Argentina e Brasil devem ter afastamento diplomático com Milei, mas sem impacto comercial, dizem analistas

Novo momento será similar ao vivido entre Bolsonaro e Fernández, afirma a especialista Marina Pera, da Control Risks

Roberto de Lira

(Shutterstock)

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A eleição do ultraliberal Javier Milei para presidir a Argentina a partir do próximo dia 10 de dezembro não deve trazer prejuízos ao comércio do país com o Brasil, embora o político autodenominado libertário já tenha dito preferir negociar com governos com quem tenha proximidade ideológica. Mas do ponto de vista diplomático, pode ser esperado um distanciamento. A avaliação é de Marina Pera, analista de risco político da Control Risks.

Ela lembra que esse tipo de relação já foi vista com o atual presidente argentino, Alberto Fernández, e o ex-presidente brasileiro Jair Bolsonaro. “Não era uma relação política próxima, não tinha exatamente um aprofundamento dos laços diplomáticos, mas tinha o ‘business as usual’ na relações comerciais”, comenta.

Marina citou especificamente as declarações recentes de Milei, dizendo que não buscaria negócios com “países comunistas”, se referindo à China e ao Brasil. Mas ela pondera que, mesmo como presidente, ele não estará numa posição de poder alterar completamente isso. A Argentina precisa e depende desses principais parceiros comerciais. Nesse sentido, Brasil e Argentina vão continuar sendo parceiros comerciais e econômicos importantes”, explica.

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Thiago Schwinke Vidal, diretor de Análise Política da Prospectiva concorda que vai haver uma certa inimizade entre os chefes de estado, ou pelo menos uma relação mais fria. Porém, ele também acredita que os dois sabem e têm maturidade suficiente para entender que Brasil e Argentina não podem entrar em colapso e bater cabeça muito fortemente.

Vidal também usou o exemplo da relação entre Bolsonaro e Fernández para projetar esse comportamento. “Ele (Bolsonaro) não enfrentou a Argentina, não cutucou o Fernández. Ele simplesmente não fez nada, não se relacionou. Parece que o relacionamento vai um pouco por aí, o que não é positivo”, opina o diretor da Prospectiva, destacando que essa é principal relação bilateral da América do Sul desde os anos 1980, após a retomada das relações de maneira mais cordial, depois de anos de inimizade e de tensão.

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“O mero esfriamento da relação bilateral, por si só, é um problema. Mas pode ser que isso não resulte em mudanças bruscas no Mercosul”, prevê. Ele destaca que algum tipo de rompimento mais forte, ainda que contasse com o apoio do Uruguai, precisaria do apoio do Congresso local, que ratificou o tratado internacional. “Acho que avizinham-se tempos de esfriamento da relação, o que é negativo, mas não isso se traduzirá num rompimento”, pondera

Para Marina, da Control Risks, um afastamento diplomático mais amplo pode levar a Argentina a um certo isolamento na cena internacional, com pouca participação em fóruns e convenções globais e sem costurar acordos, até porque não deverá buscar participar de nenhum tipo de instituição internacional.

Um exemplo foi a recente adesão do país aos chamados BRICs (bloco formado por emergentes como Brasil, Rússia, China, Índia e África do Sul). “Milei já deu a entender que isso não vai acontecer, a Argentina não vai entrar no BRICs no seu governo. A gente espera que ele não formalize isso e tire a Argentina dos BRICs.”

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Esse isolamento, no entanto, poderá ser quebrado no caso de um retorno de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos na eleições de 2024.  “Ele teria um aliado importante. Mas se (Trump) não ganha, Milei fica mais isolado. Ele já deu a entender que, para a  diplomacia, o que vai ser importante é uma afinidade ideológica. Esses são os parceiros que ele vai buscar do ponto de vista político e diplomático”, diz.

Desafios de governabilidade

A analista de risco político também prevê que Milei terá de enfrentar muitos desafios de governabilidade no início de seu governo. Os motivos são que partido dele (A Liberdade Avança) tem menos de 1/3 do Congresso, a sociedade está dividida e o novo presidente não conta com o apoio de grupos de poder tradicionais, caso dos sindicatos, que são muito influentes e não estão com o Milei.

