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Sem capacidade de diálogo, até autonomia do BC vira palco para boataria

Temos nos especializado cada vez mais em promover debates sobre reformas pautados em mentiras e boatos inconsequentes. Sem capacidade de diálogo ou consenso, até uma simples autonomia do Banco Central vira palco para boataria
Por  Felippe Hermes -
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Importante: os comentários e opiniões contidos neste texto são responsabilidade do autor e não necessariamente refletem a opinião do InfoMoney ou de seus controladores

Foi em maio de 2010, durante a pré-campanha à presidência, que a então candidata Dilma Rousseff defendeu sua posição favorável à autonomia do Banco Central, criticando seu adversário José Serra, um ferrenho crítico da medida.

Por ironia do destino, passada mais de uma década, Dilma se tornaria um dos motivos pelos quais a defesa de uma autonomia do Banco Central ganhou força e veio a ser aprovada na Câmara.

No meio do caminho, claro, houve uma das propagandas eleitorais mais vergonhosas da nossa história: em uma cena dirigida por João Santana, o marqueteiro da campanha, o PT de Dilma acusava Marina Silva de defender a autonomia do Banco Central e, com isso, “tirar a comida da mesa das famílias pobres”.

Em teoria, trata-se de um debate técnico que inclui confiança na moeda, expectativas futuras e a ancoragem necessária para investimentos a longo prazo que o país precisa.

Justamente por isso, transformar a discussão em uma cena quixotesca e falsa é mais uma amostra daquilo que há de mais errado em nossa política: nosso debate público é extremamente rasteiro e quase sempre pautado em mentiras propositais.

Em outro exemplo claro desse tipo de atitude, basta notar que a ex-candidata a vice Manuela D’Ávila decidiu subir o tom contra a medida de autonomia, que, por sua vez, era parte do seu plano de governo em 2018.

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E há boas razões para defender a autonomia do Bacen. Como dito acima, o governo de Dilma foi uma boa amostra da ausência de autonomia, e as consequências foram caras.

Seu governo pressionou, e conseguiu, reduzir os juros na marra. Com isso, a inflação disparou, ficando bem acima da meta estabelecida. Tudo, claro, considerando as constantes manipulações de preços fundamentais na composição do índice de inflação, como os combustíveis.

Em suma, para promover crescimento o governo derrubou os juros e fez a Petrobras gastar US$ 45 bilhões para subsidiar combustíveis e, assim, manipular a inflação. O resultado? Crise econômica e desemprego, mostrando que minar a confiança na moeda e nas expectativas de inflação e crescimento custa caro.

Quando defendeu a autonomia do Bacen em 2010, Dilma poderia estar mirando no ocorrido em 2005-6, quando o ex-presidente Lula defendeu que o Banco Central fosse mais leniente com a inflação, e, assim, gerasse um aumento no PIB em 2006, ano eleitoral.

Então presidente do Banco Central, Henrique Meirelles ameaçou abandonar o cargo caso a pressão fosse bem sucedida. Venceu a disputa, e, com isso, a inflação continuou dentro da meta, com os juros caindo de maneira natural.

A questão técnica, porém, nos diz que manipular os juros não permite crescimento real da economia.

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No longo prazo, o papel da moeda no crescimento real da economia é neutro. Mas o perigo mora no curto prazo: o BC pode influenciar a economia, e, assim, criar uma falsa sensação de crescimento, que agradaria apenas os interesses políticos eleitoreiros.

Políticos adoram isso. Mas eu, você e qualquer um que tenha bom senso sabemos que maquiar a economia não é uma opção viável. Precisamos buscar crescimento real, não ilusões.

Justamente por isso, ao adotar um tom alarmista e pautado em ideias falsas para discutir a questão nesta semana, a oposição perde uma oportunidade de discutir não se precisamos de autonomia, mas o que essa autonomia deverá incluir.

Cabe ao Congresso definir o que o Banco Central terá que buscar como meta. Justamente aí está outro perigo. Se o Congresso incluir como meta reduzir o desemprego, corremos o risco de ver manipulações na economia para “melhorar os números”.

Tudo isso é um risco quando se trata do Congresso brasileiro, em especial pela falta de honestidade nas discussões. No fundo, ao focar em argumentos falsos, perdemos oportunidades de discutir problemas reais.

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E esse, claro, não é um problema de “esquerda ou direita”. Como já escrevi por aqui, o processo de privatizações, a criação de agências reguladoras, a Reforma Administrativa e as metas de inflação ao redor do mundo, nasceram em um governo de esquerda, na Nova Zelândia.

Nessa linha, a autonomia do BC é apenas mais um caso em que debates importantes são tomados por mentiras propositais.

