Raio-X, óculos falsos e Cosa Nostra: como funcionava o esquema que assombrou a NBA

Esquema criminoso usou tecnologia avançada para manipular jogos de pôquer envolvendo estrelas do basquete

Bloomberg

Chauncey Billips (Steph Chambers/Getty Images)
Chauncey Billips (Steph Chambers/Getty Images)

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Um dos jogadores na mesa de pôquer em Las Vegas — associados à máfia os chamavam de “peixes” — parecia feliz em entregar seu dinheiro a um integrante do Hall da Fama da NBA.

“Ele estava deslumbrado!”, escreveu um dos homens agora acusados de manipular o jogo de cartas em uma mensagem de texto. “Sim, eu sei”, respondeu um associado que, segundo o FBI, estava secretamente sinalizando os trapaceiros na mesa. “Todos estavam!”

A estrela do basquete que segurava as cartas: o técnico do Portland Trail Blazers, Chauncey Billups — agora indiciado por sua suposta participação em um esquema que durou anos e que envolveria membros de quatro notórias famílias mafiosas de Nova York.

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Chauncey Billups sai do Tribunal dos Estados Unidos Mark O. Hatfield após sua audiência em Portland, em 23 de outubro. Fotógrafo: Mathieu Lewis-Rolland/Getty Images

Poucos dias após o início da temporada 2025-26, o basquete profissional dos EUA foi abalado nesta quinta-feira (23) com notícias de amplas acusações federais envolvendo supostas apostas ilegais. As denúncias resultaram nas prisões de Billups, do armador do Miami Heat Terry Rozier e de Damon Jones, ex-técnico pessoal de arremessos do maior pontuador da NBA, LeBron James.

Rozier foi acusado em uma investigação sobre jogadores que supostamente se retiravam de jogos ou limitavam sua atuação para influenciar estatísticas pessoais para fins de apostas. As autoridades classificaram o caso como uma das manobras mais audaciosas desde a legalização ampla das apostas esportivas online nos EUA.

Jim Trusty, advogado de Rozier, condenou a prisão, afirmando que estavam em contato com os promotores há algum tempo. “Há muito tempo entramos em contato com esses promotores para estabelecer uma linha aberta de comunicação. Eles caracterizaram Terry como um sujeito, não como alvo”, disse.

“É lamentável que, em vez de permitir que ele se entregasse voluntariamente, optaram por uma exposição pública. Queriam a glória equivocada de humilhar um atleta profissional com uma prisão pública. Isso diz muito sobre as motivações neste caso”, afirmou Trusty.

A suposta fraude no pôquer se estendeu de Las Vegas a Miami, Hamptons e Nova York, onde membros das famílias criminosas Bonanno, Colombo, Gambino e Genovese fizeram um acordo incomum para compartilhar os lucros, segundo os promotores.

Terry Rozier Fotógrafo: Carmen Mandato/Getty Images

Billups, 49 anos, era conhecido por sua habilidade de ler as pessoas. Sua capacidade de prever jogadas foi parte do que o tornou primeiro armador e depois técnico.

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Mas nos jogos privados de pôquer, eram as cartas que estavam sendo lidas, segundo as autoridades.

A máquina na mesa parecia comum, um embaralhador DeckMate de US$ 10 mil, do tipo encontrado em cassinos. Na verdade, segundo os promotores, ela foi reprogramada para escanear cada carta do baralho e enviar os resultados para um laptop em outro local.

Documentos judiciais descrevem como o operador — conhecido no grupo como o Motorista — transmitia as informações a um jogador na mesa, o Quarterback, que as passava com gestos mínimos: um toque no pulso, um roçar nas fichas, um olhar prolongado.

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Os promotores disseram que mensagens de texto entre os conspiradores capturaram a essência do esquema. Billups e o ex-armador do Cleveland Cavaliers Damon Jones não estavam apenas jogando — eram a atração principal.

Segundo os promotores, os dois eram pagos com os lucros de jogos que não eram jogos, mas a fachada de uma operação multissetorial que unia alta tecnologia ao crime organizado tradicional de Nova York.

