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A alta do dólar no Brasil é um alerta de que a Argentina fica logo ali

Brasil e Argentina trilharam caminhos opostos após suas crises cambiais nos anos 1990. O resultado das reformas e o forte controle dos gastos fizeram a inflação e os juros caírem. Precisamos aprender com nossos acertos para não repetir os erros
Por  Felippe Hermes -
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Importante: os comentários e opiniões contidos neste texto são responsabilidade do autor e não necessariamente refletem a opinião do InfoMoney ou de seus controladores

Em 2011, o repórter argentino Daniel Iglesias, do programa CQC, desembarcou em São Paulo para gravar uma matéria inusitada. Na Avenida Paulista, Iglesias perguntou aos paulistanos qual era cotação do dólar. O resultado? Praticamente ninguém sabia responder.

De volta a Buenos Aires, a mesma pergunta foi feita aos portenhos, que tinham a cotação na ponta da língua. No comércio local, os vendedores não apenas sabiam a cotação, como aceitavam ser pagos em dólar. Algo estranho por aqui, quando o repórter tentou fazer o mesmo.

A moral da história, como você já deve ter imaginado, é que a relação de ambos os países com a moeda norte-americana é bastante diferente. Como diz uma antiga piada (sem graça, eu sei): o peso é a moeda do governo argentino, mas o dólar é a moeda dos argentinos.

As razões para isso não chegam a espantar. Como o Brasil ou o México, a Argentina foi um país dependente do dólar durante boa parte do século 20. Com uma economia baseada na exportação de commodities como soja, trigo e carne, o país necessitava de dólares para manter sua economia girando e comprar bens do exterior.

Mas essa relação nunca foi fácil. Afinal, os preços destas commodities não são definidos por quem as produz, o que torna esses países mais vulneráveis.

Bastou, por exemplo, que o Banco Central americano aumentasse sua taxa de juros para conter a inflação no início da década de 1980, para que um efeito dominó se desencadeasse sobre a América Latina.

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Com crescimento quase nulo, inflação galopante e calotes na dívida, os países da região, o Brasil entre eles, passaram anos tentando se reorganizar economicamente.

Em 1992, dois anos antes de o Brasil lançar seu Plano Real, os argentinos tiveram seu projeto econômico bem sucedido, o Plano Cavallo, que leva o nome de seu criador, o então ministro da economia Domingo Cavallo.

O plano fez os órgãos internacionais, como FMI, tratarem a Argentina como a queridinha da região. Enquanto o Brasil definhava com os Planos Collor 1 e 2, e lutava para sair das cordas, os argentinos organizaram a casa.

Um peso passou a valer um dólar, tal como ocorreria aqui. A razão para isso é que, ao criar uma conversibilidade, a inflação no país tende a diminuir, por se alinhar à inflação americana e aos preços internacionais.

O problema, é claro, é que a Argentina, como o Brasil, não imprime dólares. Isso torna o país bastante vulnerável a choques externos. Se você ainda se lembra, nos anos 1990 esses choques foram muitos, e vindos de todos os cantos.

Em 1995, uma crise abalou o México, criando o “Efeito Tequila”. Em 1997 e 1998, foi a vez das cruzes na Rússia e nos países asiáticos. E, em 1999, a crise brasileira.

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É aí que o caminho dos dois países começa a se separar.

Apesar de o Brasil ter implementado o Plano Real cerca de dois anos depois do plano argentino, nossa crise chegou cerca de dois anos antes do que a de nossos vizinhos.

O caminho que tomamos dali em diante é parte razoável da explicação sobre o porquê de as pessoas entrevistadas pelo repórter do CQC argentino não saberem, ou até mesmo não se importarem com a cotação do dólar.

Em 1999, o Brasil implementaria o chamado Tripé Macroeconômico. Uma política, que como o nome já indica, consiste em três princípios: câmbio flutuante e controlado por oferta e demanda; superávit primário (economia de dinheiro do orçamento para pagar os juros da dívida e mantê-la sob controle); e metas de inflação.

O Banco Central brasileiro passou a determinar um limite aceitável para a inflação. Para fazer isso, mantinha os juros altos.

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Essa nova política econômica brasileira foi duramente criticada por quem achava que os juros básicos nas alturas drenavam recursos que poderiam ser alocados em investimentos. Isso, de fato, é verdade. Mas a ideia era que, quando as três metas estivessem alinhadas, os juros cairiam de maneira racional.

E foi o que ocorreu. Durante o governo Lula, que passou de crítico ferrenho a um dos presidentes que mais a seguiu, os juros caíram de 23% para 13%, com a inflação sob controle (apesar de, em dado momento, o governo petista ter sido mais tolerante com a inflação).

Para complementar (e premiar o rigor brasileiro), o ano de 2001, quando Argentina entraria em crise, foi também marcou a entrada da China na Organização Mundial do Comércio (OMC), promovendo inúmeros acordos comerciais que a levariam para o posto de grande parceiro comercial de boa parte das economias da América Latina.

A enxurrada de dólares que fluiu para os países emergentes, como Brasil e Argentina, durante os anos 2000, fez a cotação da moeda se manter relativamente baixa. Por aqui, os dólares extras foram massivamente utilizados para converter a dívida externa em interna. Emitimos títulos em reais, e deixamos de dever em dólares.

Os argentinos, porém, continuam com sua dívida em dólar.

