Liga Brasileira de Clubes: o desafio só está começando
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O tema da vez no futebol brasileiro é a formação da liga de clubes. O movimento, que ganhou tração há alguns dias, é uma evolução tardia quando comparamos o que se faz no Brasil em relação ao mundo desenvolvido. Mas quais os benefícios e os riscos de se formar uma liga de clubes? Vamos passar um pouco sobre isso ao longo desta coluna.
Como sempre digo, tudo tem prós e contras. Normalmente, todo e qualquer projeto costuma evoluir a partir dos prós, dos benefícios. Dessa forma, uma ideia passa a ter respaldo e se torna possível. O outro lado da moeda são os riscos, ou em versão mais popular, “o que pode dar errado”. Afinal, nem tudo que planejamos sai exatamente como pensamos, e muitas vezes a expectativa vira frustração. Se soubermos avaliar corretamente os riscos, certamente quando eles se tornarem realidade teremos mais ferramentas para enfrentá-los. Nunca é uma questão de otimismo ou pessimismo, porque projetos não dependem disso, mas de precaução e planejamento.
Uma liga de clubes de futebol tem inúmeros benefícios, mas também alguns riscos, especialmente na fase que em que estamos no Brasil, que é da construção. Levantar uma casa com erros de engenharia aumenta a chance de desmoronamento mais tarde.
Como é sempre mais fácil pensar nos benefícios, começaremos por eles. Naturalmente, uma liga permite negociações centralizadas de direitos de transmissão e de publicidade geral das competições. Permite também criação e desenvolvimento de conceitos de marca – a “Premier League”, a “LaLiga”, a “Serie A”, que são marcas que substituíram o nome de “campeonato inglês”, “campeonato espanhol”, etc – e isso tem enorme valor.
Outro aspecto que a liga pode trabalhar é o calendário. Organizar as competições a partir das necessidades de uma agenda complexa e que permita maximizar o retorno financeiro é fundamental. A Premier League tem o Boxing Day, uma rodada clássica da competição. Mas quando falamos em calendário, iniciamos a análise dos riscos.
Uma liga será melhor ou pior estruturada a depender de seus objetivos. O poder sobre seus destinos está intimamente ligado à capacidade de separar a paixão dos clubes da frieza e independência que uma gestão eficiente demanda.
Há vários aspectos que pedem atenção. Na sequência, pontuarei alguns, na certeza de que não serei exaustivo, pois existirão muitos outros.
Modelo da Liga: será uma liga de clubes da Série A e B, mas qual será o modelo estrutural? Cada série terá sua dinâmica de decisão? Serão ligas abertas, no sentido de que os 20 que disputam a Série A de um determinado ano definem sua estratégia? Ou teremos um “grupo formador”, que permanecerá gerindo mesmo se cair para a Série C, por exemplo? Isso faz diferença.
Também é importante saber como será o processo decisório. Os clubes vão eleger um presidente que terá autonomia de formar sua equipe? Ou eles elegerão toda a estrutura? Levarão os modelos políticos das associações para a “liga profissional” ou se portarão apenas como “acionistas”?
Um aspecto fundamental é a definição da governança, das regras de funcionamento da liga, que deveria considerar a completa ausência de membros dos clubes nas suas estruturas, para evitar conflitos de interesse. Conflitos que vão desde a gestão da arbitragem ao calendário.
Aliás, conflitos de interesse que hoje são, de certa forma, reduzidos à medida em que a gestão é feita pela CBF, inclusive do processo de Licenciamento de Clubes, que trouxe uma série de regras recomendadas – quando não determinadas – pela FIFA e pela Conmebol, que somente são atendidas à medida em que são controladas pela CBF.
Outro aspecto que precisa ficar claro é sobre o controle financeiro dos clubes, o famoso Fair Play Financeiro, que no Brasil está sendo implementado agora em 2021, um modelo proprietário e que visa levar os clubes ao equilíbrio no médio prazo, mas que tem resistência de alguns. Como será essa gestão numa liga?
Aliás, um parêntese importante: o relacionamento entre liga e federação – ou confederação, no caso brasileiro – é um tema importante. Há ligas em que parte da gestão é feita pela federação. Em outras, a liga se responsabiliza por tudo. Encontrar o modelo mais eficiente e adaptado à cultura e às dificuldades da indústria brasileira é de suma importância.
Neste momento, entramos num dos temas mais delicados e que tem sido uma das justificativas para a formação da liga brasileira, que é o calendário. O problema dele passa pela existência dos estaduais e de competições como a Copa do Nordeste, além de uma Copa do Brasil que começa muito cedo para clubes que disputam as competições nacionais de 38 rodadas.
Aqui trago outro parêntese: na Europa, o primeiro semestre das competições costuma ser mais leve, com competições nacionais e a primeira fase da Champions League, que geralmente é tranquila para as equipes grandes. Não é por acaso, pois dá tempo das equipes de prepararem fisicamente e evoluírem tecnicamente para enfrentar as fases decisivas das competições em alto nível. Inclusive, esse será um dos desafios da nova Champions, que terá uma fase inicial maior e mais pesada ainda no primeiro semestre da temporada.
Parêntese fechado, e temos que lembrar que um calendário eficiente demandará algumas decisões, como a redução dos estaduais, a entrada das equipes de Série A e B de forma escalonada na Copa do Brasil, ou mesmo a redução das divisões nacionais de 20 para 18 clubes. Não há calendário que seja capaz de organizar tudo isso e ainda ter datas-Fifa livres.
A temporada do futebol no Brasil começa pesada, com obrigação de conquistas nos estaduais e fase preliminar de Libertadores. E não se engane: atletas adoram ser convocados pelo Seleção Brasileira, seja por fazer parte, seja porque seu jogo é valorizado e dá oportunidade para que clubes europeus de maior expressão se interessem em contratá-los. Na Premier League pós-Brexit, o fato de ter muitas convocações para seleções dá “benefícios” para esses atletas serem contratados.
Depois de tudo isso é que vem a parte “boa”: a discussão sobre divisão de dinheiro, especialmente da venda de direitos de transmissão. Não dá para formar uma liga e querer tirar proveito individual. Liga pressupõe coletividade. Ainda que haja ajustes aqui e ali, não dá para gerar estruturas de distribuição de dinheiro que não possibilitem equilibro estrutural, deixando que a diferença seja tirada na relação direta com os torcedores, via bilheteria e programas de fidelidade, e na gestão comercial individual. Nessa hora, a discussão tem que ser tomada de forma isenta e independente.
E ainda é preciso pensar nas sanções, na utilização do STJD, da CND, nas cobranças entre clubes, na gestão dos clubes-empresas – a liga precisa ter um “know your owner” – na relação com clubes que venham a entrar em recuperação judicial, nas disputas e demandas envolvendo a FIFA, e tantas outras coisas que tornam a construção da liga algo bastante delicado e que exige análise profunda. O diabo está nos detalhes, e se tudo não estiver escrito em pedra, o risco do acordo ruir é grande.
Reforço o que disse lá no início: falar nos benefícios é fácil e prazeroso. O problema está em conhecer os riscos, dimensioná-los, trabalhar para reduzi-los e estar preparado para desafiá-los de forma consciente. E, obviamente, é preciso união, o que demanda abrir mão de algo para um benefício comum e maior.
A conferir.