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Após 62 anos, Cuba faz sua mais profunda reforma, mas nada que envolva democracia

Décadas depois da revolução, Cuba empreende o mais duro ajuste desde então. A reforma monetária conhecida como "Dia 0", é mais uma tentativa de tirar a economia do país da ineficiência produtiva
Por  Felippe Hermes -
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Importante: os comentários e opiniões contidos neste texto são responsabilidade do autor e não necessariamente refletem a opinião do InfoMoney ou de seus controladores

Foi em 1º de janeiro de 1959, em meio às comemorações de ano novo, que o ditador Fulgêncio Batista e Michael Corleone fugiram da ilha de Cuba, em um ato que marcaria a vitória da revolução liderada por Fidel Castro.

Michael, assim como o clássico Poderoso Chefão II, retratam simbolicamente a relação de proximidade entre os Estados Unidos e Cuba.

Ele também está presente na icônica entrega do telefone de ouro, dado de presente pela gigante americana AT&T.

A despeito disso, foi Fulgêncio, e não Fidel, quem pela primeira vez rompeu a relação entre os dois países historicamente ligados.

Presente no processo de independência do país caribenho, os Estados Unidos mantiveram por décadas um acordo formal que garantia a independência de Cuba, mas com garantias de que os EUA poderiam formalmente invadir o país e garantir a sua “independência”, a Emenda Platt.

Como o próprio filme relata, Cuba tornou-se um protetorado americano, e uma espécie de “Las Vegas”, antes de a capital do entretenimento em Nevada se tornar o que é hoje.

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Quando a revolução tomou rumo, porém, Fulgêncio já estava sofrendo boicotes por parte dos Estados Unidos, que em 1958 impuseram um embargo militar ao país.

Ter derrubado o ditador, portanto, não foi o que criou as desavenças entre Fidel e os EUA. De fato, em abril de 1959, o então general, comandante das forças armadas e um dos três líderes do novo governo moderado, foi aos Estados Unidos em busca de apoio ao seu projeto de revolução.

Castro foi recebido com honras em Nova York nesta primeira visita após 1959. Recebeu a chave da cidade, deu coletivas para mais de 1500 jornalistas, e fez ali um icônico discurso no Central Park que reuniria 35 mil pessoas.

Não era a primeira vez que o então líder revolucionário visitava a cidade, e não seria a última. Em 1948, foi em Nova York que Fidel passou sua lua de mel, e em 1955, já exilado, instalou por lá um escritório para planejar a revolução.

Na sua visita mais conhecida, porém, em setembro de 1960 na conferência da ONU, a situação em relação aos EUA havia mudado radicalmente.

O fim da nova lua de mel de Fidel em Nova York começa com a reforma agrária, promovida em Maio de 1959. Por um decreto cubano, estrangeiros ficavam proibidos de deter terras no país, o que resultou na expropriação de empresas americanas.

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Junto dos fuzilamentos de opositores e do agravamento da revolução, a medida levou a um perda de popularidade do novo regime aos olhos dos americanos. Como consequência, Eisenhower iniciaria um embargo ao açúcar cubano.

Sem ter seu principal parceiro econômico comprando o seu produto mais vendido, Cuba recorreu a União Soviética, da qual, estima-se que tenha recebido US$ 100 milhões, além da garantia de compra de açúcar e direito de compra do petróleo soviético a preços menores.

As refinarias americanas em Cuba, porém, se recusaram a refinar o petróleo soviético, o que levaria Cuba a nacionalizar as empresas, aumentando as tensões entre ambos os países.

Neste cenário de tensões elevadas, Fidel discursaria na ONU, em Nova York, por 4h e 29 minutos, reafirmando uma posição “anti imperialista”. Em sua visita porém, o ponto mais relevante foi seu encontro com Nikita Krushov, o líder soviético que expusera ao mundo os crimes de Stalin, e que dois anos mais tarde protagonizaria a crise dos mísseis.

Antes da crise com a instalação de mísseis capazes de atingir os Estados Unidos da ilha cubana, a CIA promoveria sua até então mais vexatória e humilhante operação, quando em abril de 1961 promoveu uma fracassada tentativa de golpe por meio da invasão de Cuba por exilados.

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Pode-se dizer que, nos anos seguintes, Cuba se tornaria dependente das relações com a União Soviética e, principalmente, do seu poderio econômico. Mas o fato é que a pequena ilha do Caribe foi, por todo o século 20, um país dependente, ora politicamente, oora economicamente, das nações dominantes.

Se antes, a grande questão era a influência americana, após a revolução, Cuba tornou-se um país dependente da União Soviética para garantir produtos básicos aos seus cidadãos.

Com o colapso do sistema soviético portanto, Cuba foi fortemente afetada. Entre 1990 e 1994, as exportações cubanas caíram 80%, as importações tiveram queda de 73% e o PIB desabou 36%.

Sem seu principal parceiro comercial, Cuba ficou completamente isolada, tendo de lidar com um embargo americano ainda vigente (e nunca completamente extinto).

Cabe ressaltar que o embargo americano não tem qualquer ligação com as violações aos direitos humanos, como os fuzilamentos que Che Guevara se orgulhava na ONU, ou campos de trabalho forçado para minorias. Trata-se de um embargo puramente por razões econômicas.

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Ainda hoje os Estados Unidos mantêm relações comerciais com ditaduras (como a Arábia Saudita ou a China) e, mesmo durante a Guerra Fria, promoveram certo comércio com o bloco soviético.

