Crise no setor automotivo: espera por carros 0 km pode chegar a 6 meses

Alguns consumidores esperam, outros desistem: falta de semicondutores está afetando todas as empresas e retomada está longe

Giovanna Sutto

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SÃO PAULO — Hoje, comprar um carro zero-quilômetro exige dinheiro no bolso e paciência. Os carros considerados “de entrada” (populares), já passam dos R$ 50 mil e a espera por um modelo novo pode durar meses.

Vinicius Fonseca, coordenador de middle office em um banco internacional, não se importou em esperar quase três meses para ter seu novo veículo em mãos. Comprou um Jeep Compass em agosto e recebeu o automóvel na última sexta-feira (5).

“Eu acompanho o mercado e sabia que o setor vinha passando por uma escassez global de peças, mas optei por esperar porque a concessionária ofereceu um valor muito próximo da tabela Fipe no meu carro usado e isso me evitou dores de cabeça na venda para terceiros. Além disso, eu queria um SUV com um bom aparato tecnológico, e essa versão que eu comprei me atendeu muito bem”, explica Fonseca, que mora em São Paulo.

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Geovanna Meneses, analista de risco que mora no Ceará, também optou por esperar até cinco meses, mas devido a outros motivos. A família dela tinha três carros, mas, com a irmã indo morar sozinha e a pandemia, não havia mais necessidade de três veículos. Somado a isso, há cerca de dois meses, ela se envolveu em um acidente e o carro que tinha deu perda total.

“Como a batida foi feia, não recuperei o carro e estávamos apenas com dois veículos. Com o valor que recebi do seguro, mais a venda de um dos carros que tínhamos eu resolvi comprar um carro novo. Eu fiz bastante pesquisa, mas entendi que os carros seminovos não estão valendo a pena. Estão muito caros. E como eu queria um carro mais novo, optei por um zero-quilômetro”, explica.

O modelo escolhido foi o Fiat Pulse, novo SUV da Fiat, que custa cerca de R$ 70 mil, e o prazo máximo de espera foi de cinco meses.

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Vale lembrar que os preços dos seminovos já subiram 20% em um ano — o InfoMoney já explicou a dinâmica entre novos e usados em uma reportagem.

Mas a espera não se aplica para consumidores que têm urgência em adquirir um novo carro. Pierre Alcântara, por exemplo, mora em Brasília e desistiu de comprar o Volkswagen Nivus pelos sucessivos adiamentos no prazo de entrega.

“Em março deste ano comprei o Nivus. No momento da compra o prazo era de 60 dias e aceitei esperar. Porém, antes mesmo de completar esse prazo foi estendido para 90 dias e depois 150 dias. Eu teria que esperar cinco meses para receber o carro. Foi neste terceiro adiamento que desisti. Teve a paralização das fábricas, depois alegaram falta de peças. Uma vez que já tinha pago 60% do valor do carro voltei atrás e não comprei”, explica.

No caso de Alcântara, a desistência foi da compra do carro e não do modelo em si. Hoje ele segue sem carro. “Me adaptei a usar aplicativos de carona e com a gasolina em valores tão altos, no fim das contas, achei que fiz um bom negócio”, afirma.

Apesar das diferentes decisões dos consumidores, por que as fabricantes estão pedindo prazos tão longos para entregar os carros novos?

Crise global

O setor automotivo vem enfrentando grandes problemas especialmente desde o início deste ano devido à falta de peças, mais especificamente semicondutores, como chips, microprocessadores, nano circuitos, LEDs, entre outros produtos devido à uma demanda muito forte.

Esses componentes são usados em diversos segmentos, mas em carros são responsáveis por integrar sistemas, estão presentes em placas de vídeo etc. Ou seja, o funcionamento tecnológico do veículo — a tela touch presente em vários carros usa semicondutores, por exemplo.

Uma reportagem feita pelo InfoMoney explica a dinâmica que levou à escassez de peças para o setor automotivo.

