Articulação internacional pode inviabilizar governo Temer e fortalecer nova “Diretas Já”

Suhayla Khalil avalia o impeachment no contexto internacional e projeta eventual governo peemedebista

Marcos Mortari

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SÃO PAULO – A sobrevivência política do governo Dilma Rousseff tem se tornado cada vez menos provável na medida em que o impeachment avança no Congresso Nacional sob o respaldo da maioria da sociedade civil e sem qualquer obstrução no Judiciário. Com a aproximação do desfecho negativo em um processo que avalia como incompatível ao ordenamento jurídico nacional, a presidente tem adotado a estratégia de defender seu mandato e criticar a fragilidade do pedido por seu afastamento do cargo no plano internacional e já encontrou amparo entre importantes atores da política global.

Se, por um lado, a batalha do impeachment parece perdida para o atual governo — inclusive a julgar pelo teor do recente discurso da mandatária na ONU nesta sexta-feira –, o que ficará registrado para a História ainda está sendo escrito e a guerra de discursos também pode ter impactos sobre a capacidade de o vice-presidente Michel Temer suceder a petista e governar com legitimidade e base de apoio. Essa é a percepção da internacionalista e professora Suhayla Khalil, que enxerga um imbróglio preocupante para o peemdebista em construção no plano internacional, sobretudo a nível regional. A confirmação de tal cenário de adversidades, segundo ela, exigirá esforços de coordenação e pactuação do vice, o que provocará custos políticos e econômicos nada desprezíveis em tempos de grave crise. A inviabilidade do governo não é carta fora do baralho e poderia dar força à alternativa da convocação de novas eleições presidenciais.

Suhayla Khalil é professora do curso de Política e Relações Internacionais da pós-graduação da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo. Doutora pelo Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo, mestre em Estudos Estratégicos pela Universidade Federal Fluminense e especialista em Relações Internacionais pela Universidade Cândido Mendes, ela foi procurada pelo InfoMoney para falar sobre o processo de impeachment no contexto internacional e como se desenharia um eventual governo de Michel Temer nesse cenário. Confira os melhores momentos da entrevista:

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InfoMoney – Quais efeitos são esperados da ida da presidente Dilma Rousseff aos Estados Unidos e pronunciamento sobre o processo de impeachment em curso?
Suhayla Khalil – Já havia manifestações contra ou pelo menos de forma receosa demonstrando preocupação com relação ao que acontece no Brasil. Há manifestações desde março, como a de Luis Almagro, secretário-geral da OEA (Organização dos Estados Americanos), de Ernesto Samper, secretário-geral da Unasul (União de Nações Sul-Americanas). Também tivemos posições da Cepal (Comissão Econômica para a América Latina) e do escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos.

O que se desenha aqui é uma pressão internacional sobre o governo brasileiro como estrutura de poder, composta tanto por Executivo quando por Legislativo e Judiciário. Isso aumentaria os custos da tomada de decisão.

IM – Como a viagem é útil a Dilma?
SK – Imagino que essa viagem seja aproveitada também para fazer articulação, conversar com representantes presentes e buscar apoio, lembrando que líderes da Argentina, Venezuela, Bolívia e Uruguai já se manifestaram contra o que está acontecendo no Brasil. [Mauricio] Macri foi até mais expressivo, com relação a uma possível suspensão do Brasil no Mercosul. [Susana] Malcorra (chanceler argentina) também se mostrou bastante receosa. É interessante que ela falou que um espirro no Brasil é uma pneumonia na Argentina.

De fato, existe uma grande preocupação com um posicionamento mais assertivo dos representantes desses quatro países. Os EUA, por sua vez, colocaram-se de forma menos assertiva. Obama fala que o Brasil tem uma democracia madura e vai superar a crise saindo fortalecido.

É interessante a presença de Dilma nessa conferência de forma a canalizar não só o apoio multilateral – que a meu ver está bastante encaminhado, porque as diferentes instituições internacionais já manifestaram de forma contrária ao processo de impeachment –, mas principalmente no nível bilateral, porque tem acordos importantes com atores como os EUA.

