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O diabo mora nos detalhes: o dilema de estados e municípios na reforma da Previdência (parte III)

Já existe uma PEC Paralela em tramitação. Mas quando ela chegar à Câmara, em ano eleitoral, é possível que seja desidratada
Por  Paulo Tafner -
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Importante: os comentários e opiniões contidos neste texto são responsabilidade do autor e não necessariamente refletem a opinião do InfoMoney ou de seus controladores

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SÃO PAULO – Nos dois artigos anteriores, tratei da grave situação fiscal dos estados e municípios, em boa medida consequência da crescente despesa previdenciária e do destino da PEC 006, da reforma da Previdência, no Senado. Nesta coluna, tratarei da “PEC Paralela”.

Em sua origem, ela foi feita para incorporar estados, Distrito Federal e municípios aos princípios da PEC 006/2019, da reforma da Previdência. Em seu relatório, o senador Tasso Jereissati afirma: “Proponho que apresentemos uma PEC Paralela, uma nova PEC incluindo estados, Distrito Federal e municípios e com outras alterações que o Plenário julgar importante […]” (pag. 22).

Como sabemos, o diabo mora nos detalhes. A questão é saber o que o plenário vai julgar importante. De pronto, o relator já adianta que, além da inclusão dos entes federados, constará dessa nova PEC: (i) garantia de um salário mínimo (SM) para todos os pensionistas; (ii) cota dobrada, de 20%, na pensão por morte, para dependentes de até 18 anos; (iii) cálculo mais vantajoso na aposentadoria por incapacidade em caso de acidentes; (iv) manutenção do tempo mínimo de contribuição de 15 anos para homens que ainda não entraram no mercado de trabalho; (v) reabertura do prazo para opção pelo regime de Previdência complementar dos servidores federais; (vi) cobrança gradual de contribuições previdenciárias das entidades educacionais ou de saúde com capacidade financeira enquadradas como filantrópicas, sem afetar as Santas Casas e as entidades assistenciais; (vii) cobrança gradual de contribuições previdenciárias do agronegócio exportador; e (viii) cobrança no Simples destinada a incentivar as micro e pequenas empresas a investir em prevenção de acidentes de trabalho e proteção do trabalhador contra exposição a agentes nocivos à saúde.

Podemos dividir esse conjunto de oito medidas em três grupos: as que reduzem o impacto fiscal da PEC 006/2019, as que ampliam as receitas previdenciárias e as que são neutras. Comecemos pelo último grupo.

A ampliação de prazo para que servidores federais adiram à Previdência complementar (Funpresp) é uma medida neutra fiscalmente – ainda que tenha impactos positivos de longo prazo no passivo atuarial do regime próprio da União. Trata-se de medida que deveria ser matéria de corriqueira administração e não constitucional.

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A segunda medida que é neutra fiscalmente, ao menos no médio prazo, é aquela que reduz de 20 para 15 anos o tempo mínimo de contribuição. O problema é o fato de, no longo prazo, reduzir a potência fiscal da reforma, além de ser um retrocesso na longa batalha de ajustes previdenciários.

Estamos falando de trabalhadores que, entrando no mercado de trabalho em 2020 deverão se aposentar a partir dos anos 2050. Atualmente, homens que se aposentam por idade têm 18,5 anos de contribuição em média. Mulheres, algo próximo a 16,6 anos. Estabelecer 20 anos para homens que ainda vão entrar no mercado de trabalho não me parece um exagero.

Tratemos agora das medidas que reduzem a potência fiscal da reforma. São as três propostas iniciais: as duas primeiras estão associadas ao benefício de pensão por morte e a terceira se refere à aposentadoria por incapacidade.

A garantia de um salário mínimo para a pensão é algo que sensibiliza muito a classe política. Afinal, como autorizar uma pensão de valor menor do que um SM à viúva (ou viúvo) que já sofreu a perda do cônjuge? A PEC 006/2019 garante o valor de 1 SM de pensão para todos que não tiverem renda, mas aplica a regra geral (50% de benefício básico + 10% por dependente econômico) para aqueles que têm outra renda.

