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Enfim a reforma da Previdência: quatro décadas em busca do bom senso

Temos muito a comemorar, mas é importante lembrar que itens importantes ficaram de fora, como a previdência de estados e municípios e o gatilho demográfico
Por  Paulo Tafner -
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Importante: os comentários e opiniões contidos neste texto são responsabilidade do autor e não necessariamente refletem a opinião do InfoMoney ou de seus controladores

Enfim a reforma da previdência foi aprovada. Depois de aprovado o relatório final na quarta-feira, dia 10 de julho, foram precisos mais dois dias para a votação dos destaques. Alguns dos destaques foram mera adequação técnica, um deles um retrocesso em termos de tempo mínimo de contribuição para homens; outro, um equívoco técnico que permitiu a suavização das regras de fixação do valor da pensão; e o último, uma manifestação explícita da dificuldade de enfrentarmos privilégios, que foi a fixação de regra particularmente generosa para policiais.

Tudo votado e resolvido, temos muito a comemorar. Foi uma vitória do bom senso do Congresso Nacional, da obstinação da equipe liderada pelo competente Rogério Marinho e da liderança inquestionável do presidente da Câmara, o deputado Rodrigo Maia.

A história pela busca do bom senso é longa no país. Nos anos 80, Francisco Barreto e Kaizô Beltrão já alertavam que nosso sistema de previdência iria entrar em colapso. Isso, antes mesmo da Constituição Federal de 1988 – a Constituição Cidadã – que ampliou direitos e fez expandir os gastos públicos.

Desbravadores da Previdência, ambos alertavam que nossas regras fariam explodir os gastos sem a devida contrapartida de arrecadação. A dedicação ao tema foi tamanha que Francisco recebeu o carinhoso apelido de “Chico Previdência”.

Os alertas foram levados aos governantes e à academia. Os primeiros fizeram ouvidos moucos. A academia se dividiu: uma safra de jovens pesquisadores, como eu e vários outros, passaram a aprofundar o tema, incorporando novos dados, novas técnicas e chegaram às mesmas conclusões: nosso sistema previdenciário estava condenado.

Outro grupo preferiu seguir a contramão da história até chegar a nossos dias afirmando que não há déficit, ou que bastaria cobrar os devedores, ou ainda dizendo que havia mais de R$ 1 trilhão na conta única do Tesouro, dinheiro mais que suficiente para cobrir o rombo da previdência. Combinação de indigência intelectual, contabilidade criativa e ausência de ciência.

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Em 1990, o governo Collor chegou a apresentar uma proposta de mudança na Previdência. Mas foi imediatamente arquivada e esquecida e até hoje, na historiografia sobre o tema, este episódio é suprimido como se não tivesse existido.

Até 1993, não havia a exigência de um regime de previdência para o servidor. Ao cumprir os requisitos, o servidor podia se aposentar com proventos pagos pelo erário, independente de ter contribuído. Com a edição da Emenda Constitucional nº 3/93, essa realidade começou a mudar. A referida emenda incorporou ao texto da Carta Magna a necessidade de contribuição dos servidores civis para custeio de suas aposentadorias e pensões.

Cinco anos mais tarde, já durante o governo FHC, novamente a questão voltou à baila. A Emenda Constitucional nº 20/98 (apresentada em 1996) foi aprovada em 1998 e mudou muitas coisas no sistema previdenciário brasileiro. Ela era extensa, tratava de várias questões da Previdência e propunha o fim da aposentadoria por tempo de contribuição – símbolo máximo da desigualdade de tratamento previdenciário entre pobres e não pobres.

Houve muito avanço, mas a fixação de uma idade mínima – com consequente extinção da aposentadoria por tempo de contribuição – não foi aprovada, por apenas um voto. O voto errado mais caro da história do país.

Outros cinco anos se passaram e, em 2003, foi aprovada a EC nº41/03 que aprimorava regras para os servidores públicos e estabelecia a previsão de previdência complementar para os entes (estados e municípios), fixava alíquota mínima para os Regimes Próprios e determinava a obrigatoriedade de equacionamento do passivo previdenciário.

Uma década mais tarde, São Paulo e posteriormente a União constituíram as primeiras instituições de previdência complementar determinando que todos os servidores civis que ingressassem no serviço público a partir de então teriam cobertura previdenciária proporcionada pelo Ente até o valor equivalente ao teto do RGPS.