As quatro famílias mafiosas financiavam e protegiam a rede de pôquer, recebendo parte dos lucros e garantindo que as dívidas fossem pagas, de uma forma ou de outra, disseram os promotores.

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A comissária de polícia de Nova York, Jessica Tisch, chamou a aliança de “extraordinariamente rara”, ressaltando o montante de dinheiro envolvido.

As vítimas acreditavam estar em uma mesa justa, mas foram enganadas em milhões. Uma perdeu US$ 1,88 milhão. As perdas totais ultrapassam US$ 7 milhões e continuam crescendo.

Os Bonannos controlavam o chamado Jogo da Lexington Avenue em Manhattan, enquanto os Gambinos operavam outro próximo, em Washington Place. Em 2023, os dois se uniram, concordando em dividir a receita de mesas manipuladas e legítimas.

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Fotos de vigilância capturaram membros da Bonanno e Gambino reunidos em um bar próximo, discutindo a divisão do dinheiro.

O que tornava a operação moderna não era seu alcance, mas suas ferramentas. A denúncia inclui imagens recuperadas das contas iCloud dos réus, mostrando embaralhadores DeckMate desmontados em mesas de cozinha, com placas de circuito expostas.

Outra imagem mostra uma tela de computador com um programa que exibia a ordem das cartas em jogo. Uma terceira mostra o que os promotores descrevem como uma mesa de pôquer com raio-X iluminando o feltro por baixo.

As mensagens liberadas pelas autoridades parecem instruções de cena. Em uma troca, um membro do grupo alertou que Billups e outro jogador haviam “acertado dois gutshots no river contra o mesmo cara”, uma sequência improvável que poderia levantar suspeitas. O líder do grupo sugeriu que perdessem de propósito para desviar a atenção.

Antes de um jogo separado em Miami em 2024, a denúncia diz que outro conspirador listou o código da mesa em uma mensagem: tocar uma ficha de US$ 1.000 significava que um jogador tinha a melhor mão, tocar o queixo indicava outro, tocar as fichas pretas indicava que a vítima — o “peixe” — estava à frente e o time deveria desistir.

Com o tempo, as famílias criminosas passaram a tratar as mesas de pôquer manipuladas como qualquer outra fonte de receita. Os Bonannos e Gambinos ficavam com uma porcentagem de cada jogo; os Genovese e Colombo forneciam empréstimos e proteção. Quando as dívidas não eram pagas, as consequências eram as tradicionais.

Em um caso, um jogador foi espancado por não pagar o que devia. Em outro, um homem que devia US$ 10 mil recebeu mensagens ameaçadoras e depois foi até a sala de cartas em um Range Rover preto para entregar um cheque de metade do valor.

Em outro episódio, homens armados roubaram um operador rival à força para recuperar um embaralhador DeckMate roubado. E quando um organizador tentou abrir um jogo concorrente, membros da Bonanno e Gambino invadiram o local armados, enquanto as cartas ainda estavam na mesa.

“Quando as pessoas se recusavam a pagar, esses réus faziam o que o crime organizado sempre fez”, disse Tisch. “Usavam ameaças, intimidação e violência. É o mesmo padrão que vemos há décadas — métodos tradicionais da máfia combinados com tecnologia para ampliar o alcance das operações.”

O dinheiro dos jogos circulava por empresas de fachada e contas em criptomoedas. Uma transferência citada nos documentos mostra US$ 100 mil enviados a uma empresa de fachada em troca de US$ 97 mil em dinheiro.

No mesmo dia em que os promotores divulgaram o caso do pôquer, anunciaram uma segunda acusação, envolvendo Rozier e outros por usar informações não públicas sobre lesões e escalações para fazer apostas ilegais em jogos da NBA.

Jones, já acusado no caso do pôquer, aparece em ambas as denúncias — fazendo a ponte entre o vestiário e a sala de cartas.

Os advogados de Jones e Billups não estavam disponíveis para comentários imediatos.

Agentes federais afirmaram que as evidências mostram que o crime organizado ainda está ativo, aplicando suas antigas hierarquias a novas ferramentas digitais, e que atletas profissionais emprestam sua celebridade para dar aparência de legitimidade.

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