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Bobagens II: a capitalização é dar dinheiro para banqueiro

A interpretação de que a capitalização colocaria trabalhadores na pobreza decorre de uma visão equivocada, porém disseminada entre nós, de que trabalhadores indefesos e empresários predadores estão em lados opostos no processo de geração de riqueza
Por  Paulo Tafner -
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Importante: os comentários e opiniões contidos neste texto são responsabilidade do autor e não necessariamente refletem a opinião do InfoMoney ou de seus controladores

Uma das bobagens campeãs é aquela que trata a capitalização como sendo um mecanismo para “dar dinheiro para banqueiros”. Segundo os defensores dessa platitude intelectual, com a capitalização, o trabalhador pouparia a vida inteira e, ao se aposentar, nada, ou quase nada teria, porque seus recursos teriam sido apropriados pelos banqueiros.

Nessa versão grotesca de mundo, os trabalhadores são ingênuos, bobos e desprotegidos e os banqueiros são vorazes gatunos de poupança alheia. Trata-se de um mundo idealizado e sem nenhuma conexão com a realidade. Mas, sem dúvida, é um discurso poderoso, que, repetido inúmeras e inúmeras vezes, ganha ares de verdade. Em certa ocasião, quando estava no Senado Federal apresentando argumentos favoráveis à reforma da previdência, ouvi de um ex-ministro essa mesma frase: “a capitalização é tirar dinheiro do trabalhador para dar aos banqueiros”. Perguntei ao ex-ministro se o mesmo tinha conta bancária e diante de sua resposta positiva, emendei: e o dinheiro que está em sua conta é seu ou do banqueiro?

Exortei-o e aos demais para que o debate se desse em nível um pouco mais. Naquela ocasião, percebi que esse discurso era poderoso, pois diversos representantes do povo entendiam a capitalização da mesma forma que o ex-ministro.

Esse não é o espaço adequado para analisar e discutir a percepção infundada e muito difundida de que o capitalismo é uma forma de produção que produz pobreza – apesar de os fatos mostrarem o contrário. Igualmente, não é o espaço para mostrar o nobre e fundamental papel dos bancos na transferência de fluxos de recursos entre poupadores e demandadores de crédito.

A interpretação de que a capitalização colocaria trabalhadores na pobreza decorre de uma visão equivocada, porém disseminada entre nós, de que trabalhadores indefesos e empresários predadores estão em lados opostos no processo de geração de riqueza. E que esses últimos são parasitas da economia em busca de vítimas inocentes e desatentas. Não me parece que esse seja um retrato fiel e adequado do processo econômico.

Isso não significa que não haja oportunistas, desonestos e bandidos de parte a parte. Lamentavelmente, nosso sistema jurídico tende, em geral, a punir trabalhadores e empresários honestos e beneficiar os desonestos. Isso repetido várias vezes, tende a reforçar a equivocada crença de que o capitalismo é a desgraça do mundo.

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Dito isso, voltemos à capitalização. Inicialmente é importante assinalar que nosso sistema de previdência já prevê a existência de capitalização. Vejamos como está estruturada a Previdência Social no Brasil.

A previdência possui quatro diferentes regimes: o regime geral de previdência social (RGPS), os regimes próprios de previdência dos servidores públicos (RPPS) e dois regimes de previdência complementar: previdência fechada, composta por fundos que são estruturados e suportados por empresas e, geralmente, restritos ao conjunto de seus trabalhadores; e o regime de previdência aberto, que são fundos operados pelo sistema financeiro e que são abertos a qualquer indivíduo, desde que regularmente ativo no RGPS ou RPPS.

O RGPS abrange os trabalhadores empregados do setor privado, os trabalhadores autônomos, domésticos, rurais e os segurados facultativos. É administrado pelo INSS e é obrigatório. Conceitualmente, o regime geral é um seguro social. Os regimes próprios (RPPs) abrangem o funcionalismo público nos níveis federal, estadual e municipal, mas há muitos municípios que não criaram regimes próprios.

O regime de previdência complementar é facultativo e é destinado àqueles que querem um benefício complementar ao obtido em algum dos regimes anteriores. É requisito legal para adesão ao plano de previdência complementar que o indivíduo esteja vinculado a um dos planos de previdência básicos (RGPS ou RPPs).

O RGPS, assim como os regimes próprios do setor público, funciona sob o sistema de financiamento de repartição simples. A previdência complementar é, em geral, regida pelo sistema de capitalização. Assim, nosso sistema é híbrido: para o RGPS e os RPPS o regime é de repartição; para a previdência complementar, o regime é de capitalização em conta individual.