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O motivo para isso é a visão de longo prazo. No Brasil, os juros estavam mais altos, o que dá ao investidor estrangeiro um prêmio substancial para comprar dívidas em reais. Na Argentina, os juros reais (quando você desconta a inflação) seguiram baixos, ou até mesmo negativos.

Nos anos 2000, os argentinos viram sua economia crescer a taxas de até 8% ao ano, e seguiram empolgados com esse cenário. Foram não apenas lenientes com a inflação, como deliberadamente mascararam o índice.

O governo de Néstor Kirchner iniciou um processo de intervenção no instituto de dados que aufere a inflação, forçando a divulgação de números mais baixos do que os reais.

Mas, afinal, o que isso tudo tem a ver com a cotação atual do dólar?

Como você já deve ter percebido, o rigor com que tratamos o orçamento durante esse período foi fundamental para garantir que a cotação da moeda americana continuasse baixa e os juros pudessem cair.

Porém, isso não ocorre no Brasil desde 2004. Mas os efeitos não chegam a ser tão devastadores quanto no país vizinho.

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Tivemos uma inflação maquiada, ainda que ela nunca tenha saído da meta, com exceção de um ano (2015).

O resultado é que nossa taxa de câmbio oscilou entre R$ 1,80 e R$ 3,50.

Ficamos assustados quando a crise política levou o câmbio para R$ 4,00 em janeiro de 2016. Mais assustados até do que estamos hoje, com o dólar valendo R$ 5,60.

Desde janeiro deste ano, entretanto, o dólar já saiu de R$ 4,02 para R$5,60, chegando a atingir os R$ 5,90. O que exatamente está acontecendo?

Uma das razões óbvias é o chamado carry trade, um termo técnico para a seguinte situação: se um investidor estrangeiro capta dinheiro lá fora, a juros de 1% ao ano, para investir no Brasil, significa que ele espera receber aqui 1% mais um prêmio que compense o risco do país.

Ocorre que nossa taxa de juros está próxima de zero. Afinal, ela é praticamente igual à inflação. Ainda que ele capte dinheiro a custo zero, não teria qualquer ganho significativo colocando recursos aqui.

A pergunta é simples: você emprestaria dinheiro a um governo que há seis anos não consegue pagar as próprias despesas? A resposta também é simples: não.

Investidores estrangeiros já retiraram R$ 88 bilhões do Brasil neste ano, levando a uma alta expressiva na cotação da moeda americana.

No caso argentino, a situação é ainda mais dramática. O peso saiu de AR$ 4,3, em 2011, para AR$ 145, neste ano, com a inflação galopante.

Mesmo com juros absurdamente altos, como os 43% em 2019, foram incapazes de atrair dólares para a Argetnina. Afinal, se a inflação está em 47% e os juros em 43%, você está perdendo dinheiro ao fazer um empréstimo ao governo argentino.

Sem conseguir se financiar internamente, e com acesso escasso aos dólares, os argentinos apelaram para o financiamento do governo via Banco Central, o popular “imprimir dinheiro”.

No Brasil, a prática é proibida. Faz parte das nossas reformas lá de 1999, ou mais precisamente, de 2001, quando a Lei de Responsabilidade Fiscal proibiu o governo de financiar seus gastos com dívida.

O que pode ocorrer com o Brasil neste cenário? Com juros tão baixos, a capacidade do governo de se financiar internamente é cada vez menor. A curva de juros longos, aqueles que se espera receber em 2026 por exemplo, já aponta para 6-7%.

Na prática, o caminho mais lógico para o Brasil é aumentar os juros, contendo a inflação e garantindo uma continuidade no financiamento da dívida, sem que a moeda brasileira entre em uma espiral negativa.

Porém, há um outro fator relevante neste momento. Nossa dívida está se elevando muito rapidamente, em função dos gastos para apoiar famílias e empresas durante a pandemia.
Há a expectativa de que ela chegue a 100% do PIB em um ou dois anos.

Considerando que nossa poupança é baixa, assim como nosso estoque de riqueza, isso significa que teremos de desviar recursos de investimentos do setor privado para garantir a dívida.

A experiência de 1999 nos mostra que esse caminho é apenas parte daquilo que terá de ser feito. O mais relevante será garantir que a dívida e os juros possam cair novamente de maneira organizada.

Sem cuidarmos de reformas que organizem as contas públicas, dêem previsibilidade aos custos do governo e criem um caminho para colocar ordem na casa, as coisas podem sair de controle muito facilmente.

A razão para ainda estarem sob algum controle encontra-se justamente em uma destas reformas, aprovada em 2017: o teto de gastos.

O teto garante previsibilidade no jogo. Cria uma âncora para as expectativas sobre o futuro de juros, dívida/PIB e outros indicadores fundamentais para basear os investimentos e o crescimento do país.

Não é coincidência, portanto, que o câmbio e os juros tenham explodido nesta semana, quando a possibilidade de furar o teto foi cogitada com a contabilidade criativa para bancar o Renda Cidadã.

Nos próximos anos, podemos repetir a nós mesmos. Promover reformas e gerar confiança na nossa economia, como em 1999, ou seguir por um caminho mais fácil e voltarmos ao nosso passado não muito distante de pouco apreço pela inflação e o controle de gastos.

Aprender com a história é custoso, mas muito menos doloroso do que aquilo que poderemos vivenciar se preferirmos ignorá-la.

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Felippe Hermes Felippe Hermes é jornalista e co-fundador do Spotniks.com

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