Publicidade
No atual cenário de tensões comerciais globais, é importante separar o estilo do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, de seus objetivos estratégicos. Ainda que ele não seja reconhecido por seu tato diplomático, a pergunta central não deve ser sobre sua simpatia, mas sobre a legitimidade de suas ações. E, do ponto de vista estrutural, é difícil sustentar que ele esteja completamente errado.
Trump adotou uma postura mais agressiva para enfrentar desequilíbrios históricos da economia americana, especialmente no que diz respeito à China. A potência asiática não apenas se consolidou como o principal parceiro comercial dos EUA, como também impõe regras comerciais desiguais, que resultam em um déficit comercial bilateral superior a US$ 300 bilhões por ano — a favor da China. Paralelamente, o país asiático detém mais de US$ 760 bilhões em títulos da dívida americana, o que reforça a dependência financeira mútua, mas assimétrica.
Os Estados Unidos enfrentam uma dívida pública em expansão, estimada em US$ 35 trilhões, hoje financiada a uma taxa de cerca de 4% ao ano. Isso só é viável porque a dívida é emitida em dólares, a principal moeda de reserva global. Porém, a manutenção desse sistema exige estabilidade econômica e liderança global — ambos sob pressão.
Continua depois da publicidade
Trump rompeu com a abordagem tradicional de seus antecessores — Clinton, Bush, Obama e Biden — que tentaram negociar com a China para cessar práticas como a manipulação cambial, barreiras não tarifárias e restrições a investimentos estrangeiros. Todos fracassaram. Trump entendeu que, sem uma postura firme, não haveria avanço. E optou por impor dor agora para evitar um colapso estrutural mais adiante.
A crítica central de Trump vai além da China. Os EUA aplicam hoje tarifas médias de importação relativamente baixas — por exemplo, a tarifa média aplicada a produtos brasileiros gira em torno de 3,5%, enquanto o Brasil impõe cerca de 13,4% sobre produtos americanos, segundo dados do Banco Mundial. A discrepância não é apenas tarifária: países europeus, especialmente membros da União Europeia como a França, impõem barreiras não tarifárias complexas, subsídios agrícolas pesados e exigências regulatórias que dificultam o acesso a seus mercados.
Além disso, grande parte dos países concorrentes impõe menos rigor na aplicação de normas trabalhistas, ambientais e de segurança. A China, por exemplo, opera sob condições de trabalho muitas vezes incompatíveis com os padrões da OIT e com custos regulatórios e ambientais muito inferiores aos vigentes nos EUA. Isso gera uma concorrência desleal que desindustrializou parte significativa da economia americana nas últimas décadas.
Continua depois da publicidade
Há quem argumente que o mundo mudou, que vivemos na era dos serviços. Mas essa visão ignora a pressão futura sobre o emprego causada pela automação e pela inteligência artificial. A pandemia da covid-19 expôs de forma brutal a vulnerabilidade das cadeias produtivas globais: quando foi necessário adquirir máscaras, seringas e respiradores, a maioria dos países descobriu que dependia da China. E a China não vendia. Isso provocou uma corrida pela reindustrialização e pela diversificação de fornecedores.
Os EUA, além de enfrentarem desafios internos, carregam o peso de serem o principal sustentáculo da ordem mundial desde 1945. Foram protagonistas na criação do FMI, da ONU e da OMC, estruturando um sistema baseado em valores democráticos e de livre mercado. Trump, no entanto, vem tentando reorientar essa lógica para priorizar os interesses domésticos — uma inflexão de rumo, mas não sem lógica do ponto de vista geopolítico.
É preciso reconhecer: o movimento liderado por Trump pode gerar volatilidade, inflação e até uma crise econômica global. Mas isso pode ser o preço de uma correção de rota necessária. A economia chinesa, altamente dependente do mercado americano, também enfrenta riscos severos com esse conflito. A recente marca histórica, em que 50% das transações globais foram feitas em dólares, reforça a centralidade dos EUA no sistema global — inclusive em momentos de tensão.
Continua depois da publicidade
As tarifas de 10% anunciadas em abril sobre todos os produtos importados são apenas um sinal de que os EUA estão dispostos a romper com o modelo atual. Trump busca renegociar posições estratégicas com países como Índia, Taiwan e Japão, ao mesmo tempo em que sinaliza abertura para acordos bilaterais com nações que não retaliem — como o Brasil. Com a exclusão da China de partes estratégicas da cadeia de suprimentos, países alternativos ganham competitividade relativa.
No fundo, o que está em jogo é mais do que economia: é geopolítica. Os EUA decidiram, como fizeram em 1971 com o fim do padrão-ouro, que é hora de quebrar o sistema e reequilibrar o tabuleiro. E querem fazer isso enquanto ainda têm superioridade militar, financeira e tecnológica. Talvez daqui a 20 anos isso já não seja mais possível.
A jogada é de altíssimo risco, mas a alternativa — continuar acumulando déficits bilionários, financiados por adversários estratégicos, sob regras desiguais — pode ser ainda mais perigosa. Trump, ao menos, teve a coragem de puxar o freio de emergência.

