Caos automotivo: praticamente parado, setor deve demorar a se levantar pós crise

Montadoras buscam na tecnologia alternativas para se transformar em meio à crise

Giovanna Sutto

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SÃO PAULO – Números preocupantes expressam a realidade do setor automotivo em meio à pandemia de coronavírus: considerando emplacamentos de automóveis, comerciais leves, ônibus e caminhões, em abril de 2019 foram 231.922 unidades vendidas, contra apenas 55.732 unidades em abril deste ano, queda de 76%.

Esse foi o pior resultado mensal para o setor desde fevereiro de 1999, segundo dados da Federação Nacional da Distribuição de Veículos Automotores (Fenabrave).

Com a crise, a produção praticamente cessou: de acordo com a Associação Nacional dos fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea), em abril, em reflexo da crise causada pelo coronavírus, apenas 1.847 veículos foram produzidos, entre automóveis, comerciais leves, caminhões e ônibus, um tombo de 99% sobre o mês anterior e de 99,4% sobre abril do ano passado. Esse foi o menor nível mensal desde o surgimento da indústria, em 1957.

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A queda abrupta da produção foi acompanhada de recuos igualmente dramáticos nas vendas ao mercado interno. Os licenciamentos de autoveículos, por exemplo, tiveram queda de 76% ante abril de 2019, pior resultado em 20 anos, conforme a Anfavea.

Segundo dados do Ministério da Economia, o setor automotivo representa cerca de 22% do PIB industrial do país. Dessa forma, a saúde do setor é primordial para a economia como um todo.

O InfoMoney entrou em contato com consultorias especializadas e com algumas das maiores montadoras que do país para entender a situação, estimar um momento para a retomada e a realidade do setor pós-crise.

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“Caos” no setor

“Caos é a palavra para definir o momento. Tudo parou. Vendas, concessionárias, fornecedores, enfim, a cadeia como um todo paralisou”, afirma Milad Kalume Neto, diretor de novos negócios, da consultoria automotiva Jato Dynamics.

O setor vem enfrentando muitas dificuldades em atravessar um momento em que boa parte da população está executando o distanciamento social, o que implica, além de menos mobilidade, menos confiança do consumidor, mais incerteza  sobre emprego e dólar a inimagináveis quase R$ 6 – fatores que impactam diretamente na decisão da compra de um novo carro.

“O consumidor hoje não quer uma dívida de longo prazo, e geralmente, na compra do carro, ele dá o antigo e financia o restante por um bom tempo. Isso se soma ao trabalho, muitas pessoas estão com salários e jornada reduzidos, e às taxas de juros altas devido ao risco de financiar para alguém que eventualmente pode não pagar, diz Neto.

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“Ainda, há a questão do dólar alto que facilitaria a exportação por deixar o produto nacional mais barato frente às moedas fortes como dólar e euro, mas não tem para quem exportar dado o cenário. Tudo faz o processo de venda e compra enfraquecer”, explica.

E a oferta está alta. Segundo dados da Anfavea, os estoques na virada de abril estavam em 237 mil unidades entre fábricas e concessionárias, “suficientes para quatro meses de vendas no ritmo lento atual, o que explica a dificuldade em retomar a produção em todas as fábricas”, comenta o especialista.

“O estoque alto atrasa a retomada. Enquanto não regular os estoques a produção não volta. Tem carro parado porque as pessoas não estão comprando. É uma cadeia e processos e tudo indica que vai demorar para se reerguerem”, reitera.

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Segundo Paulo Roberto Garbossa, consultor da ADK Automotive, os veículos de entrada são os que vão sofrer mais com os efeitos da pandemia. “As pessoas que consomem o carro de entrada estão se organizando financeiramente para passar a pandemia, no geral, e devem postergar a compra do veículo. Esse trabalhador depende da situação do emprego que pode não estar estável agora. Quem tem mais poder aquisitivo, tem mais reserva e pode comprar mesmo com a situação atual. Por isso, os premium devem performar melhor nesse momento”, explica.

Retomada lenta

Dado todo o cenário, Neto estima uma retomada lenta, com retorno aos níveis pré-crise apenas em 2022, porque a cadeia é longa.

Setores como aços, máquinas e equipamentos, autopeças, materiais eletrônicos, produtos de metal, artigos de borracha e plástico, entre outros podem retomar mais rapidamente, segundo Neto.

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“Muitas empresas desses setores, como autopeças, por exemplo, quando voltarem a funcionar podem voltar com 100% da mão de obra que tiverem. Houve demissões, mas quando o afrouxamento do isolamento começar eles voltam de forma mais rápida ao 100% de funcionamento com a mão-de-obra que tiverem em mãos e, com o tempo, podem ir contratando novamente”, comenta o consultor.