Mas basicamente diante da pandemia e redução da produção de carros ano passado, as fabricantes globais de semicondutores redirecionaram suas ofertas para diversas indústrias como de eletroeletrônicos, videogames, entre outros, e com a retomada na produção das fabricantes de automóveis esses fornecedores não conseguem dar conta de tamanha demanda global.

Os efeitos desse movimento são globais no setor automotivo. Várias empresas fecharam as fábricas no início deste ano no Brasil e no mundo. As companhias que fornecem esses tipos de peças precisam de muito investimento e conhecimento técnico: ou seja, não há muitas empresas no mundo que têm a expertise e fornecem os componentes.

Diante desse contexto, as linhas de produção estão completamente impactadas, o que gera atrasos na finalização dos modelos. Por isso, companhias estão demorando um prazo muito maior que o normal para entregar um carro novo: é preciso vender já contando com a chegada das peças, e torcendo para não ter nenhum imprevisto extra.

Cada empresa está enfrentando essa situação de uma maneira. “São vários cenários. A fabricante se planejou, mas os componentes eletrônicos realmente não chegaram e não teve o que fazer. Outras fabricantes também se planejaram, produziram o veículo, mas o modelo foi vendido muito rapidamente devido á forte demanda e a empresa ficou sem estoque. Em outros casos, fabricantes enfrentaram queda forte nas vendas ano passado e conseguem comercializar porque ainda possuem carros em estoque”, exemplifica Milad Kalume Neto, diretor da consultoria automotiva Jato Dynamics.

Segundo ele, é por isso que alguns consumidores podem encontrar carros à pronta entrega ou com prazos bem mais curtos em algumas concessionárias. “Mas a questão é mais conseguir produzir para disponibilizar ao cliente do que formar estoque. A capacidade de produção está super afetada, o que implica no atraso para o consumidor final”, diz.

O que as montadoras afirmam?

O InfoMoney entrou em contato com as dez montadoras com maior participação de mercado em outubro no Brasil, segundo a Fenabrave, para entender qual o prazo médio de espera do cliente final e como elas estão trabalhando para melhorar a situação. Apenas a Hyundai e a Caoa Chery não responderam às solicitações feitas.

A Renault, que possui 5% de participação no mercado, foi a única fabricante que garantiu que possui todos os carros a pronta entrega, mas ponderou que a depender da cor e versão desejada pelo cliente o prazo pode ser estendido — sem afirmar quanto. Através do site “Loja Renault” os clientes podem ter acesso à rede de concessionárias, portfólio e disponibilidade.

O grupo Stellantis, dono da Fiat e Jeep, que somadas possuem quase 25% de participação, afirmou que os prazos para entrega variam por modelo e versão de acabamento na Jeep e na Fiat, mas que na média está entre 15 e 90 dias.

No caso de Geovanna o prazo foi ainda mais longo e o InfoMoney questionou a empresa, que explicou que há casos excepcionais que podem ultrapassar este prazo médio, como o Fiat Pulse.

“Este modelo foi recém-lançado com grande sucesso de demanda e sua curva de produção ainda está em aceleração, como ocorre com o início de produção dos novos modelos. Estamos trabalhando para acelerar as entregas”, disse a empresa em nota.

“O mercado global opera com disponibilidade reduzida de componentes, sobretudo os eletrônicos, e projeta-se que essa escassez perdure por mais alguns meses, até que o mercado mundial se reorganize. A Stellantis mobilizou equipes de logística e de compras para realizar um trabalho intenso e direto junto aos fornecedores, de modo a mitigar os problemas de volumes e regularidade de entregas”, acrescentou a Stellantis.

A Volkswagen, que possui cerca de 20% do mercado, não compartilhou seu prazo de entrega. A companhia afirmou que tem feito “todo o esforço possível para produzir e entregar os carros diante da dificuldade de fornecimento de peças, especialmente semicondutores”.

