Joias de Michelle Bolsonaro: como declarar bens trazidos do exterior e não burlar o Fisco?

Estadão revelou que governo Bolsonaro tentou entrar ilegalmente no Brasil com conjunto de joias com diamantes e relógio avaliado em € 3 milhões (R$ 16,5 mi)

Lucas Sampaio

O presidente Jair Bolsonaro e a primeira-dama, Michelle Bolsonaro, durante desfile cívico-militar do 7 de Setembro (Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)

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Após a revelação do jornal O Estado de S. Paulo, de que o governo de Jair Bolsonaro (PL) tentou entrar ilegalmente no Brasil com joias com diamantes e relógio avaliados em € 3 milhões (cerca de R$ 16,5 milhões), a Receita Federal divulgou nota em que informa qual é o procedimento correto para a entrada de bens no país, trazidos do exterior.

Segundo o Estadão, as joias eram um presente do governo da Arábia Saudita para o então presidente e a primeira-dama, Michelle Bolsonaro, e foram apreendidas no aeroporto internacional de Guarulhos (Grande SP). Elas estavam na mochila do militar Marcos André dos Santos Soeiro, assessor do então ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque (ambos viajaram ao Oriente Médio em missão oficial).

Na ocasião, o jornal diz que o ministro tentou usar o cargo para pedir a liberação das joias, alegando serem presentes do governo saudita para Michelle, mas os servidores da Receita disseram que o procedimento para a entrada dos bens como presentes oficiais, de um governo estrangeiro para o governo brasileiro, teriam que obedecer a outro trâmite legal. Por isso, retiveram os bens.

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A Receita diz que “todo cidadão brasileiro sujeita-se às mesmas leis e normas aduaneiras, independentemente de ocupar cargo ou função pública”, e que as joias não foram devidamente declaradas na chegada de Soeiro e Albuquerque ao Brasil. Procurado pelo jornal, o ex-ministro admitiu ter trazido os presentes para Michelle, mas depois mudou de versão.

No domingo (5), o jornal Folha de S.Paulo revelou que um segundo pacote, que inclui caneta, abotoaduras, anel e um tipo de rosário (todos da marca suíça de diamantes Chopard), que estava na bagagem de um dos integrantes da comitiva brasileira, não foi interceptado pela Receita.

Veja abaixo um resumo de como declarar bens trazidos do exterior:

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1. O que precisa ser declarado à Receita, na chegada ao Brasil?

A Receita diz que todo viajante deve declarar todos os bens com valores acima de US$ 1 mil (cerca de R$ 5,2 mil). Caso a pessoa esteja trazendo um bem de terceiros (como foi o caso do militar Marcos André dos Santos Soeiro, que estava com joias da primeira-dama), o Fisco diz que todos os bens devem ser declarados na chegada, independentemente de valor.

2. O que acontece se eu não declarar um bem na chegada ao país?

Se o bem não for declarado (e o viajante for pego), a Receita exige 50% do valor do bem a título de tributo, acrescido de multa de 50% (o que totaliza 100%, ou o valor total do bem). No caso das joias, o assessor do ministro de Minas e Energia deveria pagar R$ 16,5 milhões para liberá-las.

A Receita diz que a multa de 50% pode ser reduzida pela metade (25%), caso o viajante pague o valor em 30 dias (assim, o custo para regularizar o bem cai de 100% para 75% do seu valor).

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3. É possível reaver um bem que não foi declarado? Como?

Sim, pagando o valor cobrado pela Receita (tributo e multa).

Joias avaliadas em R$ 16,5 milhões que seriam para Michelle Bolsonaro (Foto: Reprodução/Twitter)

4. No caso das joias, qual era o procedimento correto?

O governo brasileiro poderia ter recebido as joias do governo saudita e entrado com elas no Brasil legalmente, se o bem tivesse sido embarcado como um presente oficial. Neste caso, no entanto, o conjunto de joias com diamantes e relógio, avaliado em R$ 16,5 milhões, ficaria para o Estado brasileiro, não para Bolsonaro e Michelle.

A Receita afirma que não foram seguidos os protocolos adequados para incorporação das joias ao patrimônio da União. Caso o procedimento correto fosse seguido, os presentes iriam para o acervo da Presidência da República, não para a então primeira-dama.

