Mundial de Clubes escancara rixa entre velha e nova mídia no Brasil

Enquanto Globo e CazéTV brigam por audiência e métricas, a NSports tenta se reposicionar como 'canal multigeracional'. O conflito simboliza a transição brutal do modelo de TV para o Streaming 3.0, era em que criadores são a própria mídia e a barreira para adquirir direitos esportivos desmorona

Eduardo Mendes

Importante: os comentários e opiniões contidos neste texto são responsabilidade do autor e não necessariamente refletem a opinião do InfoMoney ou de seus controladores

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O podcast Sports Pundit recebeu na semana passada Rob Pilgrim, chefe de esportes e horário nobre do YouTube EMEA. Durante 45 minutos, o executivo centrou a conversa na falta de compreensão sobre como a plataforma está reposicionando o valor do esporte premium. Não para sabotar as emissoras tradicionais, mas com o objetivo de eliminar o atrito entre elas.

Para reforçar o tom de parceria, Pilgrim mencionou o case da Copa do Mundo de 2022 transmitida pela CazéTV, citando uma “permissão” da Globo.

“Não foi canibalismo. Não tirou de um e deu para o outro. Mas os milhões e milhões de espectadores que a CazéTV trouxe aumentaram a audiência geral. Foi aditivo.”

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No Mundial de Clubes da FIFA, a lógica se repete, diz Pilgrim: o papel do YouTube seria o de construir rampas de acesso para novos espectadores que talvez não chegassem por meios tradicionais.

Duas semanas após o início do torneio, porém, o espírito colaborativo idealizado por Pilgrim desmoronou. Globo e CazéTV travaram uma troca pública de farpas, com audiência e métodos de medição no centro da discórdia.

Na terça, a Globo informou que 104 milhões de brasileiros assistiram às transmissões na TV aberta e no SporTV. O comunicado dizia que o alcance era cinco vezes maior que o do “streaming concorrente”.

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Dias antes, a CazéTV havia enviado uma carta ao mercado publicitário criticando o modelo de medição do Kantar Ibope, por supostamente ignorar parte relevante da audiência em dispositivos móveis.

Desde então, o canal passou a divulgar dados próprios de visualização baseados em dispositivos conectados, trazendo um tom sarcástico: “sem amostragem, nem estimativa.”

Em abril, mostrei aqui por que a visualização, métrica central do YouTube, não acompanha a complexidade do consumo atual. Recentemente, a insider Jo Redfern alertou que as views, ainda vendidas como parâmetro de sucesso, estão se tornando inúteis nas plataformas sociais.

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“Se você é proprietário de IP e ainda se apoia nisso, é hora de repensar”, disse.

A CazéTV afirma ter atingido 17,4 milhões de dispositivos únicos logo na primeira semana de Mundial. O número supera o universo de sete milhões de domicílios com TV por assinatura no Brasil.

O confronto de narrativas entre as duas emissoras simboliza o choque entre a velha e a nova televisão. E essa divisão começa a reverberar no público.

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A polarização entre os fãs e o custo da informalidade

Assim como aconteceu na Copa de 2022, Olimpíadas e Euro 2024, o Mundial vem impulsionando a audiência da CazéTV. E o canal vende bem a narrativa do conteúdo gratuito e dos números estratosféricos para monopolizar as conversas sociais.

Neste cenário, há uma clivagem visível entre os torcedores: os que preferem o jogo à moda antiga e os que idolatram a informalidade escrachada de Casimiro e companhia. Essa estética sustentada por memes e piadas, por sua vez, serve tanto para angariar fãs quanto para armar os detratores.

Durante Red Bull Salzburg e Al-Hilal, ao ver comentários sobre o conflito entre Irã e Israel subindo no chat, um dos analistas da CazéTV disparou: “Não compramos os direitos da Guerra no Oriente Médio.” O corte viralizou, e a emissora foi julgada no tribunal da internet.

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Na verdade, o embate já se anunciava desde o início do Brasileirão, quando a rivalidade entre clubes foi levada aos grupos e as emissoras da nova divisão do futebol brasileiro. E o torcedor acompanhou, tomando partido.

Nesse cenário de polarização e fragmentação extrema, surge uma janela para estratégias mais sofisticadas. Redfern defende que o futuro do consumo esportivo passa por uma distribuição hiperpersonalizada em múltiplas plataformas e com baixíssimo atrito de acesso.

“Não se trata de fragmentar os direitos e escondê-los atrás de múltiplos paywalls.”

Streaming 3.0: quando criadores viram donos dos direitos

John Kosner, veterano de 20 anos da ESPN e hoje consultor de mídia esportiva, enxerga a combinação entre escala e personalização a essência do que batizou de Streaming 3.0: fase em que a barreira para adquirir direitos esportivos desmorona.

Na nova era, basta ter três ativos: marca relevante, público digital engajado e apetite por esporte.

