SAFs: por que o dinheiro sozinho não traz felicidade

Não basta dizer "Estamos ricos". É preciso cobrar que os novos donos apresentem um projeto, com nomes, objetivos e transparência
Por  Cesar Grafietti -
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No novo mundo das SAFs, o torcedor cujo time deixou o modelo associativo no passado agora enche o peito para dizer “Estamos ricos”, como se a SAF fosse um produto das Organizações Tabajara. Mas iniciarei esta coluna com um velho dito popular, adaptado para o momento: “Dinheiro sozinho não traz felicidade”.

Pois é, mesmo após virar SAF, seus problemas não acabaram, torcedor. Possivelmente, muita coisa será melhor, porque o dinheiro ajuda a manter salários em dia, fazer alguns investimentos, investir em infraestrutura e marketing, relacionamento com o torcedor. Mas não garantirá conquistas e vitórias.

Esta parte depende da gestão, que vai além do dinheiro do acionista, e passa necessariamente pela capacidade de implantar um modelo esportivo eficiente, estruturado, inteligente, apoiado num modelo financeiro e de negócios sustentável.

Sei que você já ouviu isso outras vezes, leu em diversos lugares (não tantos assim, pois o pessoal prefere criar expectativas irreais – mas nos locais que falam a verdade você certamente já ouviu e leu), mas justamente por causa da expectativa equivocada criada pela SAF e seus novos donos é fundamental reforçamos o tema.

Nesta semana, trarei alguns exemplos de que o dinheiro sozinho não resolve muita coisa se não for bem aplicada.

Poderia começar com o Barcelona e sua receita de € 1 bilhão pré-pandemia, com resultados esportivos pouco animadores por vários anos e depois o desastre financeiro por trás de gestões esbanjadoras. E tudo mudou para seguir como estava, com contratações caras custeadas pela venda de ativos futuros.

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A velha estratégia de dirigentes brasileiros de adiantar o futuro para tentar sorrir no presente. Bem, o resultado já conhecemos. Mas deixe os catalães aprenderem sozinhos, já que ninguém se dignou a estudar o futebol brasileiro.

Poderíamos falar também sobre o Manchester United, com suas receitas imensas e resultados esportivos pífios.

Aqui também muitos falaram, especialmente citando a relação entre os acionistas – Família Glazer – e os torcedores. Resumindo para quem não viu: os Glazers são acusados de retirarem dinheiro do clube, o que tem impactado resultados esportivos. Não é bem verdade.

É fato que nos últimos 10 anos retiraram algo como € 120 milhões em dividendos, valor idêntico ao que pagaram em despesas financeiras. Mas o clube investiu mais de € 1 bilhão em contratações, enquanto a dívida de auto aquisição não se alterou. Ou seja, os protestos precisam ser muito mais na direção da má-gestão esportiva que da retirada de dinheiro por parte dos acionistas.

Claro, há outros aspectos que precisam ser aprofundados, como eventuais reformas e melhorias em Old Trafford. Mas isso não tem relação com o desempenho da equipe. Falta claramente um modelo de negócio esportivo, que defina uma cultura, que trate de contratações que busquem encaixe técnico. Faltou gestão, não dinheiro.

Vamos então a exemplos que pouco usam, mas que podem ajudar a explicar um pouco do impacto da gestão dentro de campo. Vamos para a Itália comparar o que se passa nos três maiores clubes do país.

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A partir de 2011/12, o futebol italiano viu uma supremacia incontestável da Juventus, que conquistou nove títulos consecutivos. Aproveitando-se da fragilidade financeira de Milan e Inter, a Juventus nadou de braçada com mais dinheiro e organização. Definiu um perfil técnico “à italiana”, ou seja, jogando de forma segura na defesa e explorando velocidade, a equipe que foi comandada por Antonio Conte, Massimiliano Allegri e Maurizio Sarri – já numa tentativa de mudança de estilo – quase dava como vencido o Campeonato Italiano e olhava apenas a Champions League como objetivo.

Nesse período, como comentei, Milan e Inter lutavam para se enquadrar à nova realidade do Fair Play Financeiro, que impedia os donos/mecenas de colocar dinheiro para fechar as contas. Com menos receitas que a Juventus, eles precisavam desenvolver estratégias esportivas eficientes. Não conseguiram, pois estavam acostumados a contratar nomes, não funções, sem estratégia, sem cultura esportiva clara.

Na Inter, a chegada dos chineses do Suning trouxe um ajuste inicial de contas que permitiu ao clube iniciar um processo de reformulação de estratégia, a ponto de Steven Zhang, principal acionista, reclamar que passou quatro anos discutindo com a Uefa o plano de ação para reequilibrar as contas.