É evidente, portanto, que a capitalização não é algo inexistente ou novo na previdência brasileira. Praticamente todos os trabalhadores de estatais e de grandes empresas multinacionais participam de fundos de pensão que operam em regime de capitalização. Da mesma forma, milhões de trabalhadores têm planos de previdência complementar que também operam em regime de capitalização. E mais: desde 2003, com a EC 41 aprovada no governo Lula, também União, Estados e Municípios foram autorizados a criar previdência complementar que opera em regime de capitalização. Ou seja, a capitalização já é uma realidade no Brasil.

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Apesar disso, quando se discute a possibilidade de também levar a capitalização para o Regime Geral, argumenta-se que isso seria “dar dinheiro para banqueiros”, ou que isso seria “condenar os trabalhadores à miséria”. As menções à previdência chilena são abundantes e as inverdades ainda maiores. Chegou-se a afirmar que o Chile teria a maior taxa de suicídio do planeta e que isso seria devido à previdência capitalizada chilena. Tanto uma coisa quanto a outra são as mais absolutas inverdades. Falou-se por demais da previdência chilena, mas pouco se estudou sobre ela.

Como vimos no artigo da semana passada, a demografia brasileira conspira contra o sistema de repartição. Em 1980, havia 9,2 ativos para financiar cada inativo. Atualmente, temos apenas 4,7. Daqui a 40 anos será apenas 1,6 ativo para financiar cada inativo. Não haverá ativos em número suficiente para sustentar aposentadorias e pensões. Manter o sistema previdenciário exigirá cada vez mais recursos de impostos gerais. Como a arrecadação em termos de PIB será relativamente constante, isso significa que os aumentos previstos de despesa serão cobertos com parcelas crescentes dos impostos ou elevar a carga tributária. Qualquer das alternativas é muito ruim.

Um princípio que deve nortear o sistema de previdência é que, em termos médios, o volume de recebimentos não pode superar o volume de contribuições. Isso deveria ser válido tanto individualmente como coletivamente. Entretanto, sabemos que há benefícios de risco, como a doença, a invalidez e a morte. Então é certo que, para várias pessoas, o volume de arrecadação será inferior ao volume de recebimentos. Consequentemente, no sistema de repartição há alguma transferência entre participantes. Mas essa transferência, deveria ser restrita a esses casos e, eventualmente, para aqueles indivíduos que ao longo da vida contributiva não tivessem acumulado recursos para ter acesso a um benefício mínimo. Com exceção desses casos, não deveria haver qualquer transferência.

O fato é que em nosso sistema há muita transferência, inclusive para os segmentos mais bem aquinhoados em termos de renda. A capitalização simplesmente acabaria com essa modalidade de transferência. Notem, leitores, que essa transferência atualmente é financiada com déficit (no ano passado, foram mais de R$ 380 bilhões). Não faz sentido a sociedade arcar com essa conta para que o sistema transfira parte desses recursos para pessoas que estão entre 10 ou 15% mais bem remunerados.

A capitalização certamente não é a solução para todos os problemas da previdência, mas teria o grande mérito de acabar com transferências indevidas e reduzir o volume da despesa previdenciária, liberando recursos de impostos para áreas de maior alcance social e econômico.

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E mais: a capitalização certamente não poderia prescindir de uma camada básica que garantiria renda para inválidos, doente e idosos que não acumulassem reservas suficientes. E esse valor limite bem poderia ser algo próximo ao salário mínimo para os primeiros e o salário mínimo para aqueles que mesmo não tendo acumulado reservas suficientes, tivessem contribuído por um período mínimo de 15 ou 20 anos.

Quanto ao risco de as poupanças individuais serem “surrupiadas” pelos banqueiros, creio que bons mecanismos de governança e controle – muitos dos quais já em plena operação no sistema bancário, financeiro e de capitais – seriam suficientes para assegurar que o trabalhador, quando se aposentasse, tivesse seus recursos de volta acrescidos dos devidos rendimentos.

Longe de ser uma transferência de renda aos “banqueiros”, a capitalização é uma forma eficiente de constituição de poupança e de garantia de aposentadoria para todos. E mais, será a única forma de termos um sistema de aposentadoria daqui 30 ou 40 anos.

Paulo Tafner É economista, doutor em ciência política e diretor-presidente do Instituto Mobilidade e Desenvolvimento Social (Imds). Especialista em previdência, publicou diversos livros, entre eles, "Reforma da previdência: por que o Brasil não pode esperar?", escrito em conjunto com Pedro Nery

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