TST reconhece vínculo entre entregador e UberEats e reacende polêmica sobre plataformas digitais

Para relatora da ação, as plataformas “consomem trabalho, lucram, exercem poderes diretivos e devem ser vinculadas também a responsabilidades trabalhistas

Anna França

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A Segunda Turma do TST (Tribunal Superior do Trabalho) reconheceu, de forma unânime, o vínculo de emprego entre um ciclista entregador de alimentos da UberEats, em São José dos Pinhais (PR), e a Uber do Brasil Tecnologia Ltda. Com a decisão, o processo retornará ao primeiro grau para julgar os pedidos do trabalhador, conforme informação da Secretaria de Comunicação Social do tribunal.

Na ação, o entregador disse que prestou serviços para a Uber entre maio e julho de 2021, sem registro na carteira de trabalho, até ser descredenciado. Para requerer o vínculo de emprego, apresentou prints dos registros diários de corridas, trajetos, horários e valores recebidos, obtidos a partir da plataforma digital da própria empresa.

O vínculo foi negado pelo juízo de primeiro grau e pelo Tribunal Regional do Trabalho da 9ª Região (PR), que consideraram que a relação era de parceria, e não de subordinação. Entre outros aspectos, o TRT considerou que, de acordo com uma testemunha, o entregador tinha liberdade para estabelecer o número de viagens e o horário de trabalho e podia aceitar ou não as entregas, sem nenhuma penalidade.

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Penalidade

Ao recorrer ao TST, o entregador argumentou que, quando desativava o aplicativo, era penalizado pela Uber, que diminuía a demanda de serviços. Segundo ele, é a plataforma que detém o poder sobre as entregas, pois dá ordens ao entregador e exige que o serviço seja realizado com perfeição, sob pena de descredenciamento, como ocorreu com ele.

Para a relatora do recurso de revista, desembargadora convocada Margareth Rodrigues Costa, as plataformas digitais “consomem trabalho, auferem lucros, exercem poderes diretivos e que, portanto, devem ser vinculadas também a responsabilidades trabalhistas”.

Gestão por algoritmos

Margareth Costa avalia que as “empresas-plataformas” dirigem e controlam a prestação de serviços por meio de algoritmos e inteligência artificial. Para ela, a gestão algorítmica visa induzir comportamentos dos prestadores de serviços, pois há pontuações durante todo o trabalho, e sensores de geolocalização geram informações sobre cada ato praticado.

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Esse modelo de gestão do trabalho, de acordo com a magistrada, se orienta pelo processo de “gamificação”, que estimula ou desestimula os trabalhadores pela possibilidade de melhorar seus ganhos ou de receber punições indiretas. Trata-se, a seu ver, de um exercício “repaginado” de subordinação jurídica, por meio do algoritmo.

Entre outros aspectos, ela lembrou a prerrogativa de descadastramento do trabalhador caso desatenda as condições exigidas, a remuneração determinada pela empresa (e não negociada entre o entregador e o cliente) e a inserção do trabalho na dinâmica da atividade econômica desenvolvida pela empresa.

Por outro lado, o entregador tinha de ficar conectado à plataforma, era avaliado e sofria bloqueios conforme as avaliações. A empresa, “de forma discricionária, decidia pela manutenção ou não do entregador na plataforma, o que evidencia o seu poder diretivo”.

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A desembargadora ressaltou, em seu voto, que cabe ao Poder Judiciário a constante releitura das normas trabalhistas diante dos novos arranjos produtivos, “mas sempre em compasso com o horizonte constitucional da dignidade humana e do trabalho protegido por um sistema público de proteção social”.

Como foi protocolada uma petição de acordo no curso do julgamento, a relatora determinou o envio de ofício ao Ministério Público do Trabalho (MPT), por meio da Coordenadoria Nacional de Combate à Fraude nas Relações de Trabalho (Conafret), conforme o Tribunal Superior do Trabalho.

Repercussão

A decisão da 2ª Turma do TST causou espanto e contraria as decisões majoritárias sobre o tema, inclusive de outras turmas do tribunal e de suas seções especializadas em dissídios individuais, na opinião do líder da área trabalhista no GVM Advogados, Ronan Leal Caldeira.

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“Ela apresenta diversas contradições e omissões, além de não constarem os fundamentos pelos quais foi conhecido o Agravo do Reclamante, julga o mérito de ação em que claramente se verifica a necessidade de reexame de fatos e provas, o que é proibido conforme súmula do próprio TST, justificando que a questão se relaciona com o enquadramento jurídico da empresa ré, de forma indevida”, disse em nota o advogado.

Conforme o especialista, a decisão desrespeita a atual jurisprudência do STF, que permite a celebração de contratos distintos do regido pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e disposto no seu art. 3º, que valida a celebração de contratos como o discutido, de relação de parceria para auferir-se lucro e prestar serviços.

A sócia da área trabalhista do Costa Tavares Paes Advogados, Cristina Buchignani, também se surpreendeu com o reconhecimento de vínculo empregatício entre entregadores e a plataforma digital e avalia que o tema desafia a doutrina e a Justiça. “Em que pesem os argumentos que fundamentaram a decisão, do que pudemos verificar, o que há, de fato, são regras para a realização de um serviço a ser prestado com excelência, às quais aquele que decide fazê-lo, por decisão pessoal, deverá se adequar”, disse.

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De acordo com a sócia da área trabalhista do Marzagão e Balaró Advogados, Daniela Nishimoto, antes não se via muitas decisões favoráveis aos prestadores de serviço, mas isso está mudando. “Recentemente, por exemplo, a 4ª Vara do Trabalho de São Paulo determinou que a Uber assinasse as carteiras de trabalho de todos os seus motoristas, indicando a mudança”, afirma.

Mesmo assim, Nishimoto argumenta que alguns motoristas de aplicativo preferem seguir sem o vínculo, tendo a liberdade para escolher o horário e as regiões que julgam ser mais viáveis. “É preciso uma legislação específica para essa categoria, pois, sem vínculo, eles seguirão sem direitos, o que é injusto. Além disso, são muitas decisões e entendimentos desencontrados, que acabam causando insegurança jurídica”, argumenta.

Anna França

Jornalista especializada em economia e finanças. Foi editora de Negócios e Legislação no DCI, subeditora de indústria na Gazeta Mercantil e repórter de finanças e agronegócios na revista Dinheiro.