A estratégia após o ajuste foi investir em atletas de peso, mas iniciando pelo treinador. A chegada de Antonio Conte foi o início de um projeto que apresentou investimentos elevados, com a chegada de atletas qualificados, e que culminou na montagem de um elenco forte o suficiente para complicar a Juventus na conquista de 2019/20, e finalmente conquistar o scudetto em 2020/21, após dez anos de jejum.

Estratégia clara: investir em nomes consagrados para montar um elenco forte, capaz de conquistar e aumentar receitas que retroalimentem o sistema e isso levaria ao equilíbrio. Claro que a pandemia atrapalhou o processo.

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O grupo Suning chegou em 2016 e se comprometeu a equacionar as dívidas em quatro anos. As receitas vinham crescendo até 2019, com redução paulatina de dívidas, mesmo com aumento de investimentos, mas veio a pandemia e quebrou o ciclo, que tende a retomar a partir da atual temporada.

Esportivamente, nos últimos três anos o clube venceu um scudetto e foi vice-campeão em duas temporadas.

A estratégia do Milan

O clube de Berlusconni foi vendido em 2017 para Li Yonghong, que prometia fazer frente à Inter, do grupo Suning, com investimentos vultosos que levariam o clube de volta às conquistas, após anos perdendo sua força esportiva.

O fato é que, um ano depois, em 2018, o clube foi transferido por falta de pagamentos para o fundo americano Elliott, que teve como premissa básica de gestão a reestruturação financeira e o investimento em atletas jovens e de alto potencial de desenvolvimento.

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Enquanto os rivais Inter e Juventus contratavam CR7, Lukaku, Conte e Sarri, o Milan apostava em Kalulu, Leão, Hernandez, Rebic e nos veteranos Ibrahimovic e Giroud para apoiar os jovens e ocupar as primeiras posições da tabela.

Havia uma necessidade básica: reestruturar financeiramente o clube, praticamente quebrado, sofrendo sanções da Uefa. Esse foi o mote da gestão Elliott: “estamos aqui para recuperar o clube, e isso leva tempo”. Para que o projeto funcionasse, trouxeram ser CEO o executivo Ivan Gazidis, que já havia trabalhado no Arsenal, apostaram na estrutura de scouting originária do Lille da França, e no trabalho de Maldini e Massara como Diretores Esportivos. A pouca experiência de ambos era compensada por uma equipe organizada na análise de desempenho.

O desenho era claro e distinto dos rivais: garimpar atletas qualificados, mas pouco aproveitados em suas equipes, e construir um modelo de jogo mais “à europeia” que “à italiana”, fugindo inclusive dos moldes de Juventus e Inter. O foco era se preparar para saltos maiores no futuro.

E o futuro chegou rapidamente. Em 2020/21, o Milan terminou a Serie A como vice-campeão, e conquistou o scudetto em 2021/22.

Agora, vamos aos números no período:

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A chegada de Yonghong levou as dívidas a níveis elevados, com queda de receitas. Então, a chegada do fundo Elliott recolocou o clube nos trilhos financeiros. Note que o volume de investimentos caiu substancialmente em 2020 e 2021, com foco em atletas baratos, muitos contratados inicialmente por empréstimos com valores de aquisição definitiva fixados, como Tomori, Diaz, Tonali. Alguns eram reservas, outros vieram de clubes pequenos.

Enquanto isso a Juventus se perdeu esportivamente, mesmo com receitas na casa dos € 400 milhões e aportes de mais de € 700 milhões em três anos. Mas também teve três treinadores diferentes, a chegada de CR7 e contratações sem projeto esportivo. Mais dinheiro, menos gestão. E o clube quase não se classifica para a Champions League na temporada 2020/21.

2022/23: o que temos

Para a atual temporada não mudamos muito o cenário.

Enquanto a Juventus segue contratando nomes, como Di Maria e Pogba, a Inter foi buscar Lukaku no Chelsea, apostando na manutenção de um elenco caro, e o Milan segue sua estratégia de jovens com potencial, como o belga De Ketelaere, mesmo com a chegada de um novo dono, após a venda pelo Elliott para o fundo Redbird.

Note, portanto, que não há um único modo de se organizar e conquistar, vide os exemplos de Inter e Milan. Ao mesmo, ter mais dinheiro não garante que o resultado esportivo venha naturalmente, vide o caso Juventus. Pode até ajudar, mas sem que haja uma estratégia estruturada e bem aplicada, a chance de erro e desperdício é imensa.

Ou seja, não basta dizer “Estamos ricos”. É preciso cobrar que os novos donos apresentem um projeto, com nomes, objetivos, transparência. Geralmente, é mais sábio quem gasta melhor do aquele que gasta à toa. Se dinheiro sozinho não traz felicidade, também não aceita desaforo.

Cesar Grafietti Economista, especialista em Banking e Gestão & Finanças do Esporte. 27 anos de mercado financeiro analisando o dia-a-dia da economia real. Twitter: @cesargrafietti

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