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Caos planejado

A inflação medida pelo IPCA-15 atingiu 9,3% em 12 meses, mais do que o dobro da meta do Banco Central. Para o governo, há fatores positivos: a arrecadação de impostos cresceu 26%. É a síntese do caos planejado na economia brasileira
Por  Felippe Hermes -
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Importante: os comentários e opiniões contidos neste texto são responsabilidade do autor e não necessariamente refletem a opinião do InfoMoney ou de seus controladores

Em 1660, Sir William Petty realizou seu conhecido censo estatístico sobre a renda nacional na Irlanda. Petty estimou que, nessa data, os 6 milhões de irlandeses eram donos de propriedades equivalentes a £ 235 milhões, que garantiam uma renda de £ 40 milhões anuais.

Esse foi o primeiro cálculo que algum economista se aventurou a fazer daquilo que hoje conhecemos como PIB. O motivo de Petty, entretanto, estava longe de apenas contribuir com a ciência econômica.

O objetivo para medir a renda dos irlandeses era apenas um: saber o quanto o rei inglês poderia cobrar em impostos.

Levaria ao menos três séculos para que a economia começasse a incorporar o conceito de renda nacional, PIB e outros números agregados.

Em 1930, Simon Kuznets, prêmio Nobel de Economia, proporia modelos para realizar medições do tipo, desta vez com um objetivo mais claro: entender por que o mundo estava em uma depressão, no caso, a Crise de 1929.

Fato é que, ao longo destes três séculos, com um árduo trabalho dos economistas, governos aprenderam não apenas como se utilizar dos dados para tributar e manter suas tropas, como William III na Inglaterra, como também para manipular os dados e promover ajustes que julguem necessários, ou úteis.

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Munidos de um crescente arsenal de estatísticas, políticos ao redor do planeta ampliaram desde então o uso de truques para brincar com as variáveis. Afinal, se a renda nacional e outros indicadores econômicos podem ser postos em uma conta, isso significa que alterar as variáveis mudaria o resultado, certo?

A resposta para essa pergunta é, como quase tudo na economia, um grande: “depende”. Neste caso em específico, é um “depende do tamanho da arrogância do planejador em acreditar que conseguirá manipular a economia”.

Mas pulando esse detalhe, há inúmeros exemplos históricos de truques que, se você me permite, gostaria de comentar antes de citar aquele que está sendo aplicado no Brasil.

Nos anos 1940, por exemplo, o neozelandês William Philips desenvolveu uma máquina gigantesca, movida a tubulações e uso de hidráulica para realizar cálculos econômicos (você pode conhecer aqui o ‘Moniac‘)

De posse dessa máquina, Philips estimou uma maneira de medir como as variáveis conversavam entre si, concluindo, dentre outras questões, que um aumento no desemprego diminuiria a inflação, e vice versa.

A tática de Philips ajudou a alterar economias ao redor do planeta, pelo menos até 1970, quando conhecemos a “estagflação”, em suma, desemprego e inflação elevados ao mesmo tempo.

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Em outro exemplo clássico de truque, os “tax holidays” (ou “feriados de impostos”) foram instituídos nos Estados Unidos em 1996.

A ideia era que, ao menos uma vez no ano, os governos não cobrariam impostos sobre as vendas. Com isso, se esperava, as vendas aumentariam significativamente, aquecendo a economia.

No Brasil, usamos bastante esse truque no início da década, quando retiramos temporariamente o IPI de carros e eletrodomésticos.

O problema (ou os problemas, no caso brasileiro) foram evidentes. O primeiro é que, por dar um gás na economia, o governo brasileiro ficou viciado na prática. Retiramos impostos de maneira que isso se tornou quase banal, perdendo o efeito de urgência em comprar e aproveitar a promoção.

O segundo é um tanto quanto óbvio. As pessoas, seja nos EUA ou no Brasil, desviaram sua curva de consumo, ou fora do economês: deixaram de gastar em outras datas para gastar quando estivesse na data sem impostos.

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Na prática, não houve aumento de consumo e nem nada significativo. Apenas manipulação momentânea.

Um terceiro (e último, prometo) exemplo desses truques é o chamado “trickledown”, bastante comum nos Estados Unidos e por vezes defendido no Brasil.

Em uma tradução simples, trickledown significa “gotejar”. Na prática, é a crença de que diminuir impostos dos mais ricos fará com que o dinheiro irrigue a economia.

No papel, ricos gastam menos da sua renda e, por isso, boa parte dela acaba virando investimento e poupança, beneficiando a sociedade.

