Donas do jogo: as brasileiras que estão transformando a indústria de games no país

Conheça a trajetória de quatro mulheres que estão transformando a indústria de jogos no Brasil

Michele Loureiro

Mulheres ainda são presença rara em cargos de liderança de empresas de games no Brasil

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SÃO PAULO – Mais da metade das pessoas que jogam algum tipo de game no Brasil são mulheres. Segundo a Pesquisa Game Brasil (PGB), o público feminino representa 53,8% dos jogadores no país em um mercado que movimenta aproximadamente R$ 5,6 bilhões no Brasil e é a maior indústria de entretenimento, à frente de segmentos importantes como música e cinema.

“Apesar desse número, a percepção das mulheres nos games é bem menor porque muitas delas não se identificam nesse ambiente. Elas usam namings neutros ou masculinos por medo de preconceito ou assédio, por exemplo”, diz Camila Malaman, conselheira de diversidade da Abragames (Associação Brasileira das Empresas Desenvolvedoras de Jogos Digitais).

O mesmo cenário se repete nas empresas do setor. As mulheres estão lá, mas ainda é preciso procurar bastante para encontrá-las. Não há estudos oficiais sobre a presença feminina nas companhias de games, mas especialistas apontam que o cenário é parecido com a indústria da tecnologia.

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Segundo um estudo realizado pela consultoria IDC (International Data Corporation), apenas 20% dos atuantes da área de tecnologia no Brasil se declaram como mulheres. Em um recorte mais aproximado, apenas 5,8% das pessoas que ocupam cargos de desenvolvedores são mulheres.

Camila ressalta que há alguns movimentos para mudar essa realidade e ajudar na inclusão dessas minorias, como debates e até mesmo certificações de empresas com selos de diversidade da Abragames para companhias que cumprem metas de contratação de públicos específicos.

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“Essa realidade está se transformando aos poucos. Acredito que mais do que incluir as minorias nas empresas é preciso fortalecer lideranças femininas que apoiem a causa. A mudança também deve vir de cima para baixo”, afirma a conselheira de diversidade.

E é justamente isso o que as quatro executivas entrevistadas pelo Do Zero ao Topo, marca de empreendedorismo do InfoMoney, estão fazendo: ajudando a transformar a indústria de games no Brasil. Citadas entre as principais lideranças do setor, elas contam um pouco sobre suas trajetórias e falam sobre como é atuar em um setor onde a presença dominante é masculina. Confira a seguir.

Fernanda Lobão, cofundadora e CEO da Final Level

Fernanda Lobão, CEO da Final Level (Divulgação)

Fernanda Lobão, 42 anos, é formada em administração de empresas e trilhou sua carreira em grandes empresas, como Oi, Grupo Claro e Grupo Globo. Teve papel importante nos Jogos Pan Americanos 2007 e nos Jogos Olímpicos 2016 e ganhou destaque no meio esportivo.

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“Depois de 15 anos trabalhando em empresas tradicionais fui convidada a empreender. Era hora de arriscar e colocar em prática tudo que aprendi nas organizações”, diz Fernanda, que se uniu a Go4it, agência criada por Cesar Villares, executivo que era vice-presidente da área de talentos da IMX, e Mark Lemann, filho do empresário Jorge Paulo Lemann, da AB Inbev e 3G Capital.

A partir daí, Fernanda fez uma imersão no mundo dos games. “Sempre gostei do setor e quis entender a fundo que indústria é essa que atrai 84 milhões de brasileiros”, conta Fernanda.

Rodeada por executivos homens, ela conta que precisou provar que sabia do que estava falando. “Foi uma escolha difícil. Sou mãe, sou casada, comecei um mundo completamente novo e tive que me reinventar”, diz. E deu certo. Hoje, a Final Level é a maior plataforma de entretenimento gamer do Brasil com mais de 10 milhões de seguidores nas redes sociais.

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“A Final Level nasceu em 2018 para desenvolver uma cultura gamer. Assim como existe uma cultura geek, do surf, queremos criar um estilo de vida para quem joga”, diz Fernanda. “Estamos falando de um mercado que é um fenômeno, que globalmente movimentou US$ 170 bilhões em 2020 e vai chegar a US$ 200 bilhões em 2023, de acordo com a consultoria Newzoo”.

