e vários empreendedores chegaram nas nossas redes pedindo suporte”, lembra Adriana Barbosa, presidente da Pretahub – organização que promove aceleração, capacitação técnica e criativa de negócios desenvolvido por empreendedores negros.

A iniciativa, que já recebeu aporte de investimento da Fundação Itaú, Assaí Atacadista, Fundação Arymax e Instituto C&A, pretende arrecadar R$ 1 milhão para apoiar financeiramente cerca de 500 micro e empreendedores informais que participam ou já passaram por algum projeto desenvolvido pelas organizações da coalizão em oito estados do Brasil.

Os beneficiários receberão R$ 2 mil para enfrentar o período de isolamento social e cobrir as demandas que julgarem necessárias. O fundo tem como público alvo majoritário mulheres negras e os negócios são selecionados a partir de critérios que avaliam questões como vulnerabilidade econômica, território (moradores de centros urbanos, favelas e periferias) e idade – uma cota dos recursos estão sendo destinados para mulheres acima dos 50 anos.

“Deixamos em aberto a forma como eles podem utilizar esse recurso, desde que usem para cobrir despesas pessoais, como alimentação, despesas médicas ou cobrir custos e investir nos próprios negócios. Entendemos que, às vezes, esse perfil mistura as contas pessoais com as da empresa, então precisamos apoiá-los nesse sentido completo”, explica o publicitário e co-fundador da holding social baiana Vale do Dendê, Paulo Rogério Nunes.

Além da doação, os negócios ajudados pela coalização serão monitorados até o final da pandemia e capacitados para se planejar durante e pós quarentena. Uma das frentes de formação é a transformação digital. Nunes pontua que o processo de digitalização é primordial para a manutenção dos negócios no futuro, considerando as mudanças sociais causadas pelas pandemia de coronavírus nos hábitos de consumo.

Dados levantados pelas organizações da coalizão revelam que 82% dos 14 milhões de empreendedores negros no Brasil já utilizaram dos próprios recursos para alavancar o negócio e 23% recorreram a empréstimos de amigos e familiares.

A dificuldade de acesso a credito, alinhada a questões de endividamento das micro e pequenas empresas, que representaram 94,2% dos empreendimentos com contas atrasadas e negativadas em janeiro deste ano, segundo o Serasa Experian, foram alguns dos motivos que fizeram as organizações optarem por uma doação emergencial ao invés de criar uma linha de crédito.

“Optamos pela doação não por ser contra a uma linha de crédito, mas não queremos ser mais um calo no pé do empreendedor. O que queremos é poder apoiar esse empreendedor nesse momento com questões mais emergenciais. No segundo momento, iremos suportá-los nessa jornada empreendedora para que ele possa se planejar no futuro. O recurso financeiro é importante, porém também estamos nos colocando à disposição para apoiar o negócio”, pontua Adriana.

Condições especiais

O Fundo Periferia Empreendedora criado pela Firgun – plataforma de empréstimo coletivo -, em parceria com a escola de negócios da periferia Empreende Aí e a Impact Hub, organização que conecta empreendedores ao ecossistema de fomento e inovação, está oferecendo uma linha de microcrédito especial para micro e nano empreendedores das periferias, com dificuldade de acesso a crédito em organizações públicas e privadas tradicionais.

O fundo oferece de R$ 500,00 a R$ 3.000,00 para empreendedores da periferia, como Michelle Fernandes, proprietária da marca Boutique de Krioula, conseguirem passar pelos meses de crise, com juros de 1% a.m., 120 dias de carência e parcelamento em até 20 vezes.

A análise de crédito e gestão do fundo será feita pela Firgun, que atua com empréstimos coletivos e concessão de microcrédito para empreendedores de baixa renda há 3 anos.

“Olhamos se esses empreendedores pertencem a grupos minoritários (renda, gênero, raça, refugiados e imigrantes) e se são pessoas que não têm condições de pegar crédito nos bancos. Se sim, eles são elegíveis e depois avaliamos o perfil do empreendedor, que é diferente da avaliação de score feita pelas instituições financeiras. Focamos mais numa análise comportamental para identificarmos a viabilidade do negócio e se o empreender é bom pagador ou não”, explica o fundador da Firgun, Fabio Takara.

