Muhammad Yunus, o “banqueiro dos pobres”: Obsessão pelo lucro é tão grande que as pessoas viraram robôs

Em novo livro, o bengali de 83 anos continua a defender firmemente a pobreza zero e o desemprego zero

Estadão Conteúdo

Muhammad Yunus (Foto: Roberto Serra - Iguana Press/Getty Images)

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Os projetos de exploração de petróleo em novas áreas ajudam a aumentar a “cova” que a atual civilização – “robotizada” pela maximização do lucro – está cavando para si mesma. A meta de zerar as emissões líquidas de gases de efeito estufa precisa sair das promessas em conferências mundiais e chegar à vida real. É com esse tom de urgência que o Nobel da Paz, o economista Muhammad Yunus, resumiu, em entrevista ao Broadcast (sistema de notícias em tempo real do Grupo Estado), o terceiro dos três tópicos que dá nome ao seu livro, a ser lançado em duas semanas no Brasil.

Em Um Mundo de Três Zeros, o “banqueiro dos pobres”, como ficou conhecido ao disseminar o conceito do microcrédito, defende a emissão líquida zero de gases de efeito estufa. No novo livro, o bengali de 83 anos, que enfrenta ações judiciais e uma perseguição política em Bangladesh há anos, segundo seus apoiadores, continua a defender firmemente a pobreza zero e o desemprego zero.

Em entrevista exclusiva antes de voltar ao Brasil para a primeira visita em sete anos, o criador dos conceitos de negócio social e microcrédito criticou a prática de juros altos e pontuou que os esforços ESG (sigla em inglês para os temas ambientais, sociais e de governança) tendem a descambar para tentativas de greenwashing quando a direção da empresa segue obstinada em maximizar lucro. O ideal, segundo ele, é as corporações criarem negócios sociais separados da companhia e que não visem o lucro, para apoiar a construção do que chama de nova civilização baseada em valores humanos e nos “três zeros”.

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E nada de favorecer os empreendedores sociais com isenção de tributos ou facilidade financeira. No livro, Yunus defende a simplificação das leis que regem o microcrédito, mas tributação igual para negócios sociais e convencionais. O motivo é evitar eventual “arbitragem” e abusos “por pessoas inescrupulosas”. No Brasil, Ambev, Grupo Boticário e RaiaDrogasil já criaram projetos nesse sentido, juntamente com a Yunus Negócios Sociais, cofundada pelo economista há dez anos.

Yunus está no Brasil desde ontem e participa de eventos e reuniões em São Paulo, Brasília e Fortaleza ao longo da semana.

Leia a seguir os principais trechos da entrevista:

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No livro, o senhor fala em infraestrutura legal e financeira para negócios sociais. Quais são as mudanças regulatórias necessárias?

Antes de mudanças no quadro regulatório, é preciso introduzir o conceito propriamente. A regulação precisa estar preocupada com um problema: o empreendedor social ter sucesso e, sem contar a ninguém, se transformar em um negócio que visa ao lucro. É preciso ter em mente que, uma vez que você concede facilidades para um negócio social, como não pagar impostos, as pessoas começarão a abusar, a tirar proveito desses benefícios fiscais mesmo sendo um negócio tradicional. Quando há assimetrias regulatórias, é isso que acontece. As pessoas são muito inteligentes e encontram maneiras de enganar os reguladores. Defendo, portanto, que o empreendedor social deve seguir exatamente a mesma regulação. O real problema ainda não é regulatório, é como popularizar o conceito e também introduzi-lo no mundo acadêmico, nas escolas. Em um negócio social, a empresa gera lucro que deve ser reinvestido na empresa. O proprietário ou o investidor recupera o dinheiro que investiu, mas nada mais do que isso.

O senhor acabou de voltar da New York Climate Week. Viu alguma evolução nesse sentido nas universidades por lá?

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As universidades ao redor do mundo têm demonstrado interesse pelo assunto e estão introduzindo o negócio social como um curso. Muitas já ensinam microfinanças sob o conceito de negócio social porque temos dito que as microfinanças são um negócio social. Algumas universidades já foram além. Criaram o que chamamos de Centro de Negócios Sociais. Há 106 universidades ao redor do mundo que possuem unidades desse tipo, oferecendo cursos de graduação sobre negócio social. Outras têm programas de doutorado ou mestrado.

No seu novo livro, o senhor fala da urgência de o mundo migrar para o “carbono zero”, com uma economia com emissão líquida neutra. Como o senhor vê as grandes empresas de petróleo que estão investindo em novas áreas para exploração, como a Petrobras?