A classificação de Korner dos momentos da distribuição esportiva expõe a ruptura atual:

  1. TV aberta como centralizadora de audiência
  2. Streaming 1.0: “TV Everywhere”, com plataformas atreladas a operadoras
  3. Streaming 2.0: gigantes como Amazon e Netflix caçando exclusividades
  4. Streaming 3.0: a democratização radical, permitindo que criadores de conteúdo tornem-se players

A CazéTV é o protótipo perfeito da mídia não tradicional. E nesse cenário, como sugere Doug Shapiro, há uma guerra silenciosa entre a mídia criadora e a corporativa — com o tempo do consumidor como recurso finito.

Nos últimos quatro anos, a mídia de criadores respondeu por quase metade do crescimento do mercado global de mídia e entretenimento. Em 2023, gerou US$ 250 bilhões. Em 2030, deve passar dos US$ 600 bi — 20% da receita total do setor.

Neste cenário em que criadores são a própria mídia, compram direitos e definem um novo formato para consumir esportes, uma questão levantada pelo especialista Carlo De Marchis ressoa aqui: é possível entregar experiências distintas para o espectador casual e o fã hardcore por meio de canais diferentes?

NSports quer ocupar o meio do caminho

Dois dias antes do Mundial de Clubes, a NSports reuniu parceiros em São Paulo para apresentar sua nova fase. Com investimento da Tellescom e da holding Ola Sports, o canal trouxe Galvão Bueno como sócio e rosto da reinvenção.

Agora, quer se posicionar como o primeiro canal esportivo multigeracional do país.

O ícone do jornalismo esportivo, que se reinventa entre a Band e o jardim murado do Prime Video, encarna a tentativa de provar que o streaming esportivo pode dialogar com diferentes gerações, sem abrir mão da credibilidade nem do entretenimento.

Sob a lógica de que os direitos são meio, não fim, a nova NSports aposta na combinação entre transmissões ao vivo, programas sob demanda e séries documentais.

Em abril, a Ola já havia cedido jogos da Série B ao Desimpedidos. Desde o início do torneio, os dois jogos por rodada acumulam mais de 9,4 milhões de visualizações.

A grade também ganha programas próprios como Negueritmo e Vai, Gabi!, comandados pelos influenciadores Neguerê e Gabi Martins. E em breve estreia o primeiro documentário da casa: a trajetória de Thiago Silva.

Essa estratégia tangencia o modelo híbrido proposto por Wim Ponnet: parte distribuição direta, parte parcerias estratégicas, com controle total sobre dados, engajamento e monetização.

Para o especialista, o futuro exige mais do que vender sinal: é preciso criar plataformas próprias que combinem social, comércio e inteligência artificial, e capturem o ciclo completo da atenção do fã.

“O modelo híbrido é o único caminho para transformar transmissões passivas em experiências interativas e rentáveis. Quem se limitar a ser fornecedor de feed perderá o controle sobre o relacionamento com o público e deixará dinheiro na mesa”, alertou Ponnet.

O dilema entre paywall e audiência

Pela primeira vez desde 2021, o streaming superou TV aberta e a cabo em audiência nos EUA, segundo a Nielsen. Enquanto plataformas gratuitas como Tubi e Roku ganham força entre os mais velhos, a TV por assinatura segue encolhendo: perdeu 39% da audiência desde 2020.

Na era do streaming 3.0, Kosner diz que os preços dos direitos esportivos continuarão a subir, especialmente para as principais propriedades, à medida que a concorrência se intensifica e as empresas buscam alavancar o conteúdo esportivo como uma ferramenta de retenção para seus negócios principais.

A nova norma, por sua vez, obriga o esporte a repensar seu papel dentro de um ecossistema de mídia fragmentado, dominado por lógica algorítmica, decisões financeiras de curto prazo e paywalls em cascata.

O Mundial de Clubes é um bom exemplo do risco desse modelo. A DAZN pagou US$ 1 bilhão. Deve arrecadar entre US$ 370 e 380 milhões com sublicenciamento e publicidade, segundo Frank Dunne, do SportBusiness. Ainda assim, meio bilhão evapora.

Conforme escrevi há duas semanas aqui, a DAZN ainda opera com apenas 20 milhões de assinantes pagos, enfrenta um cenário de capital intensivo e concorrência com gigantes consolidadas.

O futuro do esporte no streaming dependerá de resolver três contradições:

  1. Como monetizar grandes públicos sem empurrá-los para fora com paywalls
  2. Como resgatar a descoberta acidental em feeds algorítmicos
  3. Como combinar relevância local com escala global

Carlo De Marchis resume o dilema: se quem liderar forem as techs, espere pacotes plugados em ecossistemas. Se forem os donos dos direitos, o produto pode ganhar criatividade. Caso seja o mercado, tudo pode acontecer.

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Eduardo Mendes

Eduardo Mendes é estrategista em conteúdo e novos modelos de negócio para esportes, mídia e economia criativa. Com quase uma década no jornalismo esportivo, hoje atua com inteligência estratégica e inovação. É cocriador das newsletters The Block Point e Creative Moves, e esteve à frente de projetos como o ecossistema digital do Atlético-MG e os primeiros colecionáveis digitais da T4F.