IM – A depender de como reagem os atores internacionais, essa postura de Dilma no exterior pode reverberar na política nacional. Quais reflexos você espera nesse sentido, tendo em vista a preocupação de Temer ao conversar com o senador Aloysio Nunes?
SK – Com o apelo dela, a questão ganha força no cenário internacional, mas é importante lembrarmos que, na verdade, já há declarações bastante assertivas da Unasul, Cepal, do Alto Comissariado e da própria OEA. Não vejo necessariamente que a pressão de Dilma venha a ensejar o posicionamento dessas instituições internacionais. Temos que ter claro que muitas delas já o fizeram. Agora, o que pode acontecer é dar mais visibilidade e trazer mais atores, mais instituições internacionais, mas, sinceramente, acho que as principais já estão no jogo. O que além disso talvez poderíamos considerar seria os BRICS, de quem ainda falta um posicionamento mais assertivo.

O que acho interessante comentar também é que Aloysio Nunes e Temer mostraram alguma preocupação. O senador deu uma declaração dizendo que o posicionamento dessas instituições internacionais que criticam o procedimento que acontece no Brasil é, de certa forma, uma afronta à soberania nacional, que ele coloca como se fosse uma soberania exclusiva. Isso precisa ser observado no jogo político, quando lembramos que ele como senador e integrante da bancada do PSDB, parlamentares do partido foram à Venezuela pressionar o processo eleitoral. Acho interessante a lógica de defender a soberania nacional quando, na verdade, aquele tema é interessante ou quando essas instituições internacionais se opõem e mostram certo desagrado com relação aos procedimentos políticos. Fica um discurso super esquisito.

Nós não somos uma bolha, e fica muito difícil colocar as coisas sem o contexto histórico. É bom lembrar que, na década de 1980, o Brasil era uma ditadura com uma péssima imagem no exterior por não respeitar as normativas internacionais, não aderindo aos pactos de Direitos Humanos. Ver o contexto de hoje, principalmente o episódio de domingo, que repercutiu de forma muitíssimo negativa na imprensa internacional, nos remete de novo a essa imagem. Algo que o Brasil vinha mudando com grandes esforços ao longo da década de 1990 e do início do século XXI. A imagem que o país acaba passando é de uma fragilidade institucional e da democracia, de perda da credibilidade. Em última análise, é mesmo uma imagem de República das Bananas.

Todo o esforço de construção, a partir de uma política externa que investia e vem investindo no multilateralismo e na cooperação, que vem investindo em um papel mais assertivo, sofreu um grande abalo. Não tem tanto tempo assim que nossa imagem era extremamente negativa. Se o impeachment passar, a falta de legitimidade desse governo que viria a assumir será enorme frente a outros organismos internacionais.

IM – Todo caso de sucessão por vice-presidente costuma carregar uma dificuldade de legitimação nos planos doméstico e internacional. Como seria no caso de Michel Temer, sendo que há um cenário regional avesso a ele neste momento?
SK – Um cenário em que Temer viesse a assumir eu considero de uma leitura negativa desses atores regionais – não necessariamente porque são governos progressistas. Vale lembrar que Macri, que é do PRO (Proposta Republicana), aliado à União Cívica Radical, representa um novo projeto. Mesmo governos que não compartilham de valores e ideologias com o Partido dos Trabalhadores brasileiro manifestaram-se contrários ao procedimento que está acontecendo no Brasil.

Diante disso, o que se configura é a falta de legitimidade do novo governo, o que já representaria custos políticos e econômicos. Argentina e Venezuela são alguns dos principais parceiros comerciais brasileiros. O estremecimento nas relações bilaterais afeta a economia brasileira. Esse é o cenário mais brando que podemos esperar.

O cenário mais acirrado seria a utilização da cláusula democrática. Vale lembrar que, há não muito tempo atrás, o próprio Brasil encabeçou uma demanda contra o Paraguai, suspendendo-o do Mercosul, por conta de um processo de impeachment que foi considerado golpe branco. Da mesma forma, essa cláusula pode vir a ser utilizada contra o Brasil. Esse seria o pior cenário regional que o governo Temer poderia vir a enfrentar.