Já houve muitas conferências, promessas, metas, acordos sobre emissão zero. Ao mesmo tempo, a indústria de combustíveis fósseis continua se expandindo, novos negócios estão sendo criados. Então, há uma discordância entre o que dizemos que é importante para nossa sobrevivência e o que fazemos. Estamos praticamente cavando nossa própria cova e, mesmo sabendo do perigo, não conseguimos parar. Nesse sistema, as pessoas se tornam robôs correndo atrás do dinheiro. E nesse comportamento robótico, ficam atrás de mais e mais dinheiro, mesmo que isso destrua nosso planeta. Não são apenas os negócios de combustível fóssil. Há outras questões como a do plástico. Vivemos uma autodestruição que conhecemos, mas que não impedimos. Um mundo de emissão líquida zero não é consistente com o mundo de maximização de lucro. A emissão de carbono é apenas um aspecto dessa civilização autodestrutiva. Outro é a concentração extrema de riqueza. O atual sistema empurra a riqueza para o topo com a ajuda do sistema financeiro. E o grupo de pessoas pobres vai ficando cada vez maior. Esse é um sistema explosivo e que vai gerar uma tremenda tensão e agitação social, destruindo o planeta inteiro. Outro aspecto desse modelo autodestrutivo é o aumento do desemprego causado por tecnologias, como a inteligência artificial, que tem registrado crescimento exponencial.

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Mas a inteligência artificial também traz benefícios para a sociedade e poderia ser usada para reduzir a pobreza.

Quem está fazendo ou vai fazer isso? A única missão é ganhar dinheiro nesse sistema de maximização de lucro. Não há outra preocupação. Esta é uma civilização que está se destruindo, seja pelas emissões de carbono, pela concentração de riqueza, pela tecnologia. Os seres humanos se tornarão um lixo neste planeta, sem utilidade, sem trabalho, sem comida. Ninguém vai alimentar quem não tem uma atividade geradora de renda. É por isso que estamos trabalhando para sair deste modelo e criar uma nova civilização baseada nos três zeros. Hoje, somos robôs econômicos. Na nova civilização, teremos que nos redescobrir como seres humanos porque ela será baseada em valores humanos, como cuidar, compartilhar.

Como deve se dar a transição entre as duas civilizações?

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Em primeiro lugar, precisamos redesenhar nosso sistema acadêmico. Precisamos ensinar aos alunos que o ser humano não nasceu só para ganhar dinheiro. É preciso compor nossos interesses individuais com o interesse coletivo, atendido pelo conceito de negócios sociais. As pessoas me perguntam por que alguém iria fazer negócios apenas para beneficiar os outros? Ora, o dinheiro não é o único incentivo. Ganhar dinheiro talvez traga felicidade, mas fazer outras pessoas felizes traz uma superfelicidade. As pessoas se sentem felizes ao resolver problemas como a pobreza. É algo empolgante.

O senhor acredita que o ESG, um tema cada vez mais presente no mundo corporativo, compete com o esforço de as empresas investirem em negócios de impacto social?

Colocaria da seguinte forma: o conceito é bom e, pelo menos, ajuda a chamar a atenção para alguns problemas, mas algumas empresas fazem greenwashing porque as pessoas querem ouvir um discurso sustentável. A menos que você crie uma empresa separada com um negócio social, você nunca saberá o que realmente faz. A empresa pode ser fabricante de pão e dizer que está ajudando as pessoas a se alimentar. Mas se a empresa fabrica e vende o pão visando ao lucro, a intenção ainda é ganhar dinheiro em vez de resolver o problema da fome das pessoas.

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Em sua opinião, há confusão entre filantropia e investimento de impacto?

Sim. Existe essa confusão. E muitos investidores ainda não entendem o que é negócio social e investimento de impacto porque não são ensinados nas universidades. As escolas de negócios ensinam os estudantes a ganhar toneladas de dinheiro, a fazer campanhas para convencer as pessoas a comprarem um novo produto que elas sequer precisam. E o que propomos é desperdício zero. O primeiro princípio desse conceito é recusar. Se você não precisa, não compre. Então, em primeiro lugar, recuse, depois reduza, reutilize e recicle. Isso deve estar enraizado na mente de cada criança, em cada família. Temos de criar uma geração de desperdício zero.

O senhor defende que o altruísmo é uma força criativa tão poderosa quanto o interesse próprio.

É mais poderosa. Ganhar dinheiro pode trazer felicidade para algumas pessoas. Mas fazer outras pessoas felizes traz uma superfelicidade. Portanto, o altruísmo é mais poderoso. É a experiência mais intoxicante que uma pessoa pode ter.