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Estados, municípios e a reforma da Previdência (parte II): à espera da PEC “paralela”

O Senado retirou R$ 100 bilhões da reforma, mas custos econômicos são pagos. A questão é por quem
Por  Paulo Tafner
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Importante: os comentários e opiniões contidos neste texto são responsabilidade do autor e não necessariamente refletem a opinião do InfoMoney ou de seus controladores

SÃO PAULO – Em sua versão original, a PEC 006/2019, da reforma da Previdência, propunha mudanças paramétricas, como idades de acesso à aposentadoria para todas as categorias profissionais e mudança na regra de cálculo do valor do benefício. Além disso, apresentava a possibilidade de implantação de alíquotas previdenciárias progressivas e o estabelecimento de alíquota extraordinária para ativos, inativos e pensionistas, quando o regime de Previdência local apresentasse déficit atuarial. Estava, então, prevista a inclusão de estados e municípios.

Tratava-se de um arsenal de instrumentos bastante potente para enfrentar a crescente e sufocante despesa previdenciária dos estados, do Distrito Federal e também de muitos municípios. Lamentavelmente, como se sabe, por razões de natureza política, estados, DF e municípios ficaram de fora da reforma.

Após sua aprovação em dois turnos na Câmara Federal, a PEC 006 seguiu para o Senado e, lá, coube ao senador Tasso Jereissati a relatoria. Habilmente, transferiu para uma PEC “paralela” a inclusão de estados, DF e municípios (trataremos dessa PEC na próxima semana), propôs mudanças de redação sem alterar o sentido do texto aprovado na Câmara e acatou quatro propostas de emendas supressivas de dispositivos autônomos.

As alterações de redação foram todas positivas. O mesmo não se pode dizer acerca das emendas supressivas. Em tese, uma vez aprovadas, a PEC não teria que voltar à Câmara, podendo seguir para promulgação. A realidade não é bem assim.

Inicialmente, vamos entender quais foram as supressões. Gastarei algum tempo para explicar sucintamente o que significa cada uma delas e seu impacto fiscal.

(1) Exclui a constitucionalização da definição da linha de pobreza para concessão do BPC;
(2) Exclui a transição para aposentadoria especial dos expostos a agentes nocivos;
(3) Retira a expressão “no âmbito da União” do §1º-B do art. 149; e
(4) Suprime a revogação do §18 do art. 40 proposto na PEC 006.

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O benefício assistencial está gravado na Constituição brasileira e é regulado pela Lei 8.742/93 e regulamentado pelo Decreto nº 6.214/2007. No § 3º do art. 20 está definido o critério para concessão do benefício: “Considera-se incapaz de prover a manutenção da pessoa com deficiência ou idosa a família cuja renda mensal per capita seja inferior a 1/4 (um quarto) do salário-mínimo”.

A despeito da clareza do texto legal, o Judiciário tem ampliado o entendimento do que seja “pobreza” e o próprio Supremo Tribunal Federal (STF) se pronunciou declarando inconstitucionalidade parcial, pois entende que a pobreza é um fenômeno multidimensional, sendo necessário levar em consideração outras dimensões da pobreza.

Há decisões, por exemplo, que descontaram da renda familiar todo o gasto pessoal e apuraram a renda líquida disponível para concessão do benefício. O fato é que, atualmente, 30% desses benefícios são concedidos por decisão judicial, após negativa do INSS pelo critério objetivo definido em lei.

Para contornar esse imbróglio jurídico, a PEC 006 trazia para o texto constitucional essa definição, de modo a limitar a capacidade discricionária do judiciário. A proposta foi aprovada pela Câmara, mas o relator do Senado entendeu que esse dispositivo deveria ser suprimido. Estimativas realizadas pelo governo e também por mim indicam uma perda entre R$ 22 e R$ 25 bilhões em dez anos.

