Revisão detalhada de gastos públicos é urgente para novo governo, diz economista Ana Carla Abrão

Em entrevista exclusiva, economista diz que é preciso recuperar a gestão das contas e que volta do Ministério do Planejamento é bem-vinda

Roberto de Lira

Ana Carla Abrão (Roque de Sá/Agência Senado)

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A situação das contas públicas do Brasil está muito complicada para 2023 em diante e o novo governo que tomará posse em janeiro vai precisar, além do “waiver” (dispensa de cumprir o teto de gastos) que está negociando com o Congresso, realizar uma grande revisão de gastos, analisando linha por linha do Orçamento público. A opinião é de Ana Carla Abrão, economista e sócia da consultoria Oliver Wyman, em entrevista para o InfoMoney.

Para a economista, o Brasil enfrenta um momento difícil, com seu Orçamento capturado, quer seja por gastos obrigatórios, quer seja pelo “orçamento secreto” do Congresso, e o governo vai precisar recuperar o entendimento de que essa é a principal ferramenta de gestão e alocação de recursos públicos.

“A maior parte do países desenvolvidos já faz isso há mais de uma década. De forma periódica, revisa os gastos, avalia políticas públicas, descontinua algumas, coloca outras no lugar. Isso é fundamental”, defendeu.

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Para Ana Carla, é inegável que os números fiscais melhoraram nos últimos dois anos, mas isso ocorreu em função de situações artificiais, tanto pelo lado da receita quanto pelo lado da despesa. Ela argumenta que foi represada uma quantidade enorme de gastos e que a  inflação contribuiu para melhorar a receita.

“Ela (a despesa) de fato caiu. Mas caiu fruto de dois mecanismos que agora estão pressionando para o ano que vem e que estão fazendo parte dessa conta de até R$ 200 bilhões (a previsão do ‘waiver’ feita por alguns analistas). “Primeiro, congelou os salários. O outro mecanismo foi não fazer concurso público”, listou. Nos dois casos, são questões que terão que ser enfrentadas agora.

A economista lembra que, por não sido feita uma reforma administrativa, esse represamento de gastos virou um fator de pressão nas contas públicas a partir do ano que vem. “A gente não está enfrentando a situação fiscal para o ano de 2023, mas ela está aí. Na verdade, estruturalmente ela continua tão grave quanto sempre foi”, analisa.

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Sobre a proposta de fazer a revisão de gastos, Ana Carla defende que as despesas obrigatórias não são imutáveis. “São obrigatórios porque a gente não os enfrenta. Gasto obrigatório não significa que ele não seja racionalizável, que não tem espaço para redução. Significa que ele tem uma obrigatoriedade em relação àquela linha do orçamento, tem uma vinculação”, afirma.

Ela cita como exemplo o Auxílio Brasil, “que é um gasto obrigatório e necessário”, mas que perdeu focalização, qualidade, condicionalidade e até capacidade de identificação dos beneficiários. “O cadastro único, que era um instrumento importantíssimo para garantir que as políticas de assistência social tivessem consistência e focalização, foi destruído ao longo do governo Bolsonaro”, diz, lembrando que isso tornou o programa uma política pública de baixa qualidade, que custa muito. E foi se colocando cada vez mais dinheiro nela.

Ela sugere que a análise seja minuciosa. É preciso, segundo Ana Carla, olhar qual o impacto de cada gasto e também sua eficácia. Caso isso não se comprove, o recurso pode ser realocado de forma mais eficiente. “Acho que tem muito mais espaço no Orçamento hoje do que parece. Se a gente partisse de um programa de revisão de gastos, de avaliação de políticas públicas, iria se surpreender positivamente. Até o ‘waiver’ para gastar acima do teto poderia ser menor do que está sendo pedido”, prevê.

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Ela destaca que existem exemplos de países que fizeram essa reavaliação com muita eficiência, com resultado muito positivo, como Inglaterra, Canadá e Austrália.

Fazenda e Planejamento

Um dos caminhos do futuro governo seria  desmembrar o atual superministério da Economia. Na opinião de Ana Carla, foi um grande erro juntar não só o Planejamento e a Fazenda mas também outros ministérios, como o da Indústria e Comércio. “Isso funciona desde que se tenha capacidade de gestão, que este governo mostrou não ter. Uma coisa é alinhar as agendas, outra é dar foco em uma área e deixar as outras abandonadas, sem gestão e sem prioridade”, critica.

A economista diz que, ao unir Fazenda e Planejamento, o governo gerou uma articulação política atabalhoada que acabou por transferir para o Congresso a gestão do Orçamento, perdendo assim a capacidade de planejar e de colocar as prioridades dentro do orçamento público. “À medida que se abre mão do Planejamento, abre-se mão de definir como vai alocar os recursos e delega-se isso para interesses particulares, paroquiais de um congressista”, critica. “Ou retoma o Orçamento e entende que ele é um instrumento de gestão, ou terá de continuar a gastar mais”, afirma.