A meta de captação prevista é de 500 mil reais, que pode ajudar uma média de 200 empreendedores. Segundo Takara, após a quitação dos empréstimos, os valores serão revertidos para as instituições fundadoras do dispositivo para que fortaleçam esses e outros negócios com uma nova rodada de investimento ou com capacitações, garantindo que os empreendedores se organizem no período após o fim das medidas de isolamento social.

Os empreendedores interessados devem fazer um cadastro no site da Firgun. A iniciativa já recebeu doações da Fundação Casas Bahia, Grupo Pão de Açucar, Prospera Capital, Garin Investimentos, ICE (Instituto de Cidadania Empresarial) e Cielo.

“A gente vê que o nosso movimento é muito importante, porque diferente do que está sendo apresentando pelo governo e pelos grandes bancos, as pessoas que de fato precisam de crédito não estão conseguindo ter acesso. Essa é uma das reclamações de empreendedores que tem entrado em contato com a gente. Existe ainda uma restrição cadastral muito grande por conta da política de crédito vigente e é esse público que nós trabalhamos”, diz Takara.

Rede de apoio

Com foco na concessão de empréstimos sem juros para cobrir despesas indispensáveis de negócios de impacto social com atuação nas periferias, o fundo emergencial Volta por Cima é resultado da união do Banco Pérola e da Articuladora de Negócios de Impacto da Periferia (ANIP) – iniciativa que reúne atores do ecossistema de empreendedorismo social como a Artemisia, A Banca e FGVcenn – Centro de Empreendedorismo e Novos Negócios.

Cerca de 50 negócios periféricos já acelerados pelas organizações receberão R$ 15 mil, a serem pagos em até 12 parcelas sem acréscimo de juros nas prestações e com carência de seis meses. Os recursos do fundo emergencial também passarão a apoiar outros negócios, no futuro, ao passo que os empréstimos forem pagos.

A diretora-executiva da Artemisia e uma das articuladoras do fundo, Maure Pessanha, acredita que os empreendedores sociais serão peças fundamentais para conter a escalada da pobreza e da escassez econômica no país durante e pós pandemia.

“Em um momento no qual a inovação social assume uma importância gigantesca, nos unimos com o objetivo de criar uma solução financeira que permita que esses empreendedores continuem as próprias jornadas e possam permanecer como fonte de emprego e renda, gerando impacto e apoiando as economias locais em que atuam”, afirma Maure.

Maure Pessanha, presidente-executiva da Artemisia
Maure Pessanha, presidente-executiva da Artemisia. (Marco Torelli/Divulgação Artemisia)

A iniciativa foi construída com base nos resultados de uma pesquisa feita pela Artemisia – que desde 2005 apoia negócios que desenvolvem ações para população em situação de vulnerabilidade econômica, problemas socioambientais e que provoquem impacto social positivo – com 78 empreendedores de sua rede sobre os efeitos da pandemia nos negócios em estágio inicial.

Os empreendimentos com capacidade de execução e que apresentam risco imediato, de curto e de médio prazo serão priorizados nesta primeira rodada de apoio, que deve anunciar os contemplados ainda neste mês.

“Há mais de 10 anos, buscamos fomentar as inovações sociais e economias criativas para que os irmãos e irmãs das quebradas continuem sendo protagonistas e revolucionárias em seus territórios. Esse recurso apoiará diversos negócios de impacto periféricos”, ressalta o fundador da A Banca e cofundador da ANIP, Marcelo Rocha (DJ Bola).

Os aportes contam com apoio de doações feitas pela Potencia Ventures, Fundação ARYMAX, Instituto Humanize, Fundação Tide Setubal, Instituto Vedacit, Votorantim Cimentos, Tigre e Instituto Carlos Roberto Hansen (ICRH), Gerdau, Instituto de Cidadania Empresarial (ICE), Instituto C&A, Fundação Telefônica Vivo e INSEAD Alumni Association Brazil.

O fundo segue captando recursos, através do seu site, de pessoas físicas e pessoas jurídicas para ampliar o número de empreendedores beneficiados.

A expectativa dos idealizadores é que a iniciativa sirva como exemplo de cooperação para que outras ações de fomento sejam fortalecidas e criadas visando ajudar a jornada dos empreendedores sociais que trabalham nas comunidades e periferias das cidades brasileiras.

Pablo Santana

Repórter do InfoMoney. Cobre tecnologia, finanças pessoais, carreiras e negócios