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De onde nascem os juros altos

O debate em torno do marco regulatório de garantias suscitou novamente uma discussão sobre um problema brasileiro: os juros altos
Por  Felippe Hermes -
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Importante: os comentários e opiniões contidos neste texto são responsabilidade do autor e não necessariamente refletem a opinião do InfoMoney ou de seus controladores

Supondo que você receba neste momento R$ 1.000, quanto você precisaria ter de compensação para não gastar nada hoje, mas sim daqui um ano?

A simples ideia de que essa pergunta pode ser feita foi um tabu ao longo da maior parte da história humana.

Se a sua resposta é que você estaria contente em entregar esses R$ 1.000 para alguém consumir hoje em troca de receber R$ 1.100 daqui a um ano, a depender do momento histórico isso poderia implicar que você está cometendo um pecado, o da usura.

Para as três maiores religiões ocidentais (o catolicismo, judaísmo e islamismo), a ideia de que o dinheiro é um produto cujo preço (que recebe o nome de “juros”) varia no tempo é considerada uma violação ética.

Para os judeus, é imoral emprestar dinheiro a outro judeu e cobrar por isso. Para os cristãos e muçulmanos, idem.

Mas, como toda regra, mesmo as morais, há exceções.

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Para os judeus, não há imoralidade em cobrar juros ao emprestar para um não judeu, motivo pelo qual, sendo um povo historicamente marginalizado, muitos judeus se tornaram famosos por se especializar na arte bancária, uma prática considerada menor na Europa cristã.

Para os muçulmanos, a regra ainda é válida hoje, com os juros sendo proibidos, o que leva os bancos locais a se tornarem sócios dos empreendimentos que tomam crédito. O retorno existe, mas não em formato de juros.

Cristãos também adotaram atalhos a regra, como a prática de cobrar tarifas para conversão de moedas. Em resumo: você pega um empréstimo com a moeda local da Florença dos Médici e, ao repagar, não irá desembolsar juros, mas paga para converter na moeda da sua cidade ou para usar os serviços do banco.

No Brasil, já adotamos uma lei similar, o decreto 22.626, de 7 de abril de 1933, a chamada “Lei da Usura”.

Durante a ditadura Vargas e pelas décadas seguintes, o Brasil conviveu com a proibição formal de emprestar dinheiro a juros maiores do que 12% ao ano.

O problema? Cobrar 12% ao ano em um país com histórico de inflação elevada não é exatamente um bom negócio. Assim, em meio a inflação de 40% ao ano, o mercado de capitais praticamente inexistia.

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A consequência mais óbvia era aquela referente à dívida pública. Impossibilitado de emitir dívida e pegar recursos privados para se financiar, o governo imprimia dinheiro, o que, sem surpresa, aumentava a inflação.

Essa prática perdurou por algumas décadas, ao menos até a criação do Banco Central em 1964 e a implantação de reformas que, na prática, inutilizaram a Lei da Usura.

Foi Roberto Campos, o avô do atual presidente do Banco Central, quem liderou as reformas nos anos 1960, que levaram o país a enfim contar com um sistema financeiro capaz de unir poupadores e tomadores de crédito.

O resultado foi positivo, ampliando crédito, financiando a industrialização do país e uma mudança demográfica de um Brasil que deixava de ser rural.

Um novo problema, porém, surgiu por esse período: os juros altos.

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Deixamos de ser um país onde não existia crédito para nos termos um país onde ele existe, mas custa caro.

Trata-se de uma questão que ainda temos de resolver, apesar de a situação estar muito melhor do que há algumas décadas.

Nesse meio tempo, tivemos a criação de uma moeda estável (ou quase), fazendo com que os bancos se tornassem, enfim, casas de crédito.

Isso pois, até 1994, a despeito de emprestarem dinheiro, o principal negócio dos bancos continuou sendo criar dinheiro.

Em 1993, por exemplo, governo e bancos lucraram 6% do PIB com a criação de dinheiro. A parte dos bancos (cerca de 3%), seria o equivalente hoje a R$ 260 bilhões.