Mas a produção de carros em si não segue a mesma toada. “O mecanismo que envolve fornecedores, trabalhadores, demanda, etc, precisa estar lubrificado para que a produção volte a funcionar e isso vai demorar”, explica.

Luiz Carlos Moraes, presidente da Anfavea, também acredita que o cenário deve demorar para mudar. “As vendas não vão subir necessariamente de acordo com a retomada da produção. A produção é que pode ser retomada de acordo com um aumento nas vendas. Tudo indica que as montadoras vão decidir retomar [as atividades] de acordo com o estoque”, opinou.

Montadoras usam a criatividade

As montadoras estão com fábricas paradas ao redor do Brasil, lidando com medidas para manter funcionários, com caixa afetado e receita bem menor. Mas cada uma vai enfrentando a pandemia com as medidas cabíveis aos seus respectivos contextos.

O InfoMoney contatou as 7 maiores fabricantes do país, segundo dados de vendas de abril da Fenabrave: Chevrolet (GM), Fiat Chrysler Automobiles (FCA), Renault, Volkswagen, Toyota, Ford e Hyundai – as duas últimas não enviaram seus posicionamentos até o momento de publicaão desta matéria.

Repasse

Para Moraes, da Anfavea, o fechamento de todas as fábricas de automóveis no Brasil e a instabilidade cambial devem causar aumentos nos preços dos automóveis. “É muito difícil segurar um aumento nos preços. Cada montadora precisa definir o que dá para ser absorvido e o que precisa ser repassado”, disse, em nota divulgada pela associação.

Garbossa explica que o principal fator no provável aumento dos preços é o dólar a quase R$ 6. “A maioria dos veículos conta com componentes importados em alguma etapa da produção e na hora de nacionalizar o veículo tem adicional de custo, que será repassado para o consumidor final”, explica.

Toyota e Volkswagen, por exemplo, reajustaram os preços de alguns modelos; a Chevrolet anunciou um aumento médio de 4% em toda sua linha de produtos. A Toyota também pensa em ajustar mais preços dada a cotação atual do dólar.

Medidas

Como parte do processo de sobrevivência, todas as montadoras que responderam ao contato adotaram as medidas trabalhistas anunciadas pelo governo e algumas já voltaram ao trabalho nas fábricas, como FCA e Renault.

O grupo Fiat Chrysler Automobiles (FCA) informou que concluiu a negociação com os sindicatos que representam seus trabalhadores em todo o país e definiu a redução flexível da jornada de trabalho e preservação entre 80 e 90% do valor dos salários para a maioria dos trabalhadores, segundo explicou Antonio Filosa, presidente do grupo para América Latina.

A fabricante italiana também adiou o lançamento da nova picape Fiat Strada e estão previstos três novos modelos – dois SUV da Fiat e um novo Jeep para os próximos meses.

A GM também informou que vem tomando “medidas emergenciais e temporárias” como banco de horas, férias coletivas, planos de redução de custos, redução de jornada, com impacto de redução salarial entre 5% e 25% do salário de acordo com faixa salarial, além de home office e, inclusive, adiamento de investimentos. E todas as fábricas da GM no Brasil estão com produção paralisada desde a última semana de março.

A Toyota, por sua vez, disse que suspendeu temporariamente a maioria dos contratos de trabalho dos seus funcionários. “Estamos tentando deixar todos em segurança, em primeiro lugar, desde a segunda semana de março, os empregados administrativos já estavam em home office. Em 23 de março paramos a produção e retomaremos em 2 de junho. Colocamos alguns funcionários em férias e suspensão temporária de trabalho e estamos trabalhando com o mínimo de impacto no salário possível”, afirmou Viviane Mansi, diretora de Comunicação e Sustentabilidade para a América Latina e Caribe da Toyota.

A Renault adotou férias coletivas e aplicou a MP 936 com redução de jornada e salário para os colaboradores da produção das quatro fábricas do Complexo Ayrton Senna (CAS).

“A empresa completará o valor pago pelo governo, garantindo 100% do salário líquido para todos os colaboradores. A redução de jornada pode chegar a 70%, conforme a necessidade de cada fábrica e linha de produção, tem um prazo de 30 dias a partir de 18 de maio podendo ser prorrogada por mais 30 dias”, afirmou Ricardo Gondo, presidente da Renault do Brasil.

Pablo Di Si, presidente e CEO da Volkswagen para a América Latina, explicou que a empresa também adotou férias coletivas aos empregados do final de março ao final de abril e a proposta de redução de 30% na jornada de trabalho sem alteração no salário líquido dos empregados pelo período de 90 dias. “O governo proverá o Benefício Emergencial de Preservação de Emprego e da Renda, e a VW complementará o valor restante”, explicou. A  fábrica de São José dos Pinhais, no estado do Paraná, volta a funcionar em 18 de maio de forma gradual.

