Publicidade
O podcast Sports Pundit recebeu na semana passada Rob Pilgrim, chefe de esportes e horário nobre do YouTube EMEA. Durante 45 minutos, o executivo centrou a conversa na falta de compreensão sobre como a plataforma está reposicionando o valor do esporte premium. Não para sabotar as emissoras tradicionais, mas com o objetivo de eliminar o atrito entre elas.
Para reforçar o tom de parceria, Pilgrim mencionou o case da Copa do Mundo de 2022 transmitida pela CazéTV, citando uma “permissão” da Globo.
“Não foi canibalismo. Não tirou de um e deu para o outro. Mas os milhões e milhões de espectadores que a CazéTV trouxe aumentaram a audiência geral. Foi aditivo.”
Continua depois da publicidade
No Mundial de Clubes da FIFA, a lógica se repete, diz Pilgrim: o papel do YouTube seria o de construir rampas de acesso para novos espectadores que talvez não chegassem por meios tradicionais.
Duas semanas após o início do torneio, porém, o espírito colaborativo idealizado por Pilgrim desmoronou. Globo e CazéTV travaram uma troca pública de farpas, com audiência e métodos de medição no centro da discórdia.
Na terça, a Globo informou que 104 milhões de brasileiros assistiram às transmissões na TV aberta e no SporTV. O comunicado dizia que o alcance era cinco vezes maior que o do “streaming concorrente”.
Continua depois da publicidade
Dias antes, a CazéTV havia enviado uma carta ao mercado publicitário criticando o modelo de medição do Kantar Ibope, por supostamente ignorar parte relevante da audiência em dispositivos móveis.
Desde então, o canal passou a divulgar dados próprios de visualização baseados em dispositivos conectados, trazendo um tom sarcástico: “sem amostragem, nem estimativa.”
Em abril, mostrei aqui por que a visualização, métrica central do YouTube, não acompanha a complexidade do consumo atual. Recentemente, a insider Jo Redfern alertou que as views, ainda vendidas como parâmetro de sucesso, estão se tornando inúteis nas plataformas sociais.
Continua depois da publicidade
“Se você é proprietário de IP e ainda se apoia nisso, é hora de repensar”, disse.
A CazéTV afirma ter atingido 17,4 milhões de dispositivos únicos logo na primeira semana de Mundial. O número supera o universo de sete milhões de domicílios com TV por assinatura no Brasil.
O confronto de narrativas entre as duas emissoras simboliza o choque entre a velha e a nova televisão. E essa divisão começa a reverberar no público.
Continua depois da publicidade
A polarização entre os fãs e o custo da informalidade
Assim como aconteceu na Copa de 2022, Olimpíadas e Euro 2024, o Mundial vem impulsionando a audiência da CazéTV. E o canal vende bem a narrativa do conteúdo gratuito e dos números estratosféricos para monopolizar as conversas sociais.
Neste cenário, há uma clivagem visível entre os torcedores: os que preferem o jogo à moda antiga e os que idolatram a informalidade escrachada de Casimiro e companhia. Essa estética sustentada por memes e piadas, por sua vez, serve tanto para angariar fãs quanto para armar os detratores.
Durante Red Bull Salzburg e Al-Hilal, ao ver comentários sobre o conflito entre Irã e Israel subindo no chat, um dos analistas da CazéTV disparou: “Não compramos os direitos da Guerra no Oriente Médio.” O corte viralizou, e a emissora foi julgada no tribunal da internet.
Continua depois da publicidade
Na verdade, o embate já se anunciava desde o início do Brasileirão, quando a rivalidade entre clubes foi levada aos grupos e as emissoras da nova divisão do futebol brasileiro. E o torcedor acompanhou, tomando partido.
Nesse cenário de polarização e fragmentação extrema, surge uma janela para estratégias mais sofisticadas. Redfern defende que o futuro do consumo esportivo passa por uma distribuição hiperpersonalizada em múltiplas plataformas e com baixíssimo atrito de acesso.
“Não se trata de fragmentar os direitos e escondê-los atrás de múltiplos paywalls.”
Streaming 3.0: quando criadores viram donos dos direitos
John Kosner, veterano de 20 anos da ESPN e hoje consultor de mídia esportiva, enxerga a combinação entre escala e personalização a essência do que batizou de Streaming 3.0: fase em que a barreira para adquirir direitos esportivos desmorona.
Na nova era, basta ter três ativos: marca relevante, público digital engajado e apetite por esporte.