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“A incorporação ao patrimônio da União exige pedido de autoridade competente, com justificativa da necessidade e adequação da medida, como por exemplo a destinação de joias de valor cultural e histórico relevante a ser destinadas a museu. Isso não aconteceu neste caso”, afirmou a Receita em comunicado.

5. O que o governo deveria ter feito após a apreensão?

A Receita diz que era possível “a regularização da situação, mediante comprovação da propriedade pública”, assim como a regularização da situação aduaneira do bem, “na hipótese de agente público que deixe de declarar o bem como pertencente ao Estado Brasileiro” (que foi o que ocorreu).

Mas o governo Bolsonaro não tentou a regularização das joias da forma correta, segundo o Fisco, “mesmo após orientações e esclarecimentos prestados pela Receita Federal a órgãos do governo”.

6. O que acontece com os bens apreendidos?

Se o tributo e a multa não forem pagos (como foi o caso das joias da Michelle), a Receita aplica a pena de “perdimento”. Ou seja: a pessoa perde o bem apreendido.

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O bem, então, pode ser leiloado. Caso isso ocorra, 60% do valor arrecadado vai para o Tesouro Nacional e 40%, à seguridade social (INSS). “É possível, também, em tese, a doação, incorporação ao patrimônio público ou destruição [do bem]”, afirma a Receita.

“A incorporação ao patrimônio da União exige pedido de autoridade competente, com justificativa da necessidade e adequação da medida”, diz o Fisco. “Isso não aconteceu neste caso [das joias]. Não cabe incorporação de bem por interesse pessoal de quem quer que seja, apenas em caso de efetivo interesse público“.

Como não houve a regularização das joias, a Receita disse que elas passaram a ser tratadas como “pertencente ao portador” (foram consideradas do assessor do ministro que as transportavam). Diz também que foi aplicada “a pena de perdimento”, porque o tributo e a multa não foram pagos, e que o prazo para recorrer das decisões “encerrou-se em julho de 2022” (a apreensão foi em outubro de 2021).

7. O que acontece agora? Haverá investigação

A Receita diz que “os fatos foram informados ao Ministério Público Federal” e que se colocou “à disposição para prosseguir nas investigações, sem prejuízo da colaboração com a Polícia Federal”.

A PF é citada pelo Fisco porque o Ministro da Justiça, Flávio Dino, enviou na segunda-feira (6) um ofício ao diretor-geral da corporação, Andrei Passos, para investigar os fatos divulgados pelas reportagens.

8. O que dizem Bolsonaro e Michelle?

O ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), que está nos Estados Unidos desde dezembro, quando viajou ao país na véspera do fim seu mandato, negou qualquer ilegalidade. “Eu agora estou sendo crucificado por um presente que eu não recebi”, afirmou o ex-presidente no fim de semana.

“Eu não fiquei sabendo. Dois, três dias depois, a Presidência notificou a alfândega que era para ir para o acervo. Até aí tudo bem, nada demais. Poderia, no meu entender, a alfândega ter entregue. Iria para o acervo, e seria entregue à primeira-dama. O que diz a legislação? Ela poderia usar, não poderia desfazer”, disse Bolsonaro ao falar com a imprensa em Washington.

À CNN, o ex-presidente afirmou que as joias iriam para acervo da Presidência da República. “Estou sendo acusado de um presente que eu não pedi, nem recebi. Vocês vão longe mesmo, hein?! Estou rindo da falta de cabimento dessa imprensa vexatória. Não existe qualquer ilegalidade da minha parte. Nunca pratiquei ilegalidade”.

“Veja o meu cartão corporativo pessoal. Nunca saquei, nem paguei nenhum centavo nesse cartão”, afirmou Bolsonaro. Apesar da declaração, o ex-presidente gastou, em quatro anos de mandato, R$ 27,6 milhões no cartão corporativo. O Tribunal de Contas da União (TCU) está investigando esses valores.

Em uma rede social, Michelle negou ser dona das joias e ironizou: “Quer dizer que ‘eu tenho tudo isso’ e não estava sabendo? Meu Deus! Vocês vão longe mesmo hein?! Estou rindo da falta de cabimento dessa impressa [sic] vexatória”.

Lucas Sampaio

Jornalista com 12 anos de experiência nos principais grupos de comunicação do Brasil (TV Globo, Folha, Estadão e Grupo Abril), em diversas funções (editor, repórter, produtor e redator) e editorias (economia, internacional, tecnologia, política e cidades). Graduado pela UFSC com intercâmbio na Universidade Nova de Lisboa.