Nobel de economia: ‘Tempestade Trump’ terá maior impacto nos EUA

Independentemente do que se pense do diagnóstico e do tratamento prescrito pelo governo, seu objetivo é claro: mudar a estrutura do comércio global

Michael Spence

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O segundo governo do presidente dos EUA, Donald Trump, coincide com um período de rápidas mudanças estruturais e tecnológicas, impulsionadas por três tendências. Em primeiro lugar, os choques da pandemia, as novas guerras, as alterações climáticas e as tensões geopolíticas continuam a repercutir na economia mundial. Em segundo lugar, as tendências seculares mais amplas continuam inibindo o crescimento e criando novas pressões inflacionistas. E, em terceiro lugar, os avanços científicos e tecnológicos estão transformando um leque amplo de setores, desde os serviços digitais e a biotecnologia até à energia.

As respostas a estas tendências têm mudado de modo radical o ambiente empresarial e político mundial. A resiliência e a segurança nacional se tornaram prioridades máximas. As redes de abastecimento estão evoluindo rapidamente. A inflação se tornou uma questão importante pela primeira vez em três décadas. E tudo isto estava acontecendo antes da volta de Trump à Casa Branca.

Embora a nevasca de decretos de Trump pareça caótica, o governo pode muito bem estar seguindo uma estratégia mais ampla, concebida para diluir e enfraquecer a oposição potencial. Trump e outros membros de seu governo têm argumentado repetidas vezes que os déficits comerciais bilaterais são sinais de que algo está errado – que estão tirando vantagem dos Estados Unidos, em detrimento de alguns setores e da segurança nacional.

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Entre os principais parceiros comerciais dos EUA com os maiores excedentes bilaterais (com base em dados de 2023) estão a China (US$ 279 bilhões), a União Europeia (US$ 209 bi), o México (US$ 152 bi), o Vietnã (US$ 104 bi), o Japão (US$ 71 bi) e o Canadá (US$ 64 bi, devido inteiramente às importações de energia dos EUA). Os quatro alvos das tarifas iniciais de Trump – Canadá, México, UE e China – representam 66% do déficit comercial global dos EUA em 2023 (US$ 1,06 trilhão). Se acrescentarmos o Japão e o Vietnã, esse valor aumenta para 83%.

Os direitos aduaneiros do “Dia da Libertação” são, de modo geral, coerentes com o fato de visarem os grandes parceiros comerciais deficitários.

Mas as tarifas de 2 de abril vão muito além de visar parceiros comerciais com os quais os EUA têm grandes déficits. Em vez disso, o governo está aplicando uma taxa de 10% a todos os países, incluindo os países com os quais os EUA têm um excedente comercial. Além disso, o governo Trump impôs tarifas adicionais superiores a 10% a um vasto leque de pequenas economias que têm efeitos mínimos na balança comercial dos EUA, embora as principais economias latino-americanas (com exceção do México) estivessem isentas.

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A reação dos mercados financeiros foi imediata. Nos dois dias de negociação após o Dia da Libertação, o S&P 500 caiu US$ 5 trilhões, ou seja, cerca de 10%. A confiança das empresas e dos consumidores prosseguiu sua tendência descendente e os mercados fora dos EUA também desceram, refletindo o domínio do sistema financeiro norte-americano. A China respondeu com os seus próprios direitos aduaneiros de 84% sobre as importações dos EUA e outros países estão considerando medidas de retaliação. Com o agravamento da incerteza econômica e do mercado, aumentaram as expectativas de uma recessão.

Dito isto, é provável que os impactos sejam maiores nos EUA e nos parceiros comerciais com maior exposição à procura americana. Uma vez que a economia dos Estados Unidos representa cerca de 26% do PIB mundial nominal, ou 15-16% com ajustes da paridade do poder de compra, sua limitação provocará um choque grande em todo o sistema. Embora todos os países, com exceção dos EUA, sejam sujeitos a direitos aduaneiros sobre as exportações para os EUA, haverá diferentes graus de exposição: A da China é média, a do Vietnã é bastante elevada e a do México e do Canadá é muito elevada. Felizmente, os outros países ainda têm o resto do mundo para onde vender, e o resto do mundo não é pequeno.