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Era evidente que estávamos caminhando para reduzir a enorme desigualdade que havia em nosso sistema previdenciário. Processo duro, lento e progressivo. Mas ainda faltava muito a ser corrigido. Afinal, como aceitar que alguns trabalhadores pudessem se aposentar com idades inferiores a 50 anos de idade? Como aceitar que alguns poucos beneficiários pudessem acumular 3, 4 ou mesmo 6 benefícios, sem que houvesse uma regra que limitasse essa acumulação?

Como aceitar que alguns servidores públicos recebessem transferência líquida da sociedade em montantes superiores a R$ 5 ou R$ 6 milhões? Como aceitar que o valor da pensão fosse o mesmo para viúvas(os) que tivessem vários filhos menores e viúvas(os) que não tivessem filho algum? Havia ainda toda sorte de erros e inadequações.

Com a sabedoria dos obtusos inquisidores da idade média, até mesmo a presidente Dilma Rousseff, depois de negar o óbvio por tanto tempo, se convenceu de que era necessário reformar a Previdência. Saiu antes de propor qualquer coisa.

O governo reformador de Michel Temer apresentou à nação em fins de 2016, portanto mais de uma década após a EC nº 41, uma proposta ambiciosa de reforma da Previdência. Tinha muitas virtudes e alguns poucos, mas graves defeitos. O desfecho todos nós sabemos.

Assim, depois de 16 anos desde a reforma do presidente Lula, o governo do presidente Bolsonaro, em maio de 2019, apresentou à nação a proposta de reforma da Previdência, conhecida como PEC 006/19. A proposta era abrangente e trazia coisas já apresentada na PEC de Temer e muitas outras novidades e modernizações.

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Depois de toda a tramitação e ajustes decorrentes das inúmeras negociações políticas, o Relatório Final foi aprovado na Comissão Especial e submetido ao Plenário, com ajustes finais de última hora. A vitória foi acachapante: 379 votos a favor.

Coisas preciosas ficaram de fora: estados e municípios; desconstitucionalização de regras operacionais, a possibilidade de um sistema capitalizado, o gatilho demográfico e outros aspectos relevantes que visavam modernizar nossa Previdência.

Se o futuro foi relegado, houve, por outro lado, importantes vitórias. Aprovar o fim da aposentadoria por tempo de contribuição é um enorme avanço. O estabelecimento de idades mínimas para todos é um enorme avanço. Igualmente, o estabelecimento de alíquotas progressivas que, por vias tortas, corrigem, pelo menos parcialmente a enorme transferência líquida de renda para grupos abastados de renda, é uma vitória excepcional.

O impacto fiscal ficou aquém do R$ 1 trilhão, mas algo próximo de R$ 800 bilhões de economia em dez anos é para se comemorar. Se não resolve nosso problema – e não resolve – dá algum alívio para as contas públicas e permite que a agenda de modernização avance no país.

Em 2015, em parceria com Carolina Botelho e Rafael Erbisti, organizei o livro intitulado Reforma da Previdência: a visita da velha senhora, em que procurávamos mostrar que, por mais que nossas elites políticas buscassem se distanciar do tema – por evidentes desgastes políticos –, o fato era que nosso encontro com o tema era inexorável. Tivemos um rápido encontro agora em 2019, mas a velha “senhora” virá nos assolar no futuro.

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Há, certamente, uma sensação de alívio. E isso é crucial para que enfrentemos outros enormes desafios pela frente. Temos que enfrentar a questão tributária; o grave desequilíbrio fiscal de estados e municípios; a baixa produtividade da economia brasileira; e a enorme desigualdade de renda e de oportunidades, entre outros.

Agora é hora de realinhar expectativas e arregaçar as mangas para agendas positivas e de retomada do crescimento econômico sustentável.
Quanto a mim, tenho uma sensação dividida: de um lado, certo alívio, por termos enfrentado – ainda que parcialmente – os fantasmas do passado; de outro, um incômodo por perceber – mais uma vez – que somos incapazes de enfrentar (e nos preparamos para) o futuro. Como dito certa vez, o Brasil não é para amadores!

Paulo Tafner É economista, doutor em ciência política e diretor-presidente do Instituto Mobilidade e Desenvolvimento Social (Imds). Especialista em previdência, publicou diversos livros, entre eles, "Reforma da previdência: por que o Brasil não pode esperar?", escrito em conjunto com Pedro Nery

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