Eu tenho o mesmo sonho de Martin Luther King…

"Martin Luther King tinha o sonho de que seus filhos fossem julgados por sua personalidade, não pela cor de sua pele. Foi por esse sonho que os movimentos negros lutaram nas últimas décadas. Nós também temos esse sonho. Infelizmente separar a população por um critério de cor – como faz as cotas raciais – vai contra o sonho de Luther King". Após o feriado da Consciência Negra, o Terraço Econômico apresenta um artigo provocador...
Por  Terraço Econômico
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Um João no Brasil…

João e Gabriel são irmãos gêmeos, nasceram em 1964 e hoje estão com 50 anos. Mas, embora fossem irmãos, eles nunca souberam disso, pois foram separados ainda na maternidade.

Gabriel foi adotado por uma família da classe média alta do Rio de Janeiro no Leblon. João permaneceu com a mãe, numa favela não muito longe dali. Gabriel estudou no Santo Inácio uma das melhores escolas do Rio, frequentou os melhores cursos pré-vestibulares e finalmente atingiu o seu sonho de entrar na faculdade de medicina da UFRJ. João, que na sua infância pobre brincava nas ruas todos os dias, terminou o ensino médio em uma escola pública na Rocinha. Após algum tempo, depois de muito esforço, João estava na mesma faculdade do irmão!

Mas não como aluno de medicina, João havia conseguido um emprego na lanchonete…

João era muito esforçado, os seus colegas de trabalho sempre diziam isso. Estudava depois do trabalho a partir das onze da noite, já cansado e com um sonho de um dia também ser médico. Embora fosse esforçado, João nunca conseguiu realizar seu sonho de se tornar médico. De lanchonete em lanchonete João se aposentou sem nunca ter conseguido ir à faculdade como aluno…


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Felizmente, essa história é apenas uma ficção, mas poderia não ser com tantos Joões espalhados pelo Brasil. A verdade é que, por mais esforçado que esse João fosse, a meritocracia não resolveria sozinha o seu caso. Simplesmente porque não há meritocracia baseada em esforço ou talento quando a pessoa ao seu lado está competindo com uma Ferrari e você em um Fusca de 1968.

Apesar disso, temos a esperança – e certeza – de que o Brasil ainda será um país em que não importa qual seja a sua origem ou a sua condição financeira, você terá oportunidades. Enquanto esse momento ainda não chega, não há quem não se comova com esse tipo de história e não há quem não seja a favor de medidas que busquem amparar os vários Joões que existem no país. E quem sabe assim não tenhamos cada vez mais Joões, como aquele dos Estados Unidos – John Kennedy – que certa vez disse “Se uma sociedade livre não pode ajudar a seus muitos pobres, também não poderá salvar a seus poucos ricos”.

Mas e a cor?
João poderia ser negro, índio, pardo ou até mesmo branco (como ele é na nossa história). A verdade é que não importa a cor de João, desde que seja dada a ele a oportunidade de se preparar para uma vaga em medicina, como foi dada ao seu irmão Gabriel. Através dessa pequena analogia dizemos ser a favor das cotas sociais como método de redução de desigualdade social, porém não acreditamos nas cotas raciais como uma ação afirmativa eficaz para se atingir este objetivo.

Dessa forma, destacamos que não estamos debatendo “onde queremos chegar” mas discutindo “como vamos chegar”. Em outras palavras, não estamos questionando se a redução da desigualdade é necessária através dessas ações mas em qual política acreditamos ser mais eficaz e justa para se atingir esse objetivo. Sendo assim, vamos a alguns motivos:

Nós não somos os Estados Unidos…
É sabido que nos Estados Unidos há grande número de cotas que incentivam a entrada de negros nas universidades. Isto pode ser visto como um exemplo de ação afirmativa a ser seguido aqui no Brasil. A grande diferença é que lá houve explicitamente leis que proibiam negros de acessarem a universidade, fato que jamais foi visto no Brasil.