A empresa foi responsável por criar a Gameland, primeira content house gamer do Brasil, no Rio de Janeiro, com jogadores morando no local e transmitindo conteúdo 24 horas por dia. A pandemia atrapalhou um pouco os planos, mas uma nova casa já está sendo buscada, dessa vez em São Paulo.

Em fevereiro, a companhia recebeu aporte de R$ 8.5 milhões para reforçar a estratégia de ser ponto de encontro de todas as comunidades gamers e principal parceiro de negócios do mercado para criadores de conteúdo nos segmentos de games e eSports.

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“No ambiente de negócios há predominância masculina, todos os meus sócios são homens. Mas faço questão de incluir as mulheres nos games. Minha audiência é 55% feminina e nossa narrativa é de diversidade. Tem espaço para todos aqui”, afirma.

Bruna Soares, diretora da Ubisoft

Bruna Soares, diretora da Ubisoft (Divulgação)

Filha mais velha, Bruna Soares, 33 anos, sempre foi a dona do vídeo game. Quando criança, era ela quem mandava no Master System de casa e a paixão por games a acompanhou pela vida. “Nunca imaginei que isso pudesse se tornar uma profissão”, diz a executiva, que hoje é diretora da Ubisoft — uma das empresas mais importantes do setor de games.

A história de Bruna na indústria dos games começou por um acaso. Formada em relações públicas, ela trabalhava em uma agência de comunicação e foi cobrir férias de uma colega cuidando da conta de Playstation. E aí não quis mais sair da área. Foi trabalhar na parte de distribuição de mercado de games e há oito anos está na Ubisoft.

Bruna conta que muitas vezes foi a única mulher nas reuniões e eventos que participou. “Especialmente no começo da minha carreira muitas vezes me perguntavam qual o último jogo eu havia jogado e me questionavam sobre o mercado de games. Coisas que não faziam com os homens. Entendi o desafio e assumi uma postura mais firme”, conta.

O trabalho da executiva consiste em gerar mais lucro para a empresa além da venda dos jogos. Ela atua em frentes como licenciamento, projetos especiais e conecta jogos a anunciantes e parceiros.

“Quando cheguei na empresa eram apenas seis funcionários. Eu era analista de marketing e ajudava a montar estratégia de venda em loja física, que representava 80% do nosso faturamento. Hoje sou diretora de Business Diversification, nossas vendas são 80% digitais. Comando uma equipe de seis pessoas e somos em 50 colaboradores no Brasil. Cresci com a empresa”, afirma.

A Ubisoft é uma empresa de criação, publicação e distribuição de entretenimento e tem jogos famosos no portfólio, como Assassin’s Creed, Far Cry, For Honor, Just Dance, Watch Dogs e a série de jogos Tom Clancy incluindo Ghost Recon, Rainbow Six e The Division. No último ano fiscal, a companhia faturou € 1,5 bilhão.

A receita deve crescer ainda mais, já que a venda de jogos aumentou de forma significativa durante a pandemia. Segundo Bruna, o jogo Just Dance, que incentiva movimentos de dança, teve alta de 600% na comercialização em 2020. “Com mais tempo em casa, as pessoas jogam mais”, diz. A mesma lógica vale para a executiva, que assume passar boas horas traçando estratégias no Assassin’s Creed.

Érika Caramello, CEO da Dyxel Game Publisher

Érika Caramello, CEO da Dyxel Game Publisher (Divulgação)

Érika Caramello fundou um dos primeiros estúdios de jogos do país, o 8D Games, e é doutora em games. A executiva tem duas décadas de experiência e é um dos nomes mais conhecidos do setor por conseguir unir o mundo acadêmico ao universo prático dos jogadores.

Depois de fazer seu doutorado sobre o mercado independente de empresas de jogos e estudar sobre como a indústria brasileira poderia contribuir dentro do cenário mundial, Érika decidiu usar os resultados da pesquisa para se aventurar no empreendedorismo. “Eu não tinha mais fôlego para apostar em um estúdio como fiz há 15 anos, mas acredito que essa indústria tem muito potencial em várias áreas”, diz.

