Pelo de rato no ketchup e besouro no café: o que a lei aceita no seu prato

A Anvisa autoriza a presença de matérias estranhas em alimentos industrializados, desde que em quantidades mínimas e seguras

Lucas Gabriel Marins

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Pelo de rato no ketchup e no achocolatado, besouro triturado no café e insetos no chá de camomila. Pode parecer absurdo e nojento – e de fato é -, mas está dentro dos padrões permitidos pela legislação brasileira. A Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) autoriza a presença de matérias estranhas em alimentos industrializados, desde que em quantidades mínimas e seguras. Isso porque, mesmo com rigor nas boas práticas de fabricação, a remoção total desses resíduos é tecnicamente inviável.

No caso do ketchup e do achocolatado, por exemplo, a Resolução RDC nº 623 da Anvisa permite até um fragmento de pelo de roedor a cada 100 gramas do produto (para o molho) e 1 em 50g (para o cacau em pó). Essa quantidade varia entre os tipos de alimentos porque a possibilidade de contaminação e a dificuldade de evitá-la são diferentes em cada processo de produção.

O pelo é dividido em três partes: bulbo (que fica na raiz), haste (corpo) e a ponta. Um fragmento, na prática, é formado por até duas dessas três apenas. “Quando olhamos no microscópio, conseguimos identificar se está inteiro ou em partes. Se vemos só a haste e a ponta, é fragmento. Mas se o pelo estiver completo – com bulbo, corpo e ponta -, é considerado um pelo inteiro. Nesse caso, o produto é insatisfatório e precisa ser recolhido do mercado”, explica Marina Silva Teixeira, engenheira de alimentos no Laboratório de Microscopia do Labcal, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

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Por que isso é permitido?

Segundo a Anvisa, a eventual presença de pelos, insetos e outros elementos está condicionada à natureza do alimento e às limitações tecnológicas do processo produtivo. “É aceito apenas quando não há viabilidade técnica de remoção completa e quando o processamento térmico ou outro tratamento assegura a destruição de microrganismos patogênicos eventualmente presentes”, afirmou a agência em nota.

Pegue o tomate, usado no catchup. Eles são colhidos em ambientes abertos, onde há contato inevitável com o solo e animais, como ratos, e resíduos microscópicos podem escapar à limpeza industrial.

No caso café, a lei permite até 60 fragmentos de insetos por 25 gramas, mas esses fragmentos devem ser de insetos próprios da cultura cafeeira, como a broca-do-café.

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Esse besouro minúsculo – que mede cerca de 1,18 mm (machos) e 1,65 mm (fêmeas) – é uma das principais pragas da cafeicultura brasileira. Ataca os frutos para se alimentar e se reproduzir e está presente em praticamente todas as regiões produtoras. Os cafeicultores usam técnicas como controle biológico, manejo integrado e destruição de frutos contaminados, mas a erradicação completa da praga nem sempre é possível. “É igual ao bicho da goiaba”, compara Aline Marotti, coordenadora de Certificações e Qualidade da Associação Brasileira da Indústria do Café (ABIC).

Materiais provenientes de vetores reconhecidamente contaminantes, como baratas, são proibidos, segundo a Anvisa, pois esses ”insetos transitam em ambientes com alta carga microbiológica e representam risco sanitário direto a legislação”.

Faz mal à saúde?

Dentro dos limites legais, não. De acordo com a Anvisa, não há risco à saúde humana se os alimentos forem processados corretamente e as quantidades respeitarem os padrões. A professora Deise Baggio Ribeiro, do Departamento de Ciência e Tecnologia de Alimentos da UFSC, explica que os valores foram definidos com base em quatro critérios.


A definição dos valores foi determinada com base nos seguintes critérios: a) risco à saúde, considerando a população exposta, o processamento, as condições de preparo e forma de consumo do produto; b) dados nacionais disponíveis; c) ocorrência de matérias estranhas mesmo com a adoção das melhores práticas disponíveis; e d) existência de referência internacional’’, listou. 

Veja abaixo alguns alimentos e algumas da matérias estranhas permitidas no Brasil:

AlimentoMatérias estranhas permitidasLimites de tolerância
Produtos de tomate (molhos, purê, polpa, extrato, tomate seco, tomate inteiro enlatado, catchup e outros derivados)Fragmentos de insetos* e fragmentos de pelos de roedor 10 em 100g (fragmentos de insetos) e 1 fragmento de pelo de roedor em 100g
Uva passaFragmentos de insetos* e fragmentos de pelos de roedor 25 em 225g (fragmentos de insetos) e 1 fragmento de pelo de roedor em 225g
PápricaFragmentos de insetos* e fragmentos de pelos de roedor 80 em 25g (fragmentos de insetos) e 11 fragmentos de pelo de roedor em 25g
Canela em póFragmentos de insetos* e fragmentos de pelos de roedor 100 em 50g (fragmentos de insetos) e 1 fragmentos de pelo de roedor em 50g
Cacau em pó ou massaFragmentos de insetos* e fragmentos de pelos de roedor 25 em 50g (fragmentos de insetos) e 1 fragmentos de pelo de roedor em 50g
Café torrado e moídoFragmentos de insetos* 60 em 25g
Fonte: Anvisa
*Fragmentos de insetos indicativos de falhas das boas práticas

E lá fora, como funciona?

Os padrões brasileiros são semelhantes aos dos Estados Unidos e, em alguns casos, mais rigorosos do que os adotados na Europa. O Food Defect Levels Handbook, manual da FDA (agência reguladora americana), permite os mesmos 60 fragmentos de insetos por 100 g de café torrado ou moído (igual por aqui). Também autoriza que até 10% dos grãos estejam infestados ou danificados por insetos. Quanto aos pelos de roedor, a FDA permite até um pelo inteiro em 100 g de chocolate (mais do que no Brasil), por exemplo. Para catchup, não há um limite específico.

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Na Europa, a abordagem é diferente. Em vez de limites numéricos, aplica-se o princípio ALARA (As Low As Reasonably Achievable, ou “Tão baixo quanto razoavelmente possível”) para contaminações por insetos. Já no caso de pelos de roedor, a tolerância é zero – qualquer presença é considerada inaceitável.

E se o limite for ultrapassado?

Quando a quantidade de matéria estranha passa do permitido, é sinal de falha no controle de qualidade. “Se o resultado for insatisfatório, o produto passa por recall”, disse Marina, do Labcal. A Anvisa pode determinar a suspensão da fabricação, o cancelamento do registro ou outras medidas, dependendo da gravidade do caso.

O que o consumidor pode fazer?

Se encontrar um corpo estranho em um alimento (fora dos limites permitidos por lei), o consumidor deve parar de consumir imediatamente e, se possível, guardar o produto e o material suspeito. Quando isso não for viável – como no caso de larvas ou insetos em estado de decomposição -, o ideal é registrar fotos e vídeos que comprovem a presença da contaminação.

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Depois disso, deve-se acionar o Serviço de Atendimento ao Consumidor (SAC) da empresa e formalizar uma reclamação. Se não houver solução, o consumidor pode procurar o Procon e, se necessário, entrar com uma ação judicial.

Segundo a advogada Isabelle Ribeiro, da TNP Advogados, é possível obter indenização mesmo sem ter ingerido o produto. “O simples fato de encontrar algo impróprio já pode caracterizar dano moral. As indenizações costumam variar entre R$ 2 mil e R$ 10 mil, podendo chegar a R$ 15 mil em casos mais graves, especialmente quando há consumo do alimento contaminado”, afirmou.