Em um dos casos mais emblemáticos, a Pepsi tornou-se um fenômeno na União Soviética, mas as dificuldades de conversão cambial promoveram casos curiosos, como a troca de refrigerante por vodka, e posteriormente, dado que os americanos não consumiam tanta vodka quanto os russos bebiam refrigerante, o uso de navios e submarinos soviéticos como moeda de troca.

Por um breve período na década de 70 a Pepsi chegou a ser a 8ª maior força naval do planeta, levando o presidente da empresa a provocar o presidente norte-americano ao dizer que “a Pepsi está desarmando os soviéticos mais rápido do que o governo dos Estados Unidos”.

De volta a ilha caribenha, os anos 90 marcaram um processo de imensas mudanças. O país começou a promover negócios privados, que ao final da década já empregavam 25% do país.

Em 2000, o governo Clinton reduziu as barreiras, permitindo que Cuba comprasse alimentos e produtos básicos, cujas importações saltaram de US$ 4 milhões em 2000 para US$ 242 milhões em 2007.

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A ascensão do Chavismo na Venezuela, porém, daria uma diminuída nas reformas.

Mais uma vez, Cuba se tornaria um exportador de ideologias que tanto alimentam o imaginário dos jovens latino americanos como “experiência transformadora”.

A Venezuela passou a subsidiar a ilha dos Castro que, por sua vez, promoveu acordos com outros países, como Rússia, China e Brasil.

Da nossa parte, mandamos pra lá equipamentos e engenheiros para construir um porto e usinas de açúcar, que contavam com a Odebrecht como sócia.

De 2014 para cá, porém, Cuba tem passado por uma série de transformações.  Barack Obama por exemplo, promoveu uma reaproximação com o governo americano ao visitar a ilha naquele ano.

Empreendimentos privados voltaram a ser incentivados e, neste momento, agora em 2021, a ilha vê a sua mais relevante reforma desde então.

O dia 0 na economia cubana

 O chamado “período especial”, que vigorou entre 1990 e 2005, mudou radicalmente a economia cubana. A abertura para empresas estrangeiras e autorização de negócios privados permitiu uma entrada de dólares na economia, e atenuou a crise com o fim da União Soviética.

As reformas, entretanto, promoveram um novo problema: uma divisão profunda na sociedade cubana entre aqueles que detinham dólares, como os trabalhadores de hotéis e táxis que atendiam estrangeiros, e os demais habitantes do país.

Desde 2015 porém, na esteira da volta das reformas, Cuba planeja o chamado “Dia Zero”, sua mais efetiva reforma desde então.

A ideia é atacar diretamente a ineficiência produtiva e unificar a moeda.

Conforme anunciado em dezembro de 2020, a moeda cubana foi unificada em 1 de janeiro deste ano em uma taxa de câmbio fixa.

A consequência principal deve ser, no curto prazo, uma desvalorização brutal do poder de compra da população, um processo similar ao que Portugal promoveu com a crise de 2008 (distinto no fato de que Portugal não possui autonomia sobre sua moeda e realizou uma depreciação interna por meio fiscal).

O governo cubano deve ainda cortar subsídios diretos que, em 2018, representaram 0,8% do PIB do país, contra 2% em 1980 (para efeito de comparação o Brasil gasta 4,5% do PIB com subsídios), cortes de pensões e aumentos de preços em serviços como energia.

Como, afinal, tudo isso pode ser positivo? A ideia do governo cubano é que, ao criar uma taxa de câmbio única, o país atraia com mais facilidade investimentos estrangeiros, principalmente no setor de turismo, o mais relevante da economia cubana e mais duramente afetado durante a pandemia.

Para além disso, a expectativa é de que a nova moeda única possa ajudar a ampliar exportações e reduzir importações.

No ponto central, porém, Cuba espera reduzir drasticamente sua má alocação de capital, em especial o capital humano.

No país que se orgulha da formação acadêmica ampla, as condições de trabalho afastam os trabalhadores qualificados de empregos que sejam mais produtivos.

O anseio pelas mudanças é justificável, em especial após uma crise como a atual. A capacidade de implementá-las porém parece bastante difícil, também por conta da crise atual.

Cuba pode estar entrando em uma nova crise humanitária para buscar um aumento futuro de produtividade, sem neste meio termo fazer uma lição de casa em outras áreas.

O país ainda é investidor, junto de estrangeiros, em ao menos 300 hotéis.

Promover cortes de pensões e gastos diretos em áreas sociais logo após o choque de uma pandemia certamente não criará um efeito positivo no curto prazo, colocando em risco o ajuste que Cuba precisa fazer no longo prazo.

Em suma, a busca por um equilíbrio entre o regime socialista e as economias de mercado é uma tentativa do governo cubano, que tenta acima de tudo evitar experiências como a da própria União Soviética, cuja dissolução levou a um processo repleto de corrupção e um caos econômico e social.

Se Cuba conseguirá reformar e se aproximar diplomaticamente e economicamente dos países da região, é ainda uma incógnita, mas o certo é que o país tem dado bons passos para isso. Isso, claro, em nada implica em uma Cuba democrática e pós-revolução. Neste sentido não há, como nunca houve, qualquer indício.

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Felippe Hermes Felippe Hermes é jornalista e co-fundador do Spotniks.com

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