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Problema da saúde brasileira não é falta de recursos, mas de eficiência

Precisamos obter resultados melhores com o mesmo volume de gasto. E isso a pandemia está nos ensinando que é possível
Por  Paulo Tafner -
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Importante: os comentários e opiniões contidos neste texto são responsabilidade do autor e não necessariamente refletem a opinião do InfoMoney ou de seus controladores

Amanhecemos em 21 de abril com a informação de que o Brasil havia superado os 40 mil casos confirmados de Covid-19, registrando 2.587 mortes.

Doze países concentram 80% do total de casos e 89% das mortes pela doença. Somos o 12º país com maior número de casos e o 3º maior em população. Temos a segunda menor taxa de disseminação da doença, atrás apenas da China: lá, há 5,8 casos para cada 100 mil habitantes; entre nós, há 19,5 casos.

Desses doze países com maior número de casos, somente China, Brasil e Rússia têm menos de 20 infectados para cada 100 mil habitantes. Cinco países têm incidência superior a 200 casos por cada 100 mil (EUA, Espanha, Itália, França e Bélgica); três estão entre 100 e 200 (Alemanha, Reino Unido e Turquia); e um está próximo de 100 (Irã, com 99).

Até o momento, a maior taxa de letalidade acontece na Bélgica, com 14,6%, seguida da Itália, com 13,3% e do Reino Unido, com 13,2%.

No extremo oposto, a Turquia, que passou dos 90 mil casos, tem a mais baixa letalidade desse conjunto de países, com apenas 2,4% de óbitos. Porém, sua taxa de contaminação tem crescido bastante nos últimos 15 dias, o que pode significar um número maior de óbitos em breve.

A Alemanha também apresenta surpreendente taxa de letalidade: apenas 3,3%, sendo a mais baixa dentre os países europeus.

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A despeito de ter o maior número de casos, os Estados Unidos, com 792 mil casos constatados, têm apenas 5,4% de óbitos (pouco mais de 42 mil mortes), sendo a quarta menor taxa de mortalidade nessa amostra.

Mas o que pretendo mostrar com esse emaranhado de dados? Que o mundo apresenta grande diversidade no processo de contaminação e seus resultados.

Países onde a disseminação foi muito aguda (EUA, Espanha, Itália, França, Alemanha, Reino Unido e Bélgica) – todos com mais de 175 infectados para 100 mil habitantes – tiveram taxa de mortalidade variando de 3,3%, na Alemanha, a 14,5%, na Bélgica.

Mas esses resultados podem representar apenas a diferença na amplitude da testagem e a letalidade. Ou seja, à medida que aumente o número de testes, a taxa pode convergir para algo muito baixo, como 0,5% ou 1%. Ainda não sabemos.

No conjunto, parece haver correlação positiva entre mortalidade e participação elevada de idosos na população. Ou seja, quanto maior a presença de idosos, maior a número de mortos.

Considerado o tamanho relativo do grupo etário de 80 anos ou mais no conjunto da população de cada país, observa-se uma correlação positiva e relativamente elevada com o número de óbitos: 0,6.

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Por outro lado, quando tomamos a participação da população de 0 a 39 anos, verifica-se uma correlação negativa de -0,5.

Mas, mesmo com essas razoáveis associações, há coisas que não se enquadram no desenho geral.

Itália e Alemanha, por exemplo, são os dois países com maior presença relativa de idosos. A Itália apresentou até o momento uma mortalidade de 13,3% e a Alemanha, apenas de 3,3%. Ou seja, a Itália apresentou uma mortalidade 4 vezes superior à da Alemanha.

No extremo oposto, entre os países com menor presença de idosos, Irã e Brasil apresentam taxa semelhante de mortalidade (6,2% e 6,3%, respectivamente), enquanto a Turquia apresentou mortalidade de 2,4%, a menor de todo o grupo.

Se a comparação entre Turquia e Brasil não é recomendável, por conta dos diferentes números de casos (91 mil lá e 41 mil por aqui), o mesmo não se pode dizer acerca da comparação entre Irã e Turquia.

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O número de contaminados nesses dois países é semelhante. A mortalidade, porém, é bem distinta (2,4% na Turquia vs. 6,3% no Irã). Mais uma vez, vale notar que os resultados podem estar influenciados pela amplitude da testagem.

