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Privatização da Eletrobras é vitória que deveria unir direita e esquerda

A privatização da Eletrobras garante um passo histórico para o país, deixando o Estado-empresário para trás, mudando o foco para o Estado como órgão regulador, uma conquista que deveria ser comemorada pela esquerda e direita
Por  Felippe Hermes
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Importante: os comentários e opiniões contidos neste texto são responsabilidade do autor e não necessariamente refletem a opinião do InfoMoney ou de seus controladores

Proposta pelo físico soviético Nikolai Kardashev, a escala Kardashev se propõe a medir o nível de civilizações a partir de um conceito simples: consumo e geração de energia.

Kardashev era físico. Sua proposta buscava aferir o desenvolvimento da espécie humana, bem como entender os níveis de outras possíveis civilizações interplanetárias.

A despeito da ficção científica envolvida, é notório que o grau de desenvolvimento da humanidade aqui na Terra, possui forte correlação com o avanço da sua capacidade de produzir energia.

A primeira revolução industrial, ainda nos séculos 18 e 19, se deu pela criação das máquinas movidas a carvão, cuja energia suplantava a capacidade artesanal humana.

Por séculos, vivemos uma relação de custos para se produzir energia, que tornou qualquer avanço bastante penoso.

William Nordhaus, economista e professor da universidade de Yale, estimou que a obtenção de 100 Watts de energia nos anos 1800 equivalia a 50 horas de trabalho humano. Nos dias de hoje, o valor equivale a uma fração ridiculamente pequena.

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No Brasil, 100 watts-hora custam, segundo a Aneel, o equivalente a R$ 0,062. Isso significa dizer que uma pessoa que receba salário mínimo por aqui gasta 36 segundos para bancar o que, há dois séculos, custava 50 horas. Ou ainda, segundo Nordhaus, três horas em 1880, quando da invenção da lâmpada elétrica.

Nos acostumamos com a ideia de abundância energética sem dar muita bola pra ela. Mas, como você já deve saber, essa história não é exatamente linear no Brasil.

Por aqui, a chegada da energia elétrica ocorreu aos sobressaltos, adaptada à realidade brasileira do início do século 20: um país essencialmente agrário.

Nosso parque energético contou com tímidos avanços que, em certo momento histórico, se mostraram pouco úteis às ambições brasileiras.

Dentro do nosso conceito de desenvolvimento, buscando forçar a industrialização do país a partir dos anos 1930, a energia se tornou cada vez mais relevante, com o confuso sistema elétrico do país sendo pressionado.

De fato, grandes centros urbanos contavam com geração de energia e distribuição, em boa medida atendida por empresas estrangeiras instaladas por aqui, como a canadense Light (companhia que operava em São Paulo e no Rio de Janeiro, onde o nome ainda é adotado).

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Em 1952, a Eletrobras surgiu com o objetivo de centralizar e impulsionar a geração de energia. Foi um período fértil na criação de estatais, como a Petrobras, em 1953. No caso da estatal do setor elétrico, porém, sua efetivação ocorreu apenas em 1961, no governo João Goulart.

Dentro do conceito de centralismo econômico que dominou o regime militar, a Eletrobras ganhou destaque significativo.

O período militar brasileiro foi responsável por criar 21 das 24 usinas hidrelétricas brasileiras com mais de 1000 MWh. Foi uma época em que preocupações ambientais eram distrações pouco relevantes e na qual seria inimaginável interromper uma obra por causa da descoberta de novas espécies de peixes.

Destruir um monumento da natureza como o Salto de Sete Quedas do Iguaçu, a maior cachoeira do mundo, foi um detalhe irrelevante na construção de Itaipu, por exemplo.

A despeito da tentativa posterior do governo Dilma de retomar grandes obras de hidrelétricas, como Belo Monte, Santo Antônio e Jirau, esse período ficou para trás.

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Assim como o país, a Eletrobras sofreu transformações, em especial nos anos 1990.

Com um mercado de capitais já estabelecido e uma onda de modernização na relação entre Estado e economia, o Brasil encarou uma onda de privatizações.

Neste aspecto, é importante ressaltar que, cerca de 15 anos antes de o Brasil dar essa guinada, a Nova Zelândia, comandada pelo Partido Trabalhista (de viés de esquerda), havia proposto tal abordagem.