Suponha, por hipótese que Maria tenha uma aposentadoria de R$ 1.000,00 e que seu marido, João, tenha outra de, digamos, R$ 1.200,00. É estatisticamente razoável supor que João morra antes dela, legando-lhe o direito a uma pensão. O que diz a PEC 006? Que Maria terá direito a receber o valor de R$ 720,00 de pensão, ou seja, 60% do valor da aposentadoria de João. Isso somado ao valor de sua própria aposentadoria garantirá uma renda de R$ 1.720,00.

E o que propõe o senador? Que, em vez de receber R$ 720,00 de pensão, Maria passe a ganhar 1 SM, garantindo-lhe uma renda de R$ 1.998,00. São todos valores relativamente modestos, mas o incremento de despesa, nesse caso, é superior a 16%.

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E o que aconteceria se Maria não tivesse renda nenhuma? A PEC 006 lhe garantiria 1 SM. Basicamente, a diferença se aplica para aqueles que têm outra renda. Em 2015, quase metade dos pensionistas acumulavam outra renda, sendo que, desses, 2/3 acumulavam aposentadoria e pensão e o restante acumulava renda de trabalho.

Importante salientar que, dos que acumulam pensão com outra renda, 75% estão entre os 30% de maior rendimento familiar per capita e menos de 10% entre os 20% de menor renda familiar per capita. Afirmar que quem acumula renda não é o pobre é um retrato bastante fiel da realidade.

A questão é por que garantir 1 SM para todos, se parcela significativa dos recebedores que acumulam está entre os mais bem aquinhoadas de nossa sociedade?

O próprio relator, em seu texto, reconhece: “Outro fato que chama atenção nesta discussão é a dificuldade que a pensão tem hoje em chegar às famílias mais mal posicionadas na distribuição de renda. Por ser benefício vinculado ao emprego formal, com carteira assinada, ele na verdade não atende às famílias mais vulneráveis…”. (pag. 31, negrito nosso).

A PEC 006 estabelece que a cota individual para cônjuge e filhos menores seja de 10% do valor base do benefício. Essa cota não é reversível – como atualmente – ou seja, uma vez que a criança ou jovem se torne maior de idade, esse valor é extinto. O relator propõe a aplicação de cota dobrada, de 20%, na pensão por morte, para dependentes de até 18 anos. Isso significa que uma viúva com apenas um filho receberá 80% do valor do benefício; se tiver 2 filhos, receberá 100%.

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Com dados da Pnad 2015, também utilizados, no caso anterior, é possível verificar que: (1) do total de pensionistas mulheres, 83% não tinham filho menor; (2) das que tinham filho menor, 59% tinham apenas um filho. Isso implica que 41% das mulheres pensionistas com filhos menores terão seu valor de pensão elevado a 100% do valor integral do benefício.

Como bem afirmou o relator, esse benefício está associado à formalização no mercado de trabalho e esta, por sua vez, à escolaridade e a maiores remunerações. Em poucas palavras, a proposta acaba por proteger quem já é protegido. E mais, das mulheres que têm três filhos ou mais, quase 90% têm até o ensino fundamental incompleto, quase 60% vive sem parceiro e mais de ¾ não são brancos. Serão essas as favorecidas pela proposta? Certamente que não.

O custo dessas iniciativas está estimado em R$ 33 bilhões em dez anos. Melhor seria se aplicássemos esses recursos no combate efetivo à pobreza, com programas focalizados em crianças e jovens.

A última medida que reduz o impacto fiscal da PEC 006 diz respeito à aposentadoria por acidente. Ao tornar mais vantajoso o cálculo desse benefício, pois acrescenta dez pontos à base de cálculo, a proposta acaba por criar perverso incentivo à burla.

