Maior crise que o brasileiro vive é a de perspectiva, diz presidente do Data Popular

Em entrevista à Rio Bravo, Renato Meirelles falou sobre o atual cenário da "nova" classe C e como estão as perspectivas desta parcela da população em meio a crise

Rodrigo Tolotti

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SÃO PAULO – Por muitos anos, a classe C foi um símbolo do sucesso econômico e político do Brasil. Porém, hoje, com a atual crise econômica, essa ideia tem ficado para trás e muitos já se questionam se as pessoas que ascenderam neste período não correm algum risco de voltarem para níveis baixos de renda.

É neste debate que a Rio Bravo Investimentos entrevistou Renato Meirelles, presidente do instituto Data Popular. Na conversa, ele fala sobre o impacto da crise junto a nova classe média, grupo que corresponde atualmente a 56% da população brasileira. Para Meirelles, por conta do pessimismo com relação ao futuro, a nova classe média acredita na ideia de meritocracia, tendo como referência o princípio de “igualdade de oportunidades”.

Além de explicar como é composta a classe C, o Meirelles aponta que, com o objetivo de debelar os efeitos de um cenário adverso, essa camada social tem adotado estratégias diversas, como o corte de gastos e até mesmo a reorganização das dívidas domésticas, num processo que é geralmente liderado pelas mulheres dessas famílias. Veja a entrevista:

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Rio Bravo Investimentos – Por muitos anos, a classe C foi um símbolo do sucesso econômico e político do Brasil. É possível dizer agora, com a estabilidade econômica que estamos vivendo, que o que temos visto é o colapso deste mesmo símbolo? Ou seja, o modelo de inclusão que se estabeleceu a partir do consumo e se rompeu?

Renato Meirelles – A classe C surgiu basicamente por três fatores na última década, no Brasil. Por um fator de distribuição de renda, que foi alavancado pelo aumento real do salário mínimo e o maior número de pessoas que passaram a fazer parte do mercado de trabalho. Ao contrário do que alguns pensam, não foi o Bolsa Família que tirou milhões de pessoas da Classe D e levou para a classe C. Foi, sim, o emprego formal. Se deu por uma maior participação da mulher no mercado de trabalho e pelo aumento da escolaridade média das pessoas.

Esse fenômeno efetivamente veio para ficar. Não tanto pela manutenção dos índices de emprego, embora ainda tenhamos níveis internacionalmente muito bons com relação ao emprego da população, mas veio para ficar porque é muito difícil para um consumidor que aprendeu a comprar produtos que até pouco tempo atrás não comprava a dar um passo atrás no consumo. Isso está fazendo com que mesmo durante a crise econômica a classe C tenha procurado maneiras de manter a sua renda.

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O que nós vemos hoje é uma classe C muito incomodada com inflação, em primeiro momento, muito incomodada com a falta de perspectiva de aumento real no salário e o aumento do desemprego que tem enfrentado. Isso leva a um mau humor da classe C, mas longe de significar com que os 42 milhões de brasileiros que passaram a fazer parte dessa nova classe média voltasse para trás.

RB – O modo como a crise econômica tem afetado a classe C não significa que as conquistas desse grupo estão em risco?

RM – Algumas conquistas, sim, estão em risco. A conquista, por exemplo, de poder lutar por salário melhores. Quando você vive um pleno emprego, como nós vivemos até pouco tempo atrás, a classe C tinha maior poder de barganha com relação ao seu empregador nas negociações salariais.

Um outro risco que a classe C está enfrentando é o processo de crédito. A gente sabe que o Brasil vive uma retração de crédito, mas sabe também que nenhum grande país do mundo se desenvolveu sem oferecer crédito para sua população. Alguns acham que o Brasil ainda sofre uma bolha de crédito. Falam que o que fez o Brasil crescer foi o aumento do crédito e do consumo, mas o crédito e o consumo vieram como consequência do aumento da renda da população brasileira.

Na verdade, o que se incentivou não foi o consumo. O que se incentivou foi o aumento da renda. O consumo foi a consequência desse aumento da renda, alavancado pelo crédito. Essa é uma dificuldade que existe hoje nessa nova classe média brasileira. Mas a crise que a classe C vive, de fato, é uma crise de perspectiva.