Na prática, o que os neozelandeses sugeriram foi a chamada “Nova Gestão Pública” (New Public Management), que substituía a ação direta do Estado na economia por meio de estatais por um viés mais regulatório.

A NPM, na sigla em inglês, foi responsável por amplificar o conceito de agências reguladoras. Em suma, governos ao redor do planeta, sejam de direita ou de esquerda, passaram a se ocupar do papel regulatório e não mais do financiamento direto.

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Esse viés foi adotado por aqui, onde as agências reguladoras foram relativamente bem sucedidas na sua proposta.

A Petrobras, por exemplo, perdeu o monopólio sobre extração e refino de petróleo. O resultado é que, de 1997 a 2008, a produção de petróleo no Brasil saltou de 0,7 milhão para 2 milhões de barris diários.

Na área de energia elétrica, a situação não é diferente.

A agência reguladora que passou a gerir a área ficou encarregada de se ocupar de políticas públicas, como leilões, ou mesmo de fiscalizar ações sociais.

Um bom exemplo é o Luz no Campo, projeto criado em 2000. Inicialmente, o plano era uma parceria entre o Ministério de Minas e Energia e a Eletrobras. Em sua nova versão, já no governo Lula, chamado de Luz para Todos, o programa passou a ser coordenado com o setor privado e distribuidoras locais de energia.

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O Luz Para Todos é uma política pública, financiada por um valor cobrado diretamente na conta de luz de famílias em todo o país, e que direciona recursos para a iluminação de residências na área rural.

Essa é, em essência, a função do estado sob o modelo da New Public Management, adotado pelo Brasil após os anos 1990.

É um modelo bem sucedido, em que o Estado não precisa aportar recursos elevados para financiar estatais, podendo se focar na regulação.

Ainda assim, mesmo após todo o processo de privatizações, a Eletrobras continuou com uma outra função: manter operadoras de energia em regiões menos rentáveis.

A Eletrobras possui um papel relevante na região Norte do país, onde empresas de energia costumam apresentar déficit em suas contas, graças aos elevados índices de perda de energia. Esse será um dos desafios da nova gestão.

O novo comando da Eletrobras também terá que equilibrar as contas, e sem as amarras da gestão pública, conseguir reduzir a ineficiência.

É um papel importante. Afinal, em uma empresa estatal na qual gestores não são punidos por má gestão, o incentivo para buscar soluções inexiste.

Há alguns anos, por exemplo, era comum que engenheiros de subsidiárias da Eletrobras que tivessem prejuízos ganhassem compensações e participação em lucros. Como já foi explorado em reportagens, alguns engenheiros chegavam a ganhar R$ 80 mil mensais.

Para superar os déficits constantes da estatal na última década, algumas mudanças já foram adotadas, o que permitiu à Eletrobras se tornar novamente lucrativa.

Anos de prejuízo, porém, fizeram a Eletrobras se afastar de leilões para investimentos.

A expectativa é que o novo gestor privado possa fazer a empresa voltar a investir. Agora saneada, a Eletrobras volta a contribuir para a segurança energética brasileira.

Por fim, cabe ressaltar que a Câmara passou junto da privatização inúmeros “jabutis”, ou custos que serão repassados a nova gestão da Eletrobras e, consequentemente, a conta de luz.

Estima-se que esses custos serão de R$ 84 bilhões nos próximos 20 anos.

Ainda assim, como o modelo de agências reguladoras prevê, a empresa não poderá elevar tarifas, exceto se for autorizada.

A empresa de energia é, em resumo, uma concessionária de serviço público, devendo reportar ao órgão regulador metas de cumprimento de contrato.

Não há qualquer previsão de que a Eletrobras decida arbitrariamente elevar preços, como é comum se imaginar em privatizações.

A nova gestão terá, como qualquer empresa privada, que se submeter à regulação pública. Cabe, portanto, cobrar ação do governo em fiscalizar.

Enfim, a privatização da Eletrobras é um momento histórico, em que o governo passa a atuar fiscalizando o setor produtivo em vez de competir com ele.

 

 

 

 

 

 

Felippe Hermes Felippe Hermes é jornalista e co-fundador do Spotniks.com

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