Em 2020, no início da pandemia, a professora da FATEC (Faculdades de Tecnologia do Estado de São Paulo) se transformou em CEO da Dyxel Game Publisher. A empresa nasce de uma causa: elevar o poder dos jogos e usá-los para conscientizar sobre causas importantes.

“Nosso foco é em mercado que aposta em causas como diversidade, gênero, raça, temáticas culturais. A ideia é usar os games para conscientizar. Recebemos os jogos dos desenvolvedores, fazemos uma mentoria e uma ponte com empresas interessadas em promover essas causas, por exemplo”, explica.

A executiva destaca que uma publicadora de games funciona como se fosse uma editora de livros. “Revisa, diagrama, coloca para vender, faz a parte de divulgação. Nós tornamos os jogos comerciais e mostramos para o mercado”, diz.

Sobre a presença feminina no mercado de games, Érika assume que ainda há muitos desafios. “Já assisti homens se apropriando das minhas ideias de games. Por mais que eu tenha uma formação acima da média de outros pares homens, existem situações em que o fato de eu ser mulher dificulta as negociações. A conversa ainda flui melhor entre os homens e isso precisa mudar”, relata.

Roberta Coelho, CEO da Game XP

Roberta Coelho, CEO da Game XP (Divulgação)

Ligada nos 220v. É assim que Roberta Coelho, 43 anos, se define. A carioca, economista por formação, trabalhou por anos dedicada a cuidar de áreas financeiras de empresas importantes. “Por muitos anos éramos eu, as planilhas e um pouco de rock”, brinca a executiva, que ocupou o cargo de CFO do festival Rock In Rio por quatro anos.

Perto de fazer 40 anos, Roberta começou a questionar a carreira quando recebeu a proposta para trabalhar em uma startup familiar que estava passando por um momento de profissionalização. Foram três meses para decidir se aceitava ir e quatro meses para se arrepender, segundo ela.

“Ainda não era o que eu queria fazer. Sabe aquela vontade de mudar o mundo?”, lembra. Na época, a equipe do Rock In Rio a chamou de volta para comandar a área de novos negócios, desafio aceito com entusiasmo mesmo sem saber ao certo o que a esperava.

Em 2017, o Rock In Rio passaria a ser na Arena Olímpica e haveria mais espaço disponível. A missão da executiva era, basicamente, preencher o espaço com atividades além de música que atraíssem o público. “Fiz uma parceria com o Omelete e reviramos a indústria da cultura pop. Percebemos que a escolha certa era uma só: games. Assim, criamos um bairro de games, que ocupava duas arenas olímpicas”, lembra Roberta.

Considerada noob pelo filho, uma gíria para jogadores inexperientes, Roberta precisou provar que entendia de mercado de games. Mais da metade do público do Rock In Rio visitou o bairro para os jogadores naquele ano.

Em 2018, depois do sucesso, foi fundada a Game XP, uma empresa independente voltada especialmente para o público. “Aquela menina que jogava Atari com os pais e assistia os filhos adolescentes em casa agora precisava entender o mercado. Finalmente encontrei o que eu queria para mim”, conta.

E a guinada na carreira veio acompanhada por uma motivação extra: aumentar o número de mulheres no ambiente de games. Para se ter uma ideia, 22% do público da primeira edição da Game XP eram mulheres. Na segunda, o índice saltou para 38%.

Por conta da pandemia, o evento não aconteceu em 2020 e a empresa teve de se reinventar. A empresa decidiu investir na profissionalização de jogadores, homens e mulheres. O novo formato passou a contar com a primeira liga feminina de videogame competitivo no Brasil.

Para a executiva, além de ser um mercado altamente atrativo, os games também são uma oportunidade de inclusão. “Nos games todo mundo pode ser igual. Não importa gênero, cor, sexualidade. É só jogar. É para ser um espaço seguro e estamos lutando por isso”, diz.

Para mais conteúdo sobre negócios e empreendedorismo, acompanhe o podcast Do Zero ao Topo

Michele Loureiro

Jornalista colaboradora do InfoMoney