Como o seu feed te ensina a odiar o próprio corpo

Esta semana, publicamos na Timelens um importante estudo em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública sobre o crescimento de ameaças digitais nas escolas, que, inclusive, foi tema do editorial da Folha de São Paulo. Jovens criados em cotidianos violentos buscam na tela colo para dúvidas e frustrações: hiperconectados, emocionalmente órfãos, formam identidade em […]

Renato Dolci

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Esta semana, publicamos na Timelens um importante estudo em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública sobre o crescimento de ameaças digitais nas escolas, que, inclusive, foi tema do editorial da Folha de São Paulo. Jovens criados em cotidianos violentos buscam na tela colo para dúvidas e frustrações: hiperconectados, emocionalmente órfãos, formam identidade em feeds que premiam exagero e exclusão.

Para trazer um dado super importante, a pergunta mais realizada por jovens entre 13 a 16 anos no ChatGPT é “porque eu sou assim?”.

Passei a semana refletindo sobre a adolescência na era digital, fase de insegurança crônica. Num feed que exibe corpos e vidas “perfeitas” — e certezas demais — quanto isso distorce a autoimagem de quem ainda coleciona mais dúvidas que respostas? Vamos aos dados.

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Quase metade dos adolescentes diz que a rede social os faz se sentir fisicamente piores do que realmente são: 46% relatam que a aparência parece “pior” depois de rolar o feed. Quando o uso passa de três horas diárias, dobra o risco de depressão.

Mais tela, mais sintomas

Entre as garotas de 13 anos, cerca de 50% já estão insatisfeitas com o corpo; aos 17, esse número salta para quase 80%. O efeito se acelera dentro do Instagram: segundo o The Wall Street Journal, documentos internos da Meta mostraram que 32% das adolescentes sentem o app piorar sua autoimagem. O espelho não mudou; a lente, sim…e aperta nos meninos também.

A narrativa “corpo perfeito” agora mira bíceps e “gominhos”. Estudos com mais de 4.700 rapazes indicam que 23% já praticam estratégias arriscadas de ganho muscular aos 15 anos, índice que sobe para 30% sete anos depois. Não é exceção: levantamentos globais mostram que 20% a 30% dos garotos dizem odiar o próprio corpo ao se compararem com perfis fitness do Instagram e do TikTok. A APA acompanhou 17.000 adolescentes: quem passa cinco horas diárias nas redes exibe 41% mais sinais de depressão que quem fica menos de três.

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O feed virou educador involuntário

Filtros de pele lisa e cinturas editadas aparecem antes que pais, escola ou amigos intervenham. O algoritmo presta aula contínua de comparação: rolagem traz um padrão novo antes de o cérebro processar o anterior. Para meninas, o ideal é “fino & sem poros”; para meninos, “seco & hipertrofiado” — metas impossíveis que alimentam um mercado de US$ 1,7 bilhão em apps de retoque corporal, crescendo 21% ao ano.

Vamos aprofundar: 90% das jovens (16-24 anos) usam filtros de belezapesquisa da City, University of London. Destas, 94% dizem sentir “pressão para parecer de certo jeito” e 60% relatam ficar tristes ou deprimidas depois do uso.  Outra pesquisa mostra que o uso semanal de filtros dobra a vontade de cirurgia – adolescentes que filtram fotos ao menos uma vez por semana têm 2 vezes mais interesse em procedimentos estéticos e 4 vezes mais desejo de mudar a cor da pele.E mais: 90% das garotas de 10-17 seguem ao menos um perfil que as faz sentir menos bonitas; 50% culpam “conselhos tóxicos” por baixa autoestima.

Para onde olhar agora?

Educação clássica fica para trás quando o primeiro contato com padrões de beleza acontece via algoritmo. Escolas que testaram oficinas de “desconstrução de feed”, alunos analisando passo a passo o retoque de fotos, cortaram em 19% a intenção de dieta extrema em meninas de 13 anos num semestre.

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Adolescentes não são vasos frágeis que precisam ser envoltos em plástico-bolha digital; são engenheiros de sentido em fase de protótipo. O cérebro deles ainda está soldando circuitos de recompensa, identidade, empatia. É justamente por isso que o algoritmo, uma máquina de entregar comparação sob medida, encontra neles terreno fértil. Quanto mais plástico a neurociência descobre, mais rígido o feed tenta modelar.

Cuidar, portanto, não é interditar tela nem pregar “desliga tudo”. É desenhar um ambiente onde a literalidade do feed seja ensinada com a mesma seriedade que tabela periódica. Mostrar o truque de luz antes que ele vire dogma: como filtros suavizam pele, por que o “corpo perfeito” muda a cada semestre, de onde vêm os anúncios que parecem ler pensamento.

Mas alfabetização sozinha não basta. Em todo ecossistema onde o lado individual arca com o dano, temos um papel importante social. Já exigimos airbags para dirigir; podemos exigir atrito mínimo no botão de postar, transparência sobre edição, contagem oculta de curtidas para menores, pausas forçadas de rolagem após maratonas inviáveis. Medidas pequenas, porém, calculadas para neutralizar o motor da comparação automática.

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É o tipo de segurança que não se instala por software; se cultiva com conversa, exemplo e espaços onde a realidade, com todas as suas rugas, continue interessante o bastante para dispensar retoques.

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Renato Dolci

Renato Dolci é cientista político (PUC-SP) e mestre em Economia (Sorbonne). Atua há mais de 15 anos com marketing digital, análise de dados e pesquisas públicas e privadas de comportamento digital. Já desenvolveu trabalhos em diversos ambientes públicos e privados, como Presidência da República, Ministério da Justiça, FIESP, Banco do Brasil, Mercedes, CNN Brasil, Disney entre outros. Foi sócio do BTG Pactual e atualmente, é diretor de dados na Timelens, CRO na Hike e CEO na Ineo.