IM – Como a senhora enxerga essa possibilidade?
SK – Eu vejo de forma eventual. Vai depender muito de como isso vai ser costurado. Mas vejo no mínimo que isso pode ser um tema a ser levantado, até porque o próprio Macri já traz essa bandeira.

IM – Quais são as principais evidências que a senhora observa nas posições de Macri nesse sentido?
SK – A Argentina depende enormemente da economia brasileira hoje. Nesse sentido, é importante lembrar que o governo Temer, da forma como está sendo construído, é um governo que traz maior proximidade com PSDB, Serra e com determinados discursos contrários ao Mercosul. A perspectiva liberal brasileira não é uma perspectiva que aposte no Mercosul. Vários setores do PSDB dizem que o bloco não deu certo, que a gente deveria avançar em tratados de livre comércio.

Uma das formas, a meu ver, em um cálculo político possível de Macri pressionar o Brasil nesse sentido, é justamente mostrar posição mais assertiva em um momento inicial em que esse novo governo não vai estar estruturado para negociar um acordo bilateral com outros atores. A meu ver, Macri e sua ministra Malcorra têm a consciência de que esse projeto neoliberal que entra em vigor não é um projeto político que seja interessante para a Argentina, apesar de liberal. As apostas do liberalismo brasileiro não são pelas relações com o país vizinho. Portanto, vejo que essa pode ser uma estratégia usada para pressionar o Brasil.

IM – Muitos nomes contrários ao impeachment no Brasil comparam nosso processo ao que ocorreu recentemente no Paraguai e em Honduras. É possível fazer esse tipo de comparação na sua avaliação?
SK – Se observarmos o cenário latino-americano, desde a década de 1990, temos um número substancial de impeachment. Esse é um novo padrão da região. Fenômenos latino-americanos vêm em ondas e eu diria que estamos entrando ou já entramos em um novo período de rupturas institucionais, que não são mais aquelas que ocorreram nas décadas de 1950/1960, que contavam com os militares como poder moderador e que viriam a assumir o poder. Neste momento, o que temos é a utilização da norma constituída para interromper um governo democraticamente eleito. Utiliza-se uma interpretação da norma para ir contra a soberania popular – em linha com o que a Cepal observou. É possível tentar sustentar que o impeachment não é um golpe, sendo que essa é uma questão jurídica. Mas é preciso entender que o Direito não é somente uma interpretação literal da norma.

No caso de Lugo, não é possível dizer que, em 48 horas e sem defesa, poder-se-ia consumir um processo de impeachment. Isso viola vários princípios do Direito, como o contraditório, devido processo legal, ampla defesa. Apesar de se alegar que é um processo político, e não jurídico, há direitos fundamentais que estão previstos na Declaração Universal dos Direitos Humanos. A justificativa de que é um processo político não pode dar margem para que se venha a ferir determinados princípios considerados Direitos Humanos historicamente. Trata-se de uma perspectiva extremamente legalista e positivista que se utiliza da lei para conferir essa suposta legalidade. Esse é um ponto comum entre o que está acontecendo hoje [no Brasil] e o que aconteceu nos casos de Fernando Lugo e de Manuel Zelaya, de rupturas institucionais na região.

IM – Como a senhora enxerga o processo de impeachment em curso no Brasil, sob o ponto de vista das relações dos atores em nível doméstico?
SK – O que está acontecendo no Brasil é o demonstrativo de algo muito próximo à falência de um sistema político. O que temos que questionar primeiro é o modelo de representatividade, que fica muito claro quando olhamos para o Congresso Nacional. Arrisco-me a dizer que não vejo a sociedade brasileira efetivamente representada na sua pluralidade ali. É uma boa oportunidade para discutirmos reforma política.