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Para Ana Carla, é uma boa ideia deixar o Ministério da Fazenda com um titular com perfil mais político, ao contrário do padrão dos últimos anos, conforme intenção já sinalizada pelo presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva.  “A Fazenda sofre o calor do caixa. Esse antagonismo entre Fazenda e Planejamento com um político no Planejamento sempre foi um problema porque ele não está com a pressão do caixa, não tem o Tesouro ali do lado dizendo: vai faltar dinheiro”.

Por outro lado, ela defende, para o Planejamento,  um perfil mais técnico, porque é necessário alguém mais detalhista, especialmente se for feita a opção sugerida antes de revisar linha a linha os gastos.

Entre os nomes que já foram listados para assumir a Fazenda com esse perfil político, Ana Carla elogiou o ex-governador do Piauí e senador eleito Wellington Dias (PT), que já teve de negociar com o Congresso durante a crise fiscal dos Estados entre 2015 e 2016.

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A economista também acredita que o governo eleito precisa aproveitar o capital político que conquistou nas urnas para endereçar as questões de mais longo prazo, evitando pensar apenas em 2023. “Justamente porque a fragilidade fiscal vai se impor se não enfrentar a questão fundamental que é como alocar os recursos. A gente não tem recursos infinitos,”, comenta.

Reforma administrativa

Ana Carla acredita ser possível avançar até numa reforma administrativa, mesmo em um governo petista. Para ela, o governo Bolsonaro se equivocou ao enviar uma PEC para o Congresso partindo da proposta de acabar com a estabilidade no serviço público. “A reforma que eu acredito que é a que pode nos trazer ganhos do ponto de vista de qualidade dos serviços públicos não precisa mexer na estabilidade”, defende.

Ele sugere um projeto de lei que regulamente o artigo 41 da Constituição (o que trata da estabilidade) e coloque no âmbito do serviço público a avaliação de desempenho, que os próprios sindicatos representantes de servidores públicos já assumiram que é necessária. Isso, desde que seja uma coisa bem-feita, que evite tanto o apadrinhamento quanto a perseguição. “E precisa fazer um processo de fusão de carreiras. Não dá para ter 300 carreiras no serviço público federal, cento e tantas em cada estado, 50 em cada município. Isso virou um foco de ineficiência muito grande e de competição”, lista.

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Uma terceira medida, que viria como consequência das outras duas, é acabar as promoções e progressões automáticas, especialmente as focadas no tempo de serviço, para embutir um pouco mais de meritocracia no processo. “Um governo petista tem melhores condições de fazer uma reforma administrativa”, afirma.

“O que a gente precisa é de uma reforma que nos permita ter uma máquina mais eficiente, que funcione melhor, que ofereça serviços públicos de melhor qualidade, em particular a educação, saúde e segurança pública. São os serviços básicos para a população, especialmente a de mais baixa renda. E essa, eu não vejo por que o PT não faria”, opina.

Investimentos

Entre as agendas que o PT propôs durante a campanha, a que mais preocupa a economista é a sugestão de que poderia ser retomada uma linha “desenvolvimentista” que se mostrou equivocada em gestões anteriores. “O governo do PT nunca foi muito eficiente quando se trata de investimento público. O PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) não foi um primor em termos de escolha em relação ao investimento público”, comenta, lembrando ainda de gastos para a realização da Copa do Mundo de 2014, a escolha de empresas “campeãs nacionais” e concessões de aeroportos superdimensionadas.

“Se a gente voltar à regra do passado, que caracterizou os governos petistas, eu tenho uma grande preocupação. Aí, vamos tirar do teto o investimento e vamos aumentar o endividamento. Se for para usar a receita do passado, não teremos retorno e esses recursos vão ser mal alocados”, afirma.

Ela, no entanto, diz ter esperança de que a agregação de forças que se uniram na eleição possam influenciar o debate dentro do novo governo. “São pessoas que vão questionar e vão desafiar essa mentalidade petista de investimento, de fazer obra, botar dinheiro público para girar na economia. Minha esperança é que essa frente ampla que foi formada, inclusive com economistas de cunho mais liberal, vá colocar isso de forma diferente do que foi no passado”.

Ela sugere pensar no que é ambiente de negócios, em parcerias público-privadas, em como atrair o investimento privado e como criar marcos legais para incentivar a vinda de investimentos. “Isso tende a contrabalançar o que é a visão tradicional petista de que gasto é vida. Gasto é vida desde que ele seja bem-feito. E não é o que a gente tem como exemplo no passado”, afirma.