Em contrapartida, consumidores e empresas norte-americanas serão confrontados com direitos aduaneiros de entrada sobre tudo o que vem de todos os outros países do mundo. É provável que as empresas também se vejam confrontadas com direitos aduaneiros “recíprocos” mais elevados quando tentarem acessar mercados externos, e os principais países poderão restringir o investimento direto estrangeiro (IDE) que sai para os EUA, anulando parcialmente um dos objetivos declarados pelo governo dos EUA para os direitos aduaneiros americanos.

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Em outras palavras, embora os danos sejam generalizados e variáveis entre países e regiões, é provável que o maior impacto se faça sentir na economia dos EUA, devido ao seu crescente isolamento do resto da economia global.

Não está claro se o governo acredita que os direitos aduaneiros conduzirão a um reequilíbrio do comércio, ou se foram concebidos para impelir os parceiros comerciais e as empresas a transferirem a produção e os postos de trabalho para os EUA. O próprio Trump apoia o IDE como uma forma de apoiar a sua agenda em matéria de déficit e emprego, e presume-se que as tarifas acrescentem outro incentivo.

Independentemente do que se pense do diagnóstico e do tratamento prescrito pelo governo, seu objetivo é claro: mudar a estrutura do comércio global e do IDE a favor do investimento interno e do emprego nos EUA. Contudo, esta agenda enfrenta um poderoso vento contrário, devido à atração global da dívida e das ações dos EUA e ao estatuto do dólar como moeda de reserva internacional. A menos que os EUA diminuam intencionalmente a atratividade dos ativos denominados em dólares, o que exigiria um encerramento parcial da conta de capital, é pouco provável que o estatuto de moeda de reserva do dólar se altere.

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Afinal, não há uma alternativa plausível ao sistema atual. Uma economia global em crescimento precisa de uma base monetária em expansão para funcionar. Em vez de reduzir seu déficit comercial de US$ 1 trilhão, é mais provável que os EUA o redistribuam pelos países, o que provavelmente não conduziria ao tipo de reestruturação interna que Trump prevê. 

A China, com a sua grande economia interna, pode suportar choques tarifários. O país asiático já precisa aumentar sua procura agregada interna e sem dúvida verá o desinvestimento do governo Trump em pesquisa básica em ciência e tecnologia nas universidades dos EUA como uma vantagem inesperada, dados os danos que causará à competitividade dos EUA a longo prazo.

A tecnologia é uma variável importante neste domínio. Os estudiosos há tempos demonstraram que as rodadas anteriores de adoção de tecnologias digitais exerceram uma pressão descendente sobre os empregos e os rendimentos “rotineiros” da classe média. Se esta será uma caraterística da adoção da IA na economia é, no momento, uma questão em aberto. Embora ninguém tenha ainda um roteiro pormenorizado sobre o modo como isto se desenrolará, faz sentido esperar que os efeitos possam ser tão grandes ou maiores do que os associados aos novos padrões globais de comércio e investimento.

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Se o governo Trump tem uma estratégia para administrar este desafio, ainda não revelou qual é. No entanto, seria um erro assumir que a reestruturação do comércio e do investimento internacionais será suficiente para beneficiar os trabalhadores norte-americanos. Há outras forças em jogo, e os tomadores de decisões políticas as ignoram por sua conta e risco.

Tradução por Fabrício Calado Moreira

Direitos autorais: Project Syndicate, 2025.

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Michael Spence

Michael Spence, ganhador do Prêmio Nobel de Economia, é professor emérito de economia e antigo reitor da Graduate School of Business da Universidade de Stanford, além de coautor (com Mohamed A. El-Erian, Gordon Brown e Reid Lidow) de Permacrisis: A Plan to Fix a Fractured World (“Permacrise: Um plano para consertar um mundo fraturado”, em tradução livre do inglês) (Simon & Schuster, 2023).