Comprar carro pela internet?

Para Neto, a pandemia está trazendo mudanças para o comportamento do consumidor, o que inclui mais tecnologia, praticidade e uma reforma da mobilidade urbana.

Garbassa opina que o desenvolvimento da indústria é um caminho sem volta. “Ou a montadora investe em tecnologia de ponta ou fica pra trás e perde o trem. Não tem como não investir na indústria e produção”, diz.

Além disso, ele acredita que a globalização vai aumentar o nível de qualidade da indústria brasileira. “As montadoras vão estar mais conectadas com as suas filiais ao redor do mundo e produzir um carro no padrão global, para ser aceito em todos os mercados, será um objetivo. Será uma tendência. O próprio Volkswagen Nivus já vai chegar com essa pegada”, explica.

Já a venda de carros online ainda é uma “questão embrionária” em São Paulo e no restante do Brasil, mas deve ser mais comum à medida que as concessionárias sofrem as consequências da crise: segundo a Fenabrave, cerca de 30% das concessionárias do país devem fechar em definitivo até o fim deste mês.

“[Vender online] É um processo que exige adaptação da empresa e do cliente. O carro ainda é expriência, as pessoas querem tocar, sentar, fazer o test drive. Apresentar um show room dentro do site e convencer as pessoas a comprarem de casa é um desafio. No entanto, é um momento bem oportuno para a migração online”, diz Neto.

Segundo ele, o consumidor se munirá de informações online conhecendo as versões e os modelos dos carros pelos próprios sites, que estarão mais estruturados, e fará toda a jornada de compra online e irá na concessionária apenas retirar o carro.

“Nesse sentido, ampliação do e-commerce no setor deve ser uma das heranças desse momento de pandemia. O cliente brasileiro ainda não está preparado para comprar um carro na internet, mas será um processo”, afirma.

Dentro desse contexto, as montadoras estão se preparando e já possuem a opção de compra online para o consumidor, cada qual com suas respectivas características.

A Chevrolet, em parceria com o Mercado Livre, lançou a primeira loja de veículos novos do marketplace. No site da montadora, o consumidor pode efetuar a compra do carro online, com a ajuda de especialistas, e, dependendo da localidade, a montadora oferece o “test-drive delivery”, com o próprio consultor levando o automóvel ao interessado.

“Estou certo que sairemos dessa crise mais digitais do que nunca. Vamos, como consumidores, demandar isso das empresas e marcas com as quais nos relacionamos. A crise apenas acelerou esse processo”, diz Hermann Mahnke, diretor executivo de Marketing da GM América do Sul.

Filosa, da FCA, explica que a estratégia foi manter ativa a conexão com os consumidores, “buscando canais alternativos para atendê-los em suas necessidades”.

Hoje, segundo ele, 100% da Rede Fiat está apta a realizar atendimento online, com plantão para esclarecer as principais dúvidas dos clientes, orientar sobre novos canais de atendimento. As concessionárias também atendem via WhatsApp com para todo o processo de vendas (negociação, test drive e entrega do veículo). Na Jeep o consumidor que der 50% de entrada em um Renegade ou Compass e parcelar o restante em 36 vezes terá as oito primeiras parcelas pagas pela companhia.

A Toyota também segue na linha da digitalização. “Oferecemos a opção da jornada de compra online, com o concessionário prestando todo o atendimento e para fechar o negócio é preciso ir até a concessionária mais perto dele. As partes combinam a forma de entrega, e há a opção do consultor levar o carro para o test drive na casa do cliente, com protocolo de higienização”, explica Viviane, diretora da Toyota.

A fabricante japonesa oferece um serviço de aluguel de carros da marca em algumas concesisonárias no país. O consumidor baixa o app da montadora, escolhe o modelo do carro e busca em um das concessionárias.

A Renault também oferece o processo de venda online. “Na loja digital, temos toda a nossa gama e o cliente pode realizar todo o processo de compra e ainda visualizar o estoque dos concessionários”, afirma Ricardo Gondo, presidente da Renault do Brasil.

Na Volkswagen, as concessionárias também estão fazendo uso de ferramentas digitais. Atualmente, 171 concessionárias já contam com a tecnologia DDX, plataforma que oferece a jornada de compra online, e outros 212 já solicitaram o equipamento e, para o lançamento do SUV Nivus. Toda a rede (cerca de 500 lojas) estará preparada para demonstrar o novo carro desta forma”, afirma o CEO da Volkswagen para a América Latina. 

Giovanna Sutto

Repórter de Finanças do InfoMoney. Escreve matérias finanças pessoais, meios de pagamentos, carreira e economia. Formada pela Cásper Líbero com pós-graduação pelo Ibmec.