Com a globalização, tendemos a falar em novos atores e processos, mas na verdade são novas roupagens, figuras e pessoas, que representam uma linha que se perpetua no Brasil. Quando olhamos para a Câmara, percebemos parlamentares no quinto mandato, considerando ainda por cima que o principal ator que está frente deste processo é o PMDB. O partido é tudo menos novo no cenário político brasileiro. Ninguém governa o Brasil sem esses atores. Estamos falando dos mesmos, de um processo de continuidade, de um processo de oligarquias que se perpetuam no poder e impedem uma renovação de quadros políticos no Brasil.

Temos que entender que o contexto é diferente no sentido de que as questões que nos levam à crise hoje são o contexto de crise internacional, de crise econômica, de baixa das commodities, juntando com fatores sociais e políticos no Brasil, como o exaurimento do presidencialismo de coalizão. Tudo isso potencializa o jogo político que esses atores nada novos podem utilizar para justificar o processo de ruptura institucional.

IM – O impeachment de Dilma é dado como praticamente um fato consumado. Pela sua avaliação, fica a impressão de que o contexto internacional pode embolar e atrasar o processo. Quais são os limites da influência sobre andamento do impeachment no Brasil?
SK – É muito difícil fazer previsões nesse cenário político, porque os fatores se alteram muito rapidamente. Mas o que posso dizer é que, quando falamos do sistema internacional, essas alterações são sempre mais lentas. E é preciso entender que, por mais que tenhamos flexibilizado a soberania, que o mundo esteja muito mais integrado, cooperativo e interligado hoje, existem grandes limites para a atuação do sistema internacional sobre os Estados. Apesar da necessidade de atuação, acho muito difícil que venhamos a ter resultados muito rápidos em relação a isso. O impeachment está extremamente avançado e não sei até que ponto o sistema internacional – seja por organismos ou atores centrais – possa ter uma influência tão rápida e certa. Mas vejo também que esse posicionamento é importante, já que a crise política está longe de acabar com ou sem impeachment. Por mais que exista o impeachment, esse tipo de articulação internacional pode, por ventura, inviabilizar a governabilidade de Michel Temer. Nesse sentido, poderíamos entrar em um terceiro quadro: eleições diretas.

IM – Isso seria mais fácil de a comunidade internacional aceitar?
SK – Esse seria o fôlego que a comunidade internacional teria. Estamos em um período importante para o Brasil. E os países latino-americanos entendem que para onde ele for vai a América Latina. Considerando a importância do Brasil na região, temos que pensar não em termos de Brasil. Temos que pensar que os custos para a região de uma ausência de posicionamento, de uma conivência com o procedimento de impeachment tal qual ele tem sido levado a cabo no Brasil, poderiam ser altos. A sinalização é que esse tipo de conduta é aceitável não só no Brasil, como nos outros países. Temos que olhar também o transbordamento desse tipo de conivência com relação a outras críticas domésticas. Eu particularmente vejo que essa articulação internacional pode levar ao reforço de um terceiro cenário que ainda vem sendo pouco falado no Brasil, que é o de Diretas Já novamente, inviabilizando a permanência de Temer no poder. É o grande medo dele.

IM – O atual episódio de impeachment no Brasil poderia ser mais entendido como um voto de desconfiança, tal qual existe em sistemas parlamentaristas?
SK – Acho muito delicado. A forma como o impeachment foi construído alimenta um parlamentarismo inexistente no Brasil. Não se pode dizer que votou a favor do impeachment pelo “conjunto da obra”, isso não é a lógica. A base legal do impeachment é muito fraca. Dessa forma, isso se assemelha muito mais a um voto de desconfiança. Em um sistema parlamentarista, podemos entender que o primeiro ministro pode cair não porque cometeu crime, mas porque perde o apoio do parlamento. No caso brasileiro, o processo atual configura um voto de desconfiança, que é uma aberração, porque não estamos em um parlamentarismo, mas em um presidencialismo. Para a utilização de impeachment no Brasil, precisamos falar de crime de responsabilidade. E não é à toa que praticamente nenhum dos deputados no domingo levantou isso.

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Marcos Mortari

Responsável pela cobertura de política do InfoMoney, coordena o levantamento Barômetro do Poder, apresenta o programa Conexão Brasília e o podcast Frequência Política.