Conhecida como “Leis Jim Crow” estas leis de segregação racial exigiam que as escolas públicas do Sul e a maioria dos locais e transportes públicos tivessem instalações separadas para brancos e negros. Diferentemente do Brasil, nunca houve nenhuma lei explícita que proibisse negros de entrarem em escolas públicas. Portanto cotas raciais possuem maior fundamento nos Estados Unidos, pois, por grande parte do tempo, foram a causa de negros não entrarem nas Universidades…

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Em 1957, estudantes negros foram proibidos de entrar na Central School exclusiva para brancos. Tropas federais foram mandadas para garantir a segurança dos negros

A dívida histórica…
Utiliza-se o conceito da dívida histórica para defender que a sociedade do presente tem o dever moral de resgatar injustiças que ocorreram no passado contra algum grupo específico. Os adeptos desse argumento defendem que toda a sociedade tem uma dívida com as pessoas negras de hoje por toda a construção histórica que resultou no fato de elas terem nascido em uma posição supostamente menos privilegiada. Essa posição desprivilegiada decorreria do fato de elas serem negras (sic).

Mesmo que se aceite tal dívida da sociedade com a sua população negra, podemos nos perguntar se essa dívida pode ser paga por cotas raciais. Com quantos anos de ações afirmativas se pagariam três séculos de escravização? Recorremos a uma citação de Thomas Sowell sobre essa questão:

“Não importa o quanto a história seja invocada em apoio a políticas (ação afirmativa), nenhuma política pode ser aplicada a História mas somente ao presente ou ao futuro.

O passado pode ser muitas coisas, mas claramente é irrevogável. Seus pecados não podem ser mais expiados do que seus feitos podem ser expurgados. Aqueles que sofreram nos séculos passados estão fora do alcance de nossa ajuda quanto aqueles que erraram estão fora do alcance de nossa retaliação.“

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Thomas Sowell é economista, escritor, filósofo político e professor de Stanford. Fez um estudo sobre políticas afirmativas ao redor do mundo publicado em forma de livro.

Não negamos que a grande maioria dos nossos colegas nos bancos de universidade era branca. Acontece que isso não é um problema por si só, mas sim um indicador da falta de oferta de ensino de qualidade a parcela mais pobre da sociedade, que por razões históricas tem uma maioria de pessoas negras. Acreditar que esse problema se combate com cotas raciais é travar uma inútil luta contra os galhos, sem dar atenção à raiz do problema.

Uma nação caraterizada pela miscigenação…
Além da segregação racial explícita que ocorreu em outros países somos diferentes também por outros aspectos. O Brasil sempre foi caracterizado por sua grande miscigenação. Este fato é marcante na nossa formação enquanto nação e foi retratado por Gilberto Freyre em seu livro Casa-Grande & Senzala. Freyre apresenta a importância da casa-grande na formação sociocultural brasileira, assim como a da senzala na complementação da primeira.

Portanto, a vinda de italianos, portugueses, africanos, e mais ainda, o convívio entre eles, sempre foi um traço marcante na nossa história e para o Brasil ser esse país multicultural. A partir do momento em que começamos a separar cada vez mais a população concedendo benefícios a determinados grupos, optamos por dividir e não por unir o país.

Se formos dividir o Brasil em cotas para índios, negros, pardos, nordestinos, mulheres, católicos ou evangélicos não seremos a nação que sempre fomos, com um território de dimensões continentais, de língua única, de um só povo! Seremos apenas um conjunto de grupos coletivos se digladiando por privilégios garantidos por leis.

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O operário de Tarsila do Amaral – Retrata a diversidade cultural da população paulistana

Devemos estar atentos para que, ao tentar realizar uma reparação para alguém ou para um grupo não acabemos cometendo uma injustiça com outrem. Além disso, se você não trata pessoas negras ou brancas de forma diferentes, por que dar algum tipo de privilégio baseado na cor da pele?

É o que muitos negros inclusive pedem. Certa vez um entrevistador perguntou ao ator americano Morgan Freeman “Como vamos acabar com o racismo?” Freeman respondeu “Parando de falar sobre isso… Eu vou parar de chamá-lo de branco e o que peço e que pare de me chamar de negro. Eu lhe conheço por Mike Wallace e você me conhece por Morgan Freeman”. Simples assim!

A dificuldade de um critério e o incentivo para se adequar a um…
Mas além de não encontrarmos motivos suficientes para apoiarmos as cotas raciais, mesmo que alguém dissesse que há motivos para isso, enfrentaríamos do enorme desafio de se definir um critério para colocá-lo em prática. Em um país com uma miscigenação tão rica quanto o Brasil, classificar quem merece ou não uma reparação baseando-se por sua cor de pele pode ser extremamente difícil.