“Além disso, a própria coalização de centro-direita Juntos por El Cambio está dividida e fragmentada. E é possível que gente veja também um movimento de organização da coalizão peronista também. Esse cenário de fragmentação vai desafiar Milei, no sentido que ele vai ter de procurar negociações constantes e frequentes no Congresso para tentar aprovar sua agenda”, afirma.

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Embora não sejam conhecidos ainda detalhes sobre a negociação que levou ao apoio formal do ex-presidente Mauricio Macri e da ex-candidata Patricia Bullrich à campanha de Milei no segundo turno, Marina vê uma possibilidade de essas forças políticas auxiliarem o candidato vitorioso nas negociações com o Congresso.

“É possível que alguns nomes indicados pelo Macri sejam nomeados ministros. É provável de que alguns desses nomes tenham vindo com uma concessão, mas tem que ver se os eleitores mais leais ao Milei vão se incomodar com isso”, comenta a analista, destacando que abraçar o “establishment” pode pegar mal após a retórica “antiestablisment” da campanha.

Ela lembra que foi o discurso antipolítica que levou Milei ele ao poder, mas agora será preciso observar como ele vai reagir uma vez no poder. “Ele moderou o tom, mas precisa ver se foi um movimento eleitoral ou se de fato ele vai continuar com essa retórica. É um movimento antipolítica, mas agora que ele está na política vai precisar se reorganizar”, pondera.

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Assim, Macri pode acabar sendo um aliado próximo que oriente algumas posições do Milei. “Não diria que ele (Macri) sai fortalecido politicamente, mas que essa relação dos dois pode continuar, principalmente nesse momento de transição, justamente para dar um capital político ou uma ajuda extra nesse primeiro momento”, explica.

Emergência da direita

Para a analista da Control Risks, Milei representa a emergência de uma força política nova na Argentina, de uma direita radical, uma ala que comporta muitos rótulos. O próprio presidente eleito se diz libertário e “anarcocapitalista”, mas o fato, diz Marina, é que ele está  mais à direita no espectro político e propõe mudanças mais disruptivas do que as observadas nos últimos anos.

“Mas ele não é uma exceção no movimento antioficialismo que a gente tem visto na América Latina nos últimos anos. Esses candidatos outsiders, com retórica ‘antiestablishment’ tem ganhado muito ‘momentum’ na região e a Argentina confirmou essa tendência ontem.”, comenta.

Sobre como as forças da direita no país podem se rearticular a partir da eleição de ontem, a analista afirma que a própria entrada de Milei na política já veio com a formação de um partido, o La Libertad Avança. “É bem impressionante o fato de que eles conseguiram ir de 3 deputados para 38 de 2021 para 2023 e foram de zero para oito senadores. Já existe essa emergência de um novo partido e agora tem que ver como as outras forças de direita vão se acomodar em relação a isso”, argumenta.

Para ela, é provável Milei consiga negociar com algumas facções de partidos de direita na Argentina, mas essas negociações devem se dar caso a caso e o Congresso pode modificar ou até acabar bloqueando propostas mais radicais.

“O Milei, por exemplo, fala de uma reforma tributária e uma reforma trabalhista e essa é especialmente contenciosa na Argentina, com a influência dos sindicatos. A gente espera que ela não saia da forma como o Milei propõe. Isso vai vir um movimento democrático de discussões no Congresso entre as diferentes forças políticas”, prevê.

Até mesmo a agenda de privatizações pode sofrer entraves. Nestas segunda-feira (20), o presidente eleito reafirmou o propósito de desestatizar a petrolífera YPF, entre outros ativos. “ Ele fala, por exemplo, que a infraestrutura não deve ser pública, o investimento deve vir todo do setor privado. Não significa que vai ser fácil, não é exatamente por um decreto que se faz isso”, comenta.

Para a analista, é esperada muita resistência em relação à privatização da YPF e será preciso ver se Milei terá habilidade de conduzir essas discussões. “A YPF já passou por muitos momentos de privatizada e estatizada, hoje tem o capital misto. Tem que ver também qual vai ser a aderência da sociedade argentina, se vai ter uma resistência esse tipo de proposta. A vitória de Milei, nesse momento, representa mais incertezas do que respostas”, afirma.