Além disso, a companhia informou que está em contato constante com a rede de concessionárias, e que mantém o seu cliente o mais atualizado possível.

“Uma melhoria na situação da entrega de veículos depende em grande parte da indústria de semicondutores. Atualmente, esperamos que o fornecimento de chips permaneça muito instável até o fim deste ano. Continuamos trabalhando continuamente para minimizar o impacto da escassez deste componente. O objetivo é atingir os níveis de suprimento mais altos possíveis sob essas circunstâncias, a fim de reduzir ao mínimo o impacto na produção dos veículos”, disse a fabricante.

A Chevrolet, que tem 12,8% de participação de mercado, não se posicionou sobre o prazo de entrega e apenas afirmou que todos os modelos do portfólio da companhia estão disponíveis para pedidos dos concessionários. Além disso, mencionou que “os modelos Chevrolet a pronta entrega variam conforme a concessionária, que faz a gestão independente do seu estoque”.

A Toyota por sua vez explicou que devido a falta de insumos que afeta a cadeia de suprimentos global, atrelado à alta demanda, no momento o tempo de espera para entrega de veículos na rede de concessionárias pode variar entre 30 a 180 dias a depender do modelo e versão. A participação de mercado da companhia foi de 7,4% em outubro.

A empresa acrescentou que vem fazendo uma gestão de suprimento de peças para manutenção de suas operações, incluindo planejamento de longo prazo, diálogo constante e aberto com os fornecedores e a utilização do TPS — Toyota Production System —, que garante previsibilidade no plano de produção.

A Honda, que detém 5,5% do mercado, também não especificou o prazo de entrega do carro ao cliente e ressaltou que o mercado automotivo vive um momento de escassez de insumos, em especial de semicondutores, e um frequente atraso da cadeia logística internacional. “A Honda está empenhando todos esforços para minimizar o impacto para seus clientes e parceiros de negócios.’’

Por fim, a Nissan afirmou que tem um bom estoque e tem trabalhado para tentar manter seus estoques normais para atender à demanda. “Em alguns casos, no entanto, como cor específica ou versão, de acordo com cada concessionária, pode haver um período de espera”, disse a empresa sem detalhar o prazo também.

E a retomada? 

Raphael Galante, economista que atua no setor automotivo há 14 anos e consultor na Oikonomia, diz que as expectativas são preocupantes. Segundo ele, a situação está longe de ser resolvida.

“Tem consumidor esperando cinco ou até mais meses, e não existe previsão de melhora até meados do ano que vem. Acho que a situação segue assim por mais seis ou oito meses no melhor dos cenários – e vai até o fim de 2022 no cenário pessimista”, avalia.

Ele também espera aumentos de preços nos carros. “A demanda existe, a oferta é baixa. O movimento natural é vermos ainda mais aumentos. E se o dólar continuar subindo, a situação vai ficar ainda pior. Já que muitas das peças são dolarizadas”, diz.

“Estávamos esperando uma melhora no ritmo de produção no segundo semestre de 2022, mas já tivemos atualizações. A normalização deve acontecer somente em 2023. Ano que vem ainda será muito desafiador para o setor em relação aos semicondutores. No mundo, cerca de 5 milhões de veículos não serão produzidos devido à situação”, afirma Luiz Carlos Moraes, presidente da Anfavea.

Kalume Neto lembra que o consumidor precisa avaliar bem a compra antes de efetivá-la hoje. “Tanto o consumidor que quer trocar de carro e pode esperar, quanto o cliente que precisa do carro com urgência devem seguir a mesma orientação: procurar pelaos modelos e marcas disponíveis no mercado dentro dos prazos que atendam ou pesquisar bem os modelos seminovo para negociar”, diz.

Giovanna Sutto

Repórter de Finanças do InfoMoney. Escreve matérias finanças pessoais, meios de pagamentos, carreira e economia. Formada pela Cásper Líbero com pós-graduação pelo Ibmec.