O que falar do jovem, filho de pai negro e mãe branca, que não foi considerado negro pela UnB em 2007, enquanto seu irmão foi aceito pelos critérios raciais? Detalhe: os irmãos eram gêmeos idênticos¹. O que falar de uma estudante loira e de olhos claros que se declara negra² e é aceita na UERJ ²? Esses são apenas dois casos conhecidos que foram tratados pela mídia, mas que deixam claros o quão falhos podem ser tais critérios. A partir de que ponto alguém deixa de ser branco e passa a ser pardo, índio ou negro?

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O critério socioeconômico por outro lado é muito mais objetivo. Sem dúvida, poderiam contra argumentar que há pessoas que poderiam burlar este critério, como de fato podem. No entanto, tal critério econômico embora não seja perfeito coloca a subjetividade em segundo plano, o que fortalece a ação afirmativa, e não exclui os Joões no Brasil só pelo fato de não serem negros.

Discutimos políticas de ação afirmativa de curto prazo por um prazo longo demais
Por fim, para quem questionaria que grande maioria dos pobres é negra, destacamos que não é o fato de serem negros, e sim a desigualdade social que gera uma exclusão educacional e social. Acreditamos que debater a legitimidade e eficácia das ações afirmativas, que existem há mais de 10 anos no país e não passam de paliativos, afasta o debate das principais causas do problema, que é buscar formas de dar suporte a quem teve falta de acesso à educação básica, seja ele um branco, índio, negro ou mulato. Posto de outra forma, gastamos tempo demais debatendo questões fanáticas que defendem interesses difusos e tempo de menos com o que deveria estar sendo de fato discutida: a melhoria efetiva da educação básica para cada criança brasileira.

Nesse contexto é o governo quem deixa de cumprir o seu verdadeiro papel de promover educação de qualidade aos brasileiros e passa a dar foco a uma medida afirmativa que promete resolver os problemas de desigualdade raciais no nosso país. Quem sai perdendo, obviamente é a população que depende da qualidade do serviço de ensino ofertado pelo estado, não interessando a sua cor.

O sonho de Martin Luther King
Para finalizar, temos a consciência de que os pontos tratados aqui não são definitivos e nem consegue abarcar o problema como um todo, não é a toa que existe um grande debate em torno desse tema. Mas, na nossa visão, a verdadeira luta que deve ser travada é buscar a dignidade para o ser humano como indivíduo e dar a ele condições básicas de buscar sua realização pessoal.

Para encerrar, lembramos que Martin Luther King tinha um sonho: o sonho de que seus filhos fossem julgados por sua personalidade, não pela cor de sua pele. Foi por esse sonho que os movimentos negros lutaram nas últimas décadas, insistindo que raça não existe e que ser negro nada mais é do que uma questão de pigmentação de pele. Nós também temos esse sonho. Infelizmente separar a população por um critério de cor – como faz as cotas raciais – vai contra o sonho de Luther King.

Martin Luther King tinha um sonho. Nós temos o mesmo sonho dele…

¹ http://g1.globo.com/Noticias/Vestibular/0,,MUL43786-5604-619,00.html
² http://veja.abril.com.br/noticia/educacao/uerj-nada-faz-para-deter-as-fraudes-a-lei-das-cotas

Leonardo de Siqueira Lima
Economista formado pela FGV e filho de nordestinos,
Financiou a sua graduação com uma bolsa por passar entre os 10 primeiros no vestibular e parte por financiamento por condições socioeconômicas

Ivan Guilhon Mitoso Rocha
Engenheiro formado pelo ITA, natural do Ceará
Dedica parte do seu tempo como Professor do CASDVest, cursinho formado por alunos do ITA destinado a pessoas que não possuem condições de arcar com os custos de um pré-vestibular comercial

Terraço Econômico O Terraço Econômico é um espaço para discussão de assuntos que afetam nosso cotidiano, sempre com uma análise aprofundada (e irreverente) visando entender quais são as implicações dos mais importantes eventos econômicos, políticos e sociais no Brasil e no mundo. A equipe heterogênea possui desde economistas com mestrados até estudantes de economia. O Terraço é composto por: Alípio Ferreira Cantisani, Arthur Solowiejczyk, Lara Siqueira de Oliveira, Leonardo de Siqueira Lima, Leonardo Palhuca, Victor Candido e Victor Wong.

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