O problema não está na crise. A classe C já esteve na crise em 2008, por exemplo, mas enxergava a luz no fim do túnel, e hoje ela não enxerga nem na classe política, nem nas empresas uma luz no fim do túnel. Alguém capaz de tirá-la desse marasmo que a sua vida econômica se tornou nesses últimos tempos.

RB- Se o consumo é consequência da renda e a renda está diminuída por conta do alto índice da inflação, essa nova classe média não vai sentir essa crise de uma maneira mais forte do que sentiu em 2008, por exemplo?

RM – Ela está sentindo sim. Está sentindo de uma forma mais forte do que 2008 porque tem menos crédito do que tinha em 2008. Se a gente for lembrar bem, foi aplicado um conjunto de medidas anticíclicas com liberação do empréstimo compulsório, por exemplo, para oferecer para a população brasileira o acesso a bens e produtos que até pouco tempo atrás ela não tinha. Sofre porque o índice de desemprego cresce efetivamente.

Em compensação, a vontade de empreender dessa nova classe média também cresceu, comparada a 2008 e 2009. O que a gente tem visto é uma classe C que cansou de reclamar com relação à situação econômica do país e começou a arregaçar as mangas e correr atrás do prejuízo.

RB – Qual tem sido essa nova atitude da classe média com relação a esse cenário de adversidade? Que estratégias esse grupo tem tomado para tentar debelar a crise?

RM – Assim como os ouvintes do Podcast da Rio Bravo, a classe C e D também ouve todos os dias o noticiário sobre o a ajuste econômico que o nosso Brasil está vivendo. Ela não entende muito o significado desse ajuste. Ela não entende o que é taxa Selic, o que é o endividamento público, muito menos de balança comercial, mas, à sua maneira, ela também já começou a fazer um ajuste fiscal doméstico, que nada mais é do que não gastar mais do que ganha.

E como ela faz esse ajuste fiscal doméstico? Em primeiro lugar, esse ajuste fiscal tem uma liderança clara dentro da família brasileira. Esse ajuste fiscal é liderado pelas mulheres. É como se existisse um Joaquim Levy de saias dentro da casa de cada brasileiro. Esse Joaquim Levy de saias, em primeiro lugar, consegue reduzir os gastos brasileiros. Ele olha em uma lista e percebe quais são os gastos que, de fato, são supérfluos, quais os gastos que devem ser mantidos, em especial pensando no futuro das pessoas. Significa que ela, por exemplo, está economizando água e está economizando luz. Ela passa a trocar marcas caras por marcas mais baratas, mas tentando não abrir mão da qualidade. Faz de tudo para conseguir manter o filho na escola.

Aliás, a prioridade nos investimentos de educação é uma das diferenças entre o ajuste fiscal doméstico e o ajuste fiscal que tem sido promovido pelo governo federal. Por outro lado, ela tenta buscar receitas extras trabalhando mais. Então o número de trabalhadores que passam a fazer bicos e conseguir uma renda extra atinge hoje quase 7 de cada 10 trabalhadores no Brasil. Ela tenta se desfazer de alguns patrimônios, o que é um outro detalhe interessante. Nunca os sites de venda e troca cresceram tanto no Brasil, impulsionados por essa classe C e D.

De um lado, ela tenta economizar dinheiro, do outro lado ela faz bico, vende material, tenta dobrar tudo sempre que possível, se a sua profissão assim permite. Então ela faz hora extra para conseguir uma grana a mais. E se nada disso funciona, ela faz a pedalada fiscal doméstica. Ela olha para suas contas, para a conta de luz, para a conta do cartão de crédito, vê qual paga um juros maior, paga essa conta, olha para conta de luz, que, em geral, demora dois meses para ser cortada, e adia essa conta para o mês que vez. Empurra com a barriga. Isso é a pedalada fiscal doméstica, que é o que acontece na classe C e D. A crise chegou para essa parcela da população, mas ela está fazendo a sua parte.

RB – Essa pedalada fiscal acontece como a última alternativa. Pelo o que você disse agora há pouco, essa classe média corta o excesso, investe em educação e aumenta a produtividade.