No caso da aposentadoria especial, previa-se uma transição, com acréscimo de 5 pontos (soma da idade com tempo de contribuição), sendo um ponto adicional por ano, a partir de 2020. O relator acolheu emenda do senador Jaques Wagner que suprime o acréscimo de pontos. O relator assim conclui: “Entendemos que é suficiente a regra de pontos proposta pelo caput do art. 21 da PEC […]”. Mais perdas, dessa vez, de R$ 6,3 bilhões em dez anos.

A quarta exclusão é neutra em termos fiscais e corrige um erro técnico ocorrido durante a votação na Câmara dos Deputados e a terceira é benfazeja, pois estende a estados e municípios a possibilidade de instituição de alíquota extraordinária. Algumas considerações sobre ela.

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A PEC 006 estabelece dois instrumentos poderosos para o enfrentamento dos déficits dos regimes próprios de Previdência. O primeiro deles está descrito do §1º-A do art. 149. Na ocorrência de déficits atuariais, os governos poderão ampliar a base de incidência da contribuição previdenciária ordinária de aposentadorias e pensões a todo rendimento que exceder o valor do salário mínimo.

Atualmente, ativos descontam contribuição sobre a totalidade de seus vencimentos, mas aposentados e pensionistas, não. Para esses, a contribuição só incide sobre a parcela que exceder o teto do INSS (R$ 5.839,45). Isso significa que aposentados ou pensionistas que recebam R$ 5 mil não contribuem.

Se receberem, digamos, R$ 10 mil, contribuirão apenas sobre R$ 4.160,55 (R$ 10 mil – R$ 5.839,45). Isso representa enorme potencial de ampliação da receita previdenciária da União, dos estados e dos municípios, de modo a reduzir o passivo atuarial e o déficit financeiro.

Além desse instrumento, o §1º-B desse mesmo artigo autoriza a instituição de alíquota extraordinária, caso a medida anterior não seja suficiente para equacionar o déficit atuarial. É um reforço expressivo de arrecadação e, consequentemente, de enfrentamento da dramática questão previdenciária dos governos.

Lamentavelmente, no texto aprovado na Câmara, esse dispositivo ficou restrito à União. O que propôs o relator foi suprimir essa limitação, retirando do texto a expressão “no âmbito da União” e, dessa forma, estendendo essa possibilidade a estados e municípios.

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Apesar de tecnicamente correta e muito bem intencionada, não prosperou na primeira rodada do Senado. Os ânimos da Câmara não estão remando a favor dos estados, DF e municípios. Diversos Deputados já se manifestaram no sentido de que se fosse aprovada essa “exclusão” esta seria entendida como modificativa e que, portanto, teria que voltar à Câmara para nova votação. Dessa forma, creio que, eventualmente, fique para a “paralela”.

Entendo que o destino do dispositivo que estenderia a estados, DF e municípios a possibilidade de instituição de alíquota extraordinária é ser retirado do texto no Senado, ficando a PEC “paralela” (objeto da coluna da próxima semana) encarregada de levar aos entes subnacionais os princípios e regras da reforma.

Por fim, na undécima hora, a alteração do abono salarial* foi derrubada e o estrago foi grande: perda de mais de R$ 75 bilhões.

O Senado deu sua contribuição: retirou R$ 100 bilhões da reforma. Dizem nossos nobres senadores: “Defendemos o povo”. Ainda não aprendemos a primeira lição: custos econômicos são pagos. A questão é a escolher a melhor e mais justa forma de distribuí-los.

 

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* Na coluna da semana passada escrevi sobre o Abono. Devo fazer uma correção: o Abono Salarial é sim, lamentavelmente, matéria constitucional. Cometi um erro precipitado e peço desculpas aos leitores. Há duas alternativas para revisitar o tema: (i) incluir na Pec paralela ou (ii) fazer uma PEC específica que trate desse e de outros benefícios assistenciais.

Paulo Tafner É economista, doutor em ciência política e diretor-presidente do Instituto Mobilidade e Desenvolvimento Social (Imds). Especialista em previdência, publicou diversos livros, entre eles, "Reforma da previdência: por que o Brasil não pode esperar?", escrito em conjunto com Pedro Nery

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