Tal como no mundo, o Brasil também apresenta situações internamente muito diferentes. Os números agregados escondem realidades distintas.

Há enormes diferenças entre estados (e, também, entre cidades). Juntos, São Paulo e Rio de Janeiro têm 30% da população, mas contabilizam 51% dos casos e 57% dos óbitos.

A Paraíba, por exemplo tem 6,2 habitantes infectados para cada 100 mil habitantes. Está entre as menores incidências dentre os estados brasileiros (20ª posição). Sua população (3,972 milhões) representa 1,94% da população brasileira e o número de casos registrados com Covid-19 é, proporcionalmente, ainda menor: 245 (0,60% do total de casos). Apesar disso, sua taxa de letalidade é a maior do Brasil: 13,1%.

Amapá, Amazonas e Roraima apresentam as três maiores taxas de contaminação do país. São, respectivamente, 56,5, 54,8 e 48,3 infectados para cada 100 mil habitantes, valores relativamente próximos.

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Entretanto, a letalidade é bem diferente em cada caso: em Roraima apenas 1,2%; no Amapá, 3,0%, enquanto no Amazonas é 7,2%, seis vezes maior do que Roraima e três vezes maior do que Amapá.

Dentre todos os estados e o DF, 13 apresentam incidência particularmente baixa da doença: abaixo de 10 contaminados a cada 100 habitantes.

Nesse grupo, encontram-se Paraná, Rio Grande do Sul, Bahia, Mato Grosso do Sul, Goiás, Mato Grosso, Rondônia, Paraíba, Piauí, Alagoas, Sergipe e Tocantins. Com exceção do Sudeste, há estados de todas as demais regiões do país.

Mas nesse grupo de baixíssima disseminação também há diferenças enormes. Rondônia, Mato Grosso do Sul e Tocantins têm taxas de letalidade muito baixas (abaixo de 3%), mas Alagoas e Paraíba apresentam mortalidade bem mais elevada: 10,5% e 13,1% respectivamente.

Outros quatro estados (Pará, Santa Catarina, Rio Grande do Norte e Maranhão) apresentam incidências inferiores a 20 infectados para cada 100 mil habitantes.

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Por fim, são 10 os estados com mais de 20 infectados a cada 100: Amapá (56,5); Amazonas (54,8); Roraima (48,3); Ceará (39,1); São Paulo (32,8); DF (29,9), Espírito Santo (29,7), Rio de Janeiro (29,6), Pernambuco (28,8) e Acre (21,9), todos para cada 100 mil habitantes.

Note, leitor, que são todas incidências muito inferiores àquelas observadas nos países sobre os quais falei na primeira parte do artigo. Por certo, também essa estatística pode estar fortemente influenciada pela reduzida quantidade de testes.

De toda forma, parece haver potencial para o crescimento da disseminação da Covid-19 no Brasil. Se isso ocorrer, veremos o colapso absoluto de nosso sistema de saúde. E isso é que é relevante para nós.

Atualmente, ainda temos baixa disseminação e a rede hospitalar já está saturada em alguns estados, como São Paulo, Rio de Janeiro, Amazonas, Paraíba, Pernambuco e Ceará. Em várias outras regiões, já estamos utilizando algo próximo a 50% da capacidade instalada.

A Covid-19 nos traz uma importante lição: avançamos muito com o SUS, mas nossa oferta de saúde é flagrantemente insuficiente. Há poucos leitos de enfermaria por 100 mil habitantes e ainda menos de terapia intensiva. Temos poucos equipamentos, poucos leitos e enormes lacunas no território. Quais as origens dessa insuficiência?

O que explica isso? Gastamos pouco com saúde? Faltam profissionais de saúde? Faltam médicos? Faltam enfermeiros?

Utilizando dados da Organização Mundial da Saúde e do Banco Mundial, e associando gastos públicos com saúde como proporção do PIB e PIB per capita com paridade de poder de compra (PPP), observa-se que o Brasil não tem um comportamento destoante do padrão internacional.

Ou seja, não se pode afirmar que nossa insuficiência de saúde se deva a gasto público reduzido.

