Educação: qualidades e dúvidas no projeto da Base Nacional Comum Curricular

Para o sucesso da Base Nacional Curricular Comum, o Estado deverá ampliar ainda mais sua ação e investimento, com foco na missão de transformar todo professor em educador, sensível, acolhedor e fundamentalmente democrático.

Equipe InfoMoney

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Colunista convidada: Neda Lian Branco Martins, educadora, coordenadora pedagógica do Grupo A Educacional

A proposta do governo para a Base Nacional Curricular é um projeto louvável no que tange à valorização do Ensino Fundamental, pois contraria a prática vigente de priorizar o Ensino Superior, numa visão equivocada, ao inverter a pirâmide natural. Há que se ponderar que quando se quer erguer um prédio, o primeiro a se fazer são sólidos alicerces, sobre os quais se erguerá a edificação, portanto é para esse segmento da educação que todos os esforços devem estar voltados.

Investir na linguagem (intenção emergente na nova proposta) como centro do processo educativo e responsável pelo universo vocabular, pela leitura significativa e pela comunicação, tanto oral, quanto escrita, é primordial, pois só através dela é que o indivíduo terá acesso a todas as áreas do conhecimento.Linguagem e Pensamento são conceitos correlatos.

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Promover a emergência de seres pensantes, capazes de entender plenamente o que ouvem e o que leem, para agir de forma operatória sobre enunciados lógicos e científicos, bem como, para proceder à intelecção e análise de textos, de qualquer gênero, é o ensinamento e a aprendizagem que se espera do ensino básico.

Outros aspectos a serem ressaltados e que se constituirão num avanço inegável se forem efetivados são: a busca das origens, o respeito às etnias, aos credos e às convicções de toda ordem, o espírito de preservação da natureza e a sustentabilidade, a real compreensão da identidade dos gêneros, o acolhimento igualitário das diferentes condições físicas ou mentais, que propiciam a verdadeira inclusão e, finalmente, a ênfase dada aos valores e à ética, sem os quais, nenhum plano civilizatório prospera. O cumprimento dessas premissas no plano ora esboçado garantirá o surgimento de uma nova geração, competente, atuante, empreendedora e solidária.

Devemos partir do pressuposto de que não existirá futuro sem um passado reverenciado, no que teve de bom e sem um presente que tenha consolidado suas propostas com sucesso.

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Ao longo das décadas em que se viveu e respirou educação, houve muitas conquistas originadas de estudos instigantes e teorias inovadoras, que provocaram mudanças substanciais no pensar da educação mundial, personificadas, então, em Piaget e Vygotsky, sem falarmos em todos os outros que os sucederam. E na esfera nacional, que é nossa pauta de hoje, tivemos a figura emblemática de Paulo Freire, reconhecida e respeitada no mundo inteiro, que negada ou venerada, constituiu-se no pilar de tantos avanços que hoje não podem ser desprezados na nova proposta.

Outros fatores relevantes foram os Referenciais Curriculares da Educação Infantil, um marco histórico, um verdadeiro divisor de águas, (com vistas ao pioneiro e bem sucedido Curriculo de La Etapa de Barcelona), que cuidou minuciosamente de todos os detalhes, rechaçou a postura assistencialista, catapultando esse nível a um patamar eminentemente educacional. Os Parâmetros Curriculares do Ensino Fundamental e do Médio, por sua vez, foram elaborados contemplando em todos os estágios e em todas as áreas e disciplinas, os princípios democráticos preconizados pela educação de vanguarda. Tudo isto não pode ser esquecido, na implantação da base comum única.

Aliás, a visão única é que deveras preocupa, se não forem destacadas as diferenças regionais e culturais e se não se tiver em mente que somos um país de dimensões continentais, onde a diversidade supera em muito a semelhança e a uniformidade.

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Nesse novo projeto tratou-se de detalhar e esmiuçar os conteúdos, o que nos pareceu reduzi-los ao essencial, ao prioritário. Mas será que isso não traria o risco da minimização da informação, que deve servir de patamar de sustentação ao pluriculturalismo social, político e religioso? Se o ideal é o pensamento plural, não acabaremos nos defrontando com o sectarismo e suas danosas consequências de intransigência e intolerância, longe do ideal dialógico e democrático?

Se o educando tem de estar preparado para ser protagonista do enredo de sua própria vida e para interferir como cidadão na história de seu país, tem antes de tudo de se apropriar da maior diversidade de informações e não receber uma única vertente. O trabalho que lhe for ofertado a partir de várias matrizes promoverá o fortalecimento de sua postura crítica e o tornará capaz de construir suas hipóteses e definir o caminho que quer trilhar.

A grande encruzilhada é a versatilidade indispensável para viabilizar a proposta e nos remete à formação dos nossos educadores. É importante que todo esse segmento da educação esteja preparado para essa empreitada. Não me refiro apenas à formação acadêmica, que pode ser exemplar, mesmo porque, com a qualificação que têm, os conteúdos propostos são de seu inteiro domínio. Mas estarão eles dispostos a assumir uma abordagem mais ampla, desprovida de intransigência, plena de tolerância e desapegada do proselitismo (para o qual não poderá haver espaço), com risco de que se ponha tudo a perder?

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Para o sucesso da Base Nacional Curricular Comum, o Estado deverá ampliar ainda mais sua ação e investimento, com foco na missão de transformar todo professor em educador, sensível, acolhedor e fundamentalmente democrático.