RM – Ela tenta a todo o momento aumentar a produtividade. A pedalada fiscal doméstica, que é esse atraso, por exemplo, da conta de luz, está diretamente vinculado à falta de capital de giro e aos pequenos créditos que ela necessita. Então, o que as grandes empresas fazem hoje? Elas sabem que se ela atrasar o imposto do governo, os juros que o governo vai cobrar dela é menor do que o juros que os bancos vão cobrar.

Então ela atrasa o pagamento de um imposto, que é melhor do que pegar um dinheiro emprestado de capital de giro dos grandes bancos para poder pagar esse imposto. Dessa forma, o banco financia as grandes empresas. Todos nós sabemos como isso funciona e isso funciona na grande maioria das grandes empresas que existem no Brasil.

Isso não é diferente com a dona de casa. Ela sabe que o juros da conta de luz é menor do que o juros do cartão de crédito ou do que o carnê da rede de varejo, ela prefere pagar esse juros menor, já que sabe que não vai sofrer penalidade até se tiver dois meses de atraso e usa isso a seu favor nessa busca por um capital de giro para as contas do dia a dia.

RB – A faixa de renda per capta que demarca o posicionamento dessa nova classe média não foi muito condescendente com o momento favorável do país? Esses números não apontavam mais para uma situação de precariedade do que de classe média?

RM – O Brasil, em geral, tem uma característica muito peculiar. O Brasil é um país em que os pobres não gostam de falar que são pobres e os ricos não gostam de falar que são ricos. Se você perguntar para alguém que anda de ônibus, ele vai dizer que rico é quem tem moto, se perguntar para alguém que tem moto, rico é quem tem carro, se você tem um carro, rico é quem tem carro importado… E pode apostar que se você perguntar para alguém que tem um carro importado o que é rico, ele vai dizer, sem pestanejar, que rico é quem anda de helicóptero.

O problema é que falamos aqui de classe econômica e não de classe social. Quando você vai olhar o que é uma classe média, é quem tem a média dos rendimentos brasileiros. E o Brasil é um país com uma renda muito baixa. Para os ouvintes terem uma ideia, metade das famílias brasileira tem uma renda por pessoa da família de até 620 reais por pessoa da família. O que em uma família de 4 pessoas daria uma renda familiar média aí de pouco mais de 2000, 2200 reais.

Metade das famílias brasileiras ganha menos do que isso todo mês. Os 5% mais ricos do Brasil tem uma renda por pessoa da família que começa em 2820 reais por pessoa da família. Ou seja, uma renda familiar em uma família de 4 pessoas de menos de 12000 reais. Apenas 5% das famílias brasileiras ganham mais do que isso.

Ou seja, o Brasil é um país de uma renda muito desigual. E eu não posso falar que a renda dos 5% mais ricos são a renda da classe média, porque não são. São o topo da pirâmide de renda. Se nós extrapolarmos isso e formos para o topo do topo da pirâmide da renda brasileira e formos para o 1% mais ricos das famílias brasileiras, eles começam com uma renda per capita, uma renda por pessoa da família, de 11500 reais.

Em uma família de 4 pessoas, serial algo próximo de 45000 reais de renda familiar. 45000 reais é muito dinheiro, mas provavelmente muitos dos nossos ouvintes têm uma renda familiar maior do que essa. Parabéns, vocês fazem parte do 1% mais ricos do Brasil. Só que como o Brasil é um país em que todo mundo se considera classe média, a tendência de todos é achar que rico é o outro. Mas eu não posso falar que os 5% mais ricos ou que o 1% mais ricos, na prática, são classe média.

RB – Depois de tantos textos, análises e pesquisa, existe alguma nuance que não foi capturada em relação a classe C, a maneira como ela percebe, por exemplo?

RM – Existe. Nós vimos que a classe C trabalha com um debate histórico que existe entre esquerda e direita de igualdade de oportunidades versus meritocracia de uma forma muito própria. Talvez a forma mais correta. Esse FlaXFlu ideológico, que infelizmente se transformou o nosso país nos últimos anos, não permite com que a gente enxergue.