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Em suma, até a criação do Real, os bancos lucraram duas vezes mais do que hoje, excluindo o lucro oriundo dos serviços de empréstimo.

Mas voltemos aos problemas atuais. O crédito se tornou uma realidade para inúmeros brasileiros e a razoabilidade deste crédito um problema.

Temos alguns dos juros mais altos do mundo, além dos bancos mais rentáveis do mundo.

E, ao contrário do que possa parecer, esses não são problemas tão correlacionados, mas sim questões que surgem de uma origem comum.

Na prática, o custo do dinheiro (os tais juros), possuem quatro custos:

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A inadimplência (cerca de 32%), lucros (28%), os impostos (22%) e os custos do banco propriamente, como os administrativos (16%).

(Nota: há outros custos como compulsório, subsídios etc., que compõem os 2% restantes).

É seguro dizer que a concentração bancária, ou a ausência de concorrência, tenha papel fundamental na elevada taxa de lucro dos bancos e nos elevados juros. Por aqui, os cinco maiores bancos concentram até 75% dos depósitos, número que caiu levemente após a onda de criação de fintechs.

Essa concentração ocorre em função da regulação. Abrir um banco é uma tarefa difícil e repleta de exigências (justamente por isso se criou uma legislação que favorece fintechs).

Para além disso, a dificuldade em recuperar crédito tem sido endêmica por aqui.

Até o início dos anos 2000, os bancos brasileiros recuperavam apenas R$ 2 de cada R$ 100 em calotes.

O resultado é que os R$ 98 eram cobrados de todos os demais tomadores de crédito.

Após reformas em 2004, passamos a ter uma taxa de 16% de recuperação. Ainda longe de Argentina (25%), México (60%), EUA (70%), países europeus (75%) ou Japão (80%).

No caso dessa última reforma, as garantias em crédito imobiliário foram ampliadas, o que, por sua vez, levou a um aumento do crédito no setor de 1,5% para 10% do PIB (ainda longe de países ricos, onde a taxa chega a 60% do PIB).

Neste momento, discutimos uma nova reforma sobre garantias. A polêmica da vez é a ideia de que uma pessoa que queira um empréstimo possa utilizar seu imóvel único (onde reside) como garantia.

Segundo o Banco Central, empréstimos pessoais possuem, em média, juros de 6,7% contra juros de 0,8% + IPCA naqueles com garantia.

As vantagens para o tomador de crédito são imensas e, para os bancos, significa maior garantia de que o empréstimo será honrado.

Em suma, bom para ambos, exceto para alguns políticos.

Na prática, o que os políticos dizem ao negar essa possibilidade, é que uma pessoa que possui um imóvel de R$ 250 mil (o mínimo aceitado pelos bancos) não possui condições de julgar o risco por si mesma.

Tal paternalismo, com o governo tratando os cidadãos como incapazes de tomar decisões racionais, é uma questão cultural brasileira e um dos tantos desafios do país.

A reforma, aprovada pela Câmara, é bem-vinda ao dar maior autonomia aos adultos envolvidos em uma operação de crédito, assim como foi bem-vinda e bem sucedida a reforma de 2004.

Para um país onde metade da população sobrevive com menos de meio salário mínimo por mês, tratar alguém que possua um patrimônio de ¼ de milhão de reais como um pobre incapaz é um insulto.

A medida não ataca todos os problemas do setor bancário (como nenhuma medida individual poderia atacar). Mas ela segue um rito importante ao atacar um dos problemas.

O maior desafio, e aquele pelo qual devemos continuar batalhando, está na concorrência.

Se você não gosta de bancos (algo que se espera de qualquer pessoa que não seja um banqueiro), o caminho mais plausível é buscar fazer com que os bancos briguem entre si.

A concorrência é uma arma poderosa e muito mais segura do que entregar poder aos políticos para reduzir custos e aumentar a riqueza no país.

Felippe Hermes Felippe Hermes é jornalista e co-fundador do Spotniks.com

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