Na prática, a medida defendida por Ronald Reagan se tornou uma “ideia zumbi”, como definem Braynard Peters e Maximilian Nagel em sua coletânea de ideias do tipo. Trata-se de algo que não apresenta resultados, mas sobrevive como mito comum.

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Políticas que beneficiam a base da população, como o Bolsa Família, uma ideia oriunda do “imposto de renda negativo”, criado pela britânica Juliet Willians, e popularizada por Milton Friedman, se mostram muito mais eficazes do que essa suposta distribuição do “topo para a base”.

No Brasil, infelizmente, esse tipo de ideia ainda é bastante bem vista, sob o nome de “subsídios”. Inúmeros políticos se unem para defender que dar dinheiro para empresas bilionárias de bebidas, por exemplo, é uma maneira de gerar progresso na Amazônia. Pelo restante do país, a ideia também persiste.

E o que o Brasil de hoje tem a ver com esses truques?

Durante os anos 1960, o economista italiano Vito Tanzi emprestou seu nome a um efeito econômico.

Em poucas palavras, o Efeito Tanzi diz que, em uma economia com alta inflação, a distância entre o fato gerador e o pagamento de tributos faz com que a arrecadação pública caia.

Significa dizer que se eu vendi um sapato no dia 1º, mas pago meus impostos no dia 10, e a economia está com taxas de inflação elevadas, ao chegar no dia de pagar impostos, o valor correspondente valerá menos do que na data em que vendi.

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Esse efeito ajuda a explicar uma confusão generalizada no orçamento público em países em hiperinflação. Mas ele também deu origem a outro, menos utilizado, o chamado “Efeito Tanzi às avessas”.

É algo relativamente incomum, mas que tem se tornado uma prática no Brasil atual.

Com a inflação brasileira chegando a 8% em 12 meses até junho, o governo brasileiro terá uma boa margem de folga em 2022, uma vez que o teto de gastos corrige o limite possível de ser despendido pela inflação.

Com relação aos gastos, porém, a ideia é que eles sejam corrigidos por um índice menor, uma vez que a inflação tende a arrefecer neste segundo semestre.

Sim. Eu sei que é confuso, mas deixe-me dar um exemplo!

Para o orçamento de 2022, a previsão é de que o governo possa gastar até 8% mais.

Já para o salário mínimo, que será corrigido pela inflação total de 2021, e não apenas até junho, a previsão é a de que a correção fique em 6-7%.

Pode parecer pouco, mas lembre-se que cada 1% gasto na Previdência equivale a algo em torno de R$ 6 bilhões.

Pior ainda, a inflação é desigual sob diversos grupos.

A alimentação registra alta de 13% no ano. Como famílias pobres gastam mais em alimentação do que as de classe média, que consomem serviços como saúde e educação (em alta de 1 e 2%, respectivamente), o peso sobre os mais pobres é bem mais elevado.

Ao contrário da ideia de Tanzi, a inflação está ajudando o governo a fechar as contas.

Não por coincidência, a previsão de déficit público para este ano já caiu de R$ 280 bilhões para R$ 180 bilhões.

Cabe lembrar também que o índice de inflação é uma cesta de produtos que atribui pesos a cada item de consumo, como alimentação, energia, vestiário etc. Os preços na economia estão crescendo ainda mais rápido do que o índice de inflação oficial.

Isso permite uma melhora significativa no endividamento do governo.

Um outro fator, entretanto, deve ser destacado.

Sob o apoio do Ministério da Economia, o Banco Central brasileiro levou o país a juros de 4% ao ano, menores do que os da Suíça (juros reais, descontando a Selic da inflação).

Isso permite uma folga significativa na dívida pública, mas aumenta a pressão inflacionária.

Em um momento no qual o mundo vive uma disfunção de suas cadeias de produção, e uma pressão pelo aumento de oferta de dinheiro, a ideia de que o Brasil possa descuidar da sua própria inflação sob a justificativa de que “no mundo inteiro isto é um problema” (não é), é algo extremamente arriscado de se fazer.

O risco, no caso, está em nosso histórico inflacionário e na instabilidade política.

Não podemos nos dar ao luxo de descuidar, ou achar que uma melhoria na contabilidade pública compense as necessidades que boa parte da população enfrenta hoje.

Quando implementamos o teto de gastos em 2017, a lógica era de que o ajuste seria feito em 10 anos, evitando o caos que Portugal e Grécia viveram ao promover cortes de gastos severos em um curto espaço de tempo.

Neste momento, temos avançado no ajuste (o que é bom a longo prazo), mas se descuidando da situação no presente.

É uma escolha perigosa. Afinal, por mais que estejam em planilhas, os números devem representar pessoas no fim.

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Felippe Hermes Felippe Hermes é jornalista e co-fundador do Spotniks.com

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