Todo mundo virou comentarista. E ninguém mais ouve ninguém

59% dos links compartilhados no Twitter nunca foram clicados e 91% dos usuários se sentem bem-informados com uma linha de conteúdo. Mas todo mundo fala. Poucos escutam. Quase ninguém entende

Renato Dolci

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Vivemos um paradoxo digital: nunca tivemos tanto acesso à informação, mas quase sempre escolhemos não acessá-la. A internet deveria ser o lugar das trocas, do conhecimento, da escuta. Mas virou um grande palco de reações instantâneas. Comentar, hoje, é um reflexo mais rápido do que entender.

Um estudo da Columbia University revelou que 59% dos links compartilhados no X (Twitter) nunca foram clicados. No Facebook, a superficialidade é ainda maior: uma pesquisa da Universidade Estadual da Pensilvânia identificou que cerca de 70% das pessoas compartilham conteúdo sem abri-lo. A decisão é feita em segundos, quase sempre só com base na manchete.

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O tempo médio de leitura antes do compartilhamento reforça o cenário: segundo o Chartbeat, são apenas 15 segundos dedicados ao conteúdo antes de uma pessoa enviá-lo para seu círculo de seguidores. O suficiente para formar uma opinião? Provavelmente não. Mas é o suficiente para julgar, criticar e opinar.

Essa superficialidade se reflete também em outras plataformas, onde um estudo revelou que 73% dos vídeos no YouTube recebem votos (positivos ou negativos) sem que os usuários tenham aberto o conteúdo, enquanto a propaganda ainda está passando. O julgamento é automático. O conteúdo, quase irrelevante.

O resultado prático disso é claro: a informação de qualidade perde espaço para aquilo que gera reações rápidas. Um estudo da MIT Sloan mostra que notícias falsas se espalham seis vezes mais rápido que as verdadeiras, exatamente por apelarem ao emocional. Não importa se é real, desde que provoque indignação, confirmação ou polêmica.

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A urgência de opinar virou um espasmo coletivo. Você vê um corte de podcast de 7 segundos e já tem opinião formada sobre o convidado, o assunto, o contexto e o futuro da humanidade. Um trecho de vídeo vira evidência. Um frame vira ideologia. Uma frase solta vira certeza — desde que alguém com muitos seguidores aponte o caminho. Pensar virou desvantagem competitiva. Refletir virou lentidão. Duvidar virou fraqueza. E ouvir virou perda de tempo.

Além disso, o comportamento superficial nas redes tem um efeito colateral preocupante. De acordo com a ScienceAlert, quem lê só manchetes tende a acreditar que sabe mais sobre os assuntos do que realmente sabe, criando uma falsa sensação de conhecimento profundo. É a ilusão da compreensão: consumir pouco, opinar muito.

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Comentar virou performance social. Opinar é menos sobre contribuir para um debate e mais sobre pertencer a uma bolha. A socióloga Zeynep Tufekci, no livro Twitter and Tear Gas, aponta justamente isso: na internet atual, a opinião é usada principalmente como marcador social, não como meio de diálogo.

A internet multiplicou as vozes, mas atrofiou a escuta. Compartilhar sem ler virou rotina. Opinar sem entender virou regra. O resultado é um imenso ruído digital, em que todos falam, poucos ouvem e ninguém, de fato, conversa. E seguimos chamando isso de debate.

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Renato Dolci

Renato Dolci é cientista político (PUC-SP) e mestre em Economia (Sorbonne). Atua há mais de 15 anos com marketing digital, análise de dados e pesquisas públicas e privadas de comportamento digital. Já desenvolveu trabalhos em diversos ambientes públicos e privados, como Presidência da República, Ministério da Justiça, FIESP, Banco do Brasil, Mercedes, CNN Brasil, Disney entre outros. Foi sócio do BTG Pactual e atualmente, é diretor de dados na Timelens, CRO na Hike e CEO na Ineo.