Durante a Reforma da Previdência, por exemplo, se espalhou a ideia de que a idade mínima era maior do que a expectativa de vida em determinados estados.

Trata-se de algo falso. Afinal, no caso da Previdência, devemos olhar a expectativa de sobrevida, ou seja, quanto tempo alguém que possui 40 ou 50 anos viverá em média. Nesse caso, o número está crescendo, e mesmo os estados mais pobres possuem boas expectativas de sobrevida.

Isso ocorre pois a expectativa de vida é fortemente influenciada pela violência urbana, que atinge mais os jovens, além da mortalidade infantil.

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Perdemos nessa ocasião a possibilidade de buscar uma reforma que fosse mais justa e criasse uma igualdade de regras.

Conseguimos com muito esforço impedir que um trabalhador de classe média se aposentasse 11 anos antes dos trabalhadores mais pobres, mas deixamos passar uma reforma vexatória, que aumenta os gastos com militares.

Pautados em notícias falsas, como as de que os idosos chilenos cometem mais suicídios (na verdade, Cuba é o líder na América Latina em suicídio entre os idosos), vimos a reforma beneficiar grupos de interesse.

Na ocasião do teto de gastos, novamente as fake news estavam presentes.

Dizer que os investimentos em saúde e educação estariam “congelados” é falso. Ambos não possuem teto, mas sim piso. Como aponta o economista Marcos Mendes, pela primeira vez os gastos em saúde foram menores do que o mínimo previsto em lei.

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Nessa mesma ocasião, o Congresso e o Judiciário ficaram livres para desrespeitar o teto por dois anos. A consequência? Agora que o teto ameaça o Judiciário e seu custo exorbitante, ele passa a ser novamente questionado.

Durante o início da pandemia, houve quem defendesse o fim do teto para se investir em saúde. Novamente, algo absurdo. Afinal, o teto prevê momentos como esse. Derrubar o teto não aumentaria em nada os recursos para saúde, mas daria carta branca para outros poderes, como o Judiciário, gastarem.

Discute-se que nosso “teto de gastos” é “sem igual no mundo”. Focados em criar espantalhos, porém, não temos um debate correto e alternativas viáveis.

Ao longo da história, os exemplos se multiplicam aos montes. Durante a implantação do Plano Real, por exemplo, a oposição tratou o projeto como um arrocho salarial e alegava que o plano culminaria em aumentar a pobreza.

O fim da inflação, como sabemos hoje, foi responsável por minar um descalabro que aumentava a pobreza e a desigualdade.

Antes do Plano Real, os bancos lucraram até 3% do PIB criando moeda. Atualmente, mesmo com muito mais serviços, os bancos somados não lucram sequer 1% do PIB.

Os mais pobres deixaram de pagar a conta da irresponsabilidade fiscal e do descontrole gerado pela inflação, ainda que muitos ainda defendam medidas notoriamente inflacionárias em favor de maior crescimento momentâneo.

Nas privatizações, cálculos mirabolantes sobre o preço real da Vale do Rio Doce circulavam livremente, ainda que sem qualquer base.

Olhando para a frente, porém, as discussões ainda em aberto se tornam urgentes. Mas, mais do que isso, elas são obrigatórias. Não há neste momento grandes alternativas ao país que não passem por retomar a confiança no investimento e melhorar o ambiente de negócios.

Temos milhões de desempregados, uma população idosa crescente que demandará mais recursos em saúde, por exemplo, e uma população jovem cuja produtividade é baixa e incapaz de sustentar as demandas da sociedade.

Para reverter isso, precisamos buscar aquilo que falta ao país há pelo menos três décadas.

É preciso discutir uma Reforma Tributária que promova incentivos à produtividade e geração de emprego, sem perdermos tempo com discussões falaciosas sobre imposto novo ou garantias de benefícios a determinados setores.

Não há tempo hábil para impedir uma Reforma Tributária com base em defesas de ideias mirabolantes e falsas. É preciso encontrar um consenso. Do contrário, veremos nos anos 20 a nossa 5ª década sem aumento de produtividade e a 3ª década perdida.

Na mesma medida, precisamos encarar de maneira séria a importância de uma Reforma Administrativa que não alivie a barra para o nosso Judiciário, o mais caro do planeta, ou para a elite do funcionalismo e o Congresso.

Sem propor de fato debates e encarar de maneira objetiva os problemas, continuaremos a ser um país cuja população envelhece sem perspectivas e sua classe política se mantém numa eterna adolescência repleta de idealismos e inconsequência.

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Felippe Hermes Felippe Hermes é jornalista e co-fundador do Spotniks.com

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