A aposentadoria por invalidez decorrente de outro fator que não seja acidente terá cálculo menos generoso, fazendo com que muitos busquem na primeira opção a configuração de sua aposentadoria. Em última instância, desequilibra a estrutura de benefícios e estimula a fraude.

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O custo dessa medida está estimado em R$ 7 bilhões em dez anos. No total, essas três pequenas medidas, se aprovadas, produzirão uma desidratação de R$ 40 bilhões em dez anos, o que corresponde a algo próximo de 5% do impacto fiscal estimado.

Do outro lado da balança, o relator oferece recursos adicionais para a Previdência Social. Diz ele: “Propomos relevantes mudanças de justiça fiscal. Somos pela revisão de renúncias previdenciárias de baixo impacto social, particularmente as feitas em benefício de grupos econômicos que podem arcar com as contribuições. O momento de reforma da Previdência é um momento de correção de distorções, sejam elas nas despesas, sejam elas nas receitas”.

Assim é que foi proposta uma contribuição previdenciária progressiva em cinco anos sobre as entidades educacionais ou de saúde com capacidade financeira enquadradas como filantrópicas, excetuando-se as Santas Casas e as entidades de assistência, e sobre o agronegócio exportador e ainda cobrança das empresas enquadradas no Simples.

A estimativa de ganho de arrecadação, somados os três grupos, está em R$ 155 bilhões em dez anos, sendo R$ 60 bilhões das filantrópicas, outros R$ 60 bilhões do agronegócio exportador e R$ 35 bilhões do Simples.

Obviamente, se adicionarmos a desidratação das emendas supressivas (matéria tratada na coluna anterior), chegaremos a uma desidratação total de aproximadamente R$ 150 bilhões em dez anos. Como o ganho esperado de arrecadação é de R$ 155 bilhões, pode-se afirmar que, até o presente momento, o Senado, considerando a PEC 006 e a Paralela, produzirá um incremento fiscal de R$ 5 bilhões.

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Mas será mesmo esse o resultado em que se deve apostar? Não creio. O incremento de receita decorrente da cobrança de contribuição previdenciária mobilizará três poderosos lobbies no Congresso: a filantropia, a bancada ruralista e a bancada do Simples – que, somadas, impedem qualquer aprovação nas duas casas legislativas.

Se assim for, então o resultado líquido troca de sinal passa a ser uma desidratação de R$ 150 bilhões, ou aproximadamente 20% da Reforma.

Se a PEC Paralela for apenas o que foi proposto pelo relator – o que, convenhamos, é pouquíssimo provável –, quando a proposta chegar à Câmara, em ano eleitoral, a tendência será desidratar ainda mais.

Obviamente, restaria ao governo exercer seu poder de bloqueio e enterrar a Paralela. Nesse caso, valeria a máxima: “O bebê foi junto com a água do banho”, e os estados, DF e municípios ficariam de fora da reforma.

O que resta então aos estados? Apostar em uma Paralela do B, ou seja, em um novo desmembramento, constando em uma PEC as “bondades” e em outra, apenas a inclusão dos entes subnacionais, correndo o risco de nada acontecer e continuarem de fora? Ou apostar em sua própria capacidade e propor mudanças ao Legislativo local?

Trata-se certamente de uma situação política delicada e complexa. Mas, diante daquilo que em outra coluna denominei de “adolescência” da classe política, se governador fosse, enfrentaria a questão localmente, propondo ao Legislativo a própria reforma, nos moldes da PEC 006/2019.

É difícil? Certamente. Mas cada governante terá mais margem de manobra do que depender do Legislativo Federal. E o crucial: os governadores não podem esperar! Façam suas próprias reformas.

Paulo Tafner É economista, doutor em ciência política e diretor-presidente do Instituto Mobilidade e Desenvolvimento Social (Imds). Especialista em previdência, publicou diversos livros, entre eles, "Reforma da previdência: por que o Brasil não pode esperar?", escrito em conjunto com Pedro Nery

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