Ela, de um lado, acha que sua vida melhorou e melhorou graças a si, graças ao seu próprio esforço. Ela acredita na meritocracia como um valor consagrado na sociedade brasileira, mas tem um outro lado disso. Ela acredita tanto na meritocracia que entende que, que de verdade, ela só existe quando há igualdade de oportunidades na sociedade brasileira, e ela acha que é esse o papel do governo.

É papel do governo oferecer igualdade de oportunidades. Essa é a nuance que nós estamos estudando mais sobre a classe C hoje, no Brasil. Uma classe C que entende o valor do esforço pessoal, que valoriza a meritocracia, mas entende que não existe mérito nenhum em uma corrida de 100 metros se o vencedor largou 50 metros na frente. O branco, homem, filho de pais que já fizeram faculdade largam 50 metros na frente em uma corrida de 100 metros.

RB – Ainda em relação a essas conquistas que está sobre ameaça em virtude de crise, é legítimo afirmarmos que a baixo aprovação do governo hoje está relacionada com essa percepção de que a autoridade política falhou na manutenção desse status?

RM – Claramente. Vamos entender o que acontece na crise do Brasil. O brasileiro chegou em 2010 achando que tudo era possível, que o céu era o limite. Ele elegeu a presidente Dilma acreditando que sua vida ia continuar melhorando, como melhorou em 2010, onde o PIB chegou em 7,5%, o consumo da família esbarrou nos 10% de crescimento real.

Esse movimento gerou um over promise com relação ao que seria o futuro do Brasil. Ele passou a ser mais exigente com relação aos serviços públicos, na medida em que o que alavancou o crescimento da classe C foi geração de emprego formal. E pelo formal é imposto de renda retido na fonte. Portanto, ele passa a entender com mais clareza que o serviço público não é favor do governo, é a contrapartida do imposto que ele paga.

Ele não enxerga mais essa contrapartida do poder público. Com isso, aumentou também a crise econômica e o aumento da inflação, que chegou no bolso desses brasileiros. E ele passou a enxergar a corrupção como a causa raiz de todos os problemas econômicos que o Brasil está tendo.

Então, sim, ele está muito insatisfeito com relação ao governo, mas também está insatisfeito com relação à oposição. Ele não acha, hoje, que a alternância de poder, nos padrões que estão sendo colocados hoje, signifique uma melhora na qualidade de vida.

RB – Do ponto de vista de liderança política ou referência pública, essa classe C está órfã?

RM – Ela está completamente órfã. O Brasil vive uma crise ética e moral? Vive. Vive uma crise econômica? Vive, mas a maior crise que ao brasileiro vive é a de perspectiva. É não enxergar luz no fim do túnel. Ele fala sem medo de errar que só existe uma coisa tão ruim quanto o governo: a oposição.

Enquanto a oposição não conseguir mostrar uma alternativa eficiente para o país, ela não vai conseguir o apoio da grande maioria de população brasileira. Se tem uma coisa que aprendemos com o processo eleitoral dos últimos anos é que o Brasil quer um Estado que, de alguma forma, ofereça igualdade de oportunidades. Enquanto a oposição não entender isso, ela não vai ganhar o apoio da grande maioria da população brasileira.

RB – A classe C está mais otimista ou mais pessimista em relação ao futuro do país?

RM – Comparado com a classe A, a classe C é mais otimista, mas ela está muito mais pessimista do que estava alguns anos atrás. Ela acha que o desemprego vai crescer, que a inflação vai continuar subindo, ela não está enxergando perspectiva real do aumento do salário. Mas quando a gente pergunta sobre a vida pessoal, dois terços da classe C afirmam, sem medo de errar, que a vida pessoal vai melhorar. E quando a gente pergunta por que ele diz que é porque a economia depende dos políticos, mas sua vida depende do seu suor e do seu trabalho e que confia em si.

RB – A ideia da meritocracia de novo.

RM – É a meritocracia que busca um governo que busque igualdade de oportunidades para que ela possa ser exercida em sua plenitude. É como se ela defendesse um governo onde não interessa de onde você nasceu, interessa onde você quer chegar. Um governo que apoie essa melhora de qualidade de vida.

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Rodrigo Tolotti

Repórter de mercados do InfoMoney, escreve matérias sobre ações, câmbio, empresas, economia e política. Responsável pelo programa “Bloco Cripto” e outros assuntos relacionados à criptomoedas.