A classificação de Korner dos momentos da distribuição esportiva expõe a ruptura atual:
- TV aberta como centralizadora de audiência
- Streaming 1.0: “TV Everywhere”, com plataformas atreladas a operadoras
- Streaming 2.0: gigantes como Amazon e Netflix caçando exclusividades
- Streaming 3.0: a democratização radical, permitindo que criadores de conteúdo tornem-se players
A CazéTV é o protótipo perfeito da mídia não tradicional. E nesse cenário, como sugere Doug Shapiro, há uma guerra silenciosa entre a mídia criadora e a corporativa — com o tempo do consumidor como recurso finito.
Nos últimos quatro anos, a mídia de criadores respondeu por quase metade do crescimento do mercado global de mídia e entretenimento. Em 2023, gerou US$ 250 bilhões. Em 2030, deve passar dos US$ 600 bi — 20% da receita total do setor.
Neste cenário em que criadores são a própria mídia, compram direitos e definem um novo formato para consumir esportes, uma questão levantada pelo especialista Carlo De Marchis ressoa aqui: é possível entregar experiências distintas para o espectador casual e o fã hardcore por meio de canais diferentes?
NSports quer ocupar o meio do caminho
Dois dias antes do Mundial de Clubes, a NSports reuniu parceiros em São Paulo para apresentar sua nova fase. Com investimento da Tellescom e da holding Ola Sports, o canal trouxe Galvão Bueno como sócio e rosto da reinvenção.
Agora, quer se posicionar como o primeiro canal esportivo multigeracional do país.
O ícone do jornalismo esportivo, que se reinventa entre a Band e o jardim murado do Prime Video, encarna a tentativa de provar que o streaming esportivo pode dialogar com diferentes gerações, sem abrir mão da credibilidade nem do entretenimento.
Sob a lógica de que os direitos são meio, não fim, a nova NSports aposta na combinação entre transmissões ao vivo, programas sob demanda e séries documentais.
Em abril, a Ola já havia cedido jogos da Série B ao Desimpedidos. Desde o início do torneio, os dois jogos por rodada acumulam mais de 9,4 milhões de visualizações.
A grade também ganha programas próprios como Negueritmo e Vai, Gabi!, comandados pelos influenciadores Neguerê e Gabi Martins. E em breve estreia o primeiro documentário da casa: a trajetória de Thiago Silva.
Essa estratégia tangencia o modelo híbrido proposto por Wim Ponnet: parte distribuição direta, parte parcerias estratégicas, com controle total sobre dados, engajamento e monetização.
Para o especialista, o futuro exige mais do que vender sinal: é preciso criar plataformas próprias que combinem social, comércio e inteligência artificial, e capturem o ciclo completo da atenção do fã.
“O modelo híbrido é o único caminho para transformar transmissões passivas em experiências interativas e rentáveis. Quem se limitar a ser fornecedor de feed perderá o controle sobre o relacionamento com o público e deixará dinheiro na mesa”, alertou Ponnet.
O dilema entre paywall e audiência
Pela primeira vez desde 2021, o streaming superou TV aberta e a cabo em audiência nos EUA, segundo a Nielsen. Enquanto plataformas gratuitas como Tubi e Roku ganham força entre os mais velhos, a TV por assinatura segue encolhendo: perdeu 39% da audiência desde 2020.
Na era do streaming 3.0, Kosner diz que os preços dos direitos esportivos continuarão a subir, especialmente para as principais propriedades, à medida que a concorrência se intensifica e as empresas buscam alavancar o conteúdo esportivo como uma ferramenta de retenção para seus negócios principais.
A nova norma, por sua vez, obriga o esporte a repensar seu papel dentro de um ecossistema de mídia fragmentado, dominado por lógica algorítmica, decisões financeiras de curto prazo e paywalls em cascata.
O Mundial de Clubes é um bom exemplo do risco desse modelo. A DAZN pagou US$ 1 bilhão. Deve arrecadar entre US$ 370 e 380 milhões com sublicenciamento e publicidade, segundo Frank Dunne, do SportBusiness. Ainda assim, meio bilhão evapora.
Conforme escrevi há duas semanas aqui, a DAZN ainda opera com apenas 20 milhões de assinantes pagos, enfrenta um cenário de capital intensivo e concorrência com gigantes consolidadas.
O futuro do esporte no streaming dependerá de resolver três contradições:
- Como monetizar grandes públicos sem empurrá-los para fora com paywalls
- Como resgatar a descoberta acidental em feeds algorítmicos
- Como combinar relevância local com escala global
Carlo De Marchis resume o dilema: se quem liderar forem as techs, espere pacotes plugados em ecossistemas. Se forem os donos dos direitos, o produto pode ganhar criatividade. Caso seja o mercado, tudo pode acontecer.