Claro que é possível argumentar que países de renda média e em processo de desenvolvimento tenham que, durante certo tempo, alocar proporcionalmente mais recursos à saúde do que países desenvolvidos.

Isso poderia ser devido a fatores como montagem da rede pública de atendimento, redes de distribuição de remédios, etc. Investimentos que os países desenvolvidos realizaram no passado.

Com o intuito de verificar essa possibilidade, associamos razão de dependência demográfica aos gastos públicos com saúde (PPP) e, adicionalmente, PIB e gastos com saúde apenas entre países em desenvolvimento.

O que se verifica é que não há insuficiência de gastos. Ou seja, não se pode atribuir nosso desempenho ao (reduzido) gasto público com saúde, porque simplesmente isso não ocorre.

Nosso gasto, seja em proporção ao PIB (PPP), em relação a estrutura demográfica, ou seja para um conjunto de 105 países, seja entre aqueles em desenvolvimento (aproximadamente 45 países) é compatível com a norma mundial.

Os resultados da saúde não dependem apenas dos gastos governamentais, mas também dos gastos privados. Cada sociedade escolhe uma particular combinação entre eles.

É sempre possível que os gastos públicos em saúde, apesar de adequados em relação à norma internacional (tanto em relação ao PIB per capita como em relação à razão de dependência demográfica), não sejam complementados por gastos privados.

Isso poderia ocorrer por diversas razões, entre as quais, a insuficiência de renda de parte da população. Nesse caso, a parcela de gastos privados no total de gastos com saúde seria muito reduzida. Isso, entretanto, não é o que acontece no Brasil.

A participação dos gastos privados em saúde no Brasil está acima da norma internacional. A experiência de países de renda alta mostra que há enorme variabilidade da participação desses gastos.

Assim, por exemplo, Estados Unidos e Singapura apresentam resultados semelhantes aos do Brasil (elevados). Por outro lado, Islândia e Noruega apresentam reduzida participação desses gastos.

Utilizando uma amostra de países em desenvolvimento, observa-se que o Brasil está ligeiramente acima na norma. Isso indica que os resultados brasileiros em saúde não podem também ser explicados pela insuficiência de gastos privados com saúde.

Sabemos que a produção de saúde não depende apenas de recursos financeiros alocados. É necessário combinar fatores.

Assim, um mau resultado pode decorrer de uma combinação ineficiente de insumos, da carência relativa equipamentos ou de profissionais da área médica. No último grupo, médicos e enfermeiros são fundamentais. O que se constata é que o Brasil apresenta ligeira deficiência para médicos e plena suficiência para enfermeiros.

É possível que a carência de médicos afete o desempenho do sistema de saúde, mas é pouco provável – dada a reduzida escassez relativa – que esse único fator explique o baixo desempenho da saúde brasileira.

Destaque-se o fato de que Chile, Costa Rica e Coréia do Sul, por exemplo, apresentam densidade de médicos por mil habitantes muito semelhante à do Brasil, mas têm desempenho melhor do que o brasileiro.

Fizemos muito em termos de melhoria e de universalização de saúde nos últimos 30 anos, mas há ainda um longo caminho em termos de eficiência e efetividade.

Além de aumentar a oferta de médicos e melhorar a gestão, é imprescindível aumentar a oferta de equipamentos de saúde (hospitais em geral, leitos, equipamentos de RX, tomógrafos etc.)

E teremos que fazer isso sem aumentarmos, em termos relativos, o gasto público. Teremos que aprender a ser mais eficientes. Obter resultados melhores, com o mesmo volume de gasto. E isso a pandemia já está nos ensinando que é possível.

Estados, municípios, diversos hospitais Brasil afora estão buscando mais eficiência, mais foco, menos burocracia, mais gestão e mais interdisciplinaridade.

Teremos que aproveitar a pandemia para deixar um legado na área de saúde.

Há outras lições que a crise pandêmica pode nos trazer. Mas isso é para a próxima semana.

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Paulo Tafner É economista, doutor em ciência política e diretor-presidente do Instituto Mobilidade e Desenvolvimento Social (Imds). Especialista em previdência, publicou diversos livros, entre eles, "Reforma da previdência: por que o Brasil não pode esperar?", escrito em conjunto com Pedro Nery

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