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Gastar sem desperdícios: a realidade bate à porta dos clubes de futebol

Como funcionará o novo fair play financeiro para clubes de futebol na Europa e no Brasil
Por  Cesar Grafietti -
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Importante: os comentários e opiniões contidos neste texto são responsabilidade do autor e não necessariamente refletem a opinião do InfoMoney ou de seus controladores

Tenho falado muito sobre inovação e movimentos de modernização na estrutura do esporte, especialmente no futebol. O mundo anda tão alucinado que tantas coisas estão sendo desenvolvidas e nós ainda estamos vivendo sob uma pandemia feroz. Tudo seria fácil se tudo fosse fácil.

Retornamos ao início de 2020. Enquanto na Europa as competições entravam em seus momentos mais agudos, no Brasil começávamos uma nova temporada. Paramos tudo, os clubes ficaram com fluxo de caixa estrangulado, perderam receitas das partidas, tiveram que renegociar salários.

A estimativa de Andrea Agnelli, presidenta da ECA e da Juventus é de que os clubes europeus deixarão de arrecadar até € 8 bilhões por conta da pandemia.

Enquanto isso os governos nacionais inundaram os mercados de dinheiro, baixaram os juros, e com isso investidores se viram obrigados a buscar soluções de onde investir esse dinheiro todo que foi “brotando” em suas mãos. No final, o dinheiro entra na conta das pessoas e empresas, mas acaba sempre no caixa de alguém, e esse caixa precisa ser remunerado.

Nesse período em que os clubes sofreram financeiramente surgiram interesses de fundos de private equity em atividades relacionadas ao esporte, de clubes a ligas, de confederações a negócios de entretenimento.

Foi o período em que as SPACs apresentaram uma explosão de lançamentos ávidos por negócios que exploram a relação entre esporte, tecnologia e entretenimento. Clubes comprados, outros que os atuais donos tentam vender, a mudança de posicionamento estratégico da China no futebol. E uma pandemia.

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Pois bem, enquanto muita gente se organizou para explorar as inúmeras oportunidades no esporte na Europa e nos EUA, no Brasil ficamos procurando algumas moedas perdidas nos bolsos de uma calça surrada para tentar fechar as contas. O que, para ser justo, aconteceu com muita gente na Europa.

Houve dúvidas se a Inter de Milão honraria os pagamentos de salários do início de 2021, o Barcelona entrou na maior crise financeira de sua história. O mercado de transferência de atletas de janeiro de 2021 movimento cerca de € 300 milhões, queda de 70% em relação ao mesmo período de 2020 segundo estudo da Deloitte.

A transferência de atletas é importante porque costuma fazer o dinheiro circular na Europa, geralmente saindo dos clubes grandes e ricos e chegando aos menores e formadores. Sem dinheiro os clubes seguraram gastos, e isso foi travando o sistema.

Enquanto todo mundo que orbita em torno do jogo de futebol movimentava dinheiro, os clubes sofriam. E sofriam como sofreram inúmeras indústrias e negócios mundo afora.

A realidade da economia é menos do caixa astronômico da Apple e mais da gestão nervosa de fluxo de caixa das companhias que precisam faturar no dia 1º para pagar os salários no dia 25, muitas vezes precisando de um empréstimo de emergência junto a um banco.

Mas antes desse cenário catastrófico os órgãos de comando do futebol mundial já estavam trabalhando em mudanças na estrutura de controle e monitoramento financeiro do esporte.

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Havia clareza de que o futebol tinha inchado, com valores irreais, dinheiro que saia dos clubes e acabava em agentes, dificuldade em manter a competitividade e os controles financeiros. E por isso havia mudanças em curso que a pandemia acelerou.

FIFA: controles nas negociações, clearing house, limites

A FIFA anunciou agora em março uma série de iniciativas relacionadas ao controle de negociações de atletas. A entidade, que já vem falando em limitar percentuais de comissões pagas aos agentes nas transferências, informou que em 2022 terá início uma “clearing house” de transferências, sistema pelo qual todas as negociações de atletas deverão transitar.

Todo atleta deverá ter uma espécie de passaporte eletrônico e todos os registros ficam gravados no sistema, garantindo que os recursos entrem e saiam corretamente, mantendo todos os envolvidos informados sobre os reais valores a quem tem direito, mas especialmente garantindo que o dinheiro fique na indústria.

Além disso haverá uma espécie de taxa nas transações cujo objetivo é ter uma fonte de recursos que possam ser reinvestidos nos clubes formadores. Espera-se arrecada algo como € 50 milhões anuais que seriam repassados às confederações continentais, nacionais e chegariam aos clubes.

A FIFA, através da Head de Futebol Profissional Ornella Bellia, comentou sobre outras possíveis ações, como por exemplo limitar o número de atletas que cada clube pode ter sob contrato, o que ela define como “acumulação de atletas”.

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O objetivo dessa medida é justamente evitar que clubes tenham centenas de atletas sob contrato, e que ao final não pretendem utilizá-los, mas sim ganhar dinheiro com negociações.

Além disso, Ornella Bellia trouxe possibilidades para o futuro, como a criação de um algorítimo que definisse valores de direitos de atletas, ou até o que entendo como um sistema global de Fair Play Financeiro que permitisse controlar a inflação do futebol, buscando maior estabilidade para o sistema.

UEFA e o novo fair play financeiro

No início da pandemia a UEFA determinou uma série de flexibilizações no modelo de Fair Play Financeiro continental como forma de mitigar seus efeitos. Possibilidade de apresentar prejuízos maiores e receber mais dinheiro de partes relacionadas foram algumas das alterações para o período que se estende até 2022.

Mas isso foi pouco. Passados 11 anos do início do sistema que trouxe estabilidade financeira à indústria europeia de futebol, a UEFA entendeu que precisava rever o modelo. Na verdade, fala-se em Fair Play Financeiro 2.0 há algum tempo, e a pandemia apenas forçou uma aceleração dessa mudança.

As novidades ainda estão em debates entre entidade, clubes, ligas e federações nacionais, mas depois de atingir o objetivo inicial de “gastar apenas o que se arrecada”, a UEFA agora mira o objetivo de “gastar sem desperdício”. Há uma diferença entre os dois conceitos.

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Enquanto arrecadar dentro do que se arrecada permitiria que alguém que tenha 500 de receitas possa gastar 450, gastar sem desperdício indica que mesmo podendo gastar 450, esse mesmo clube passaria a ter travas que o fariam gastar menos, pois os 450 podem sim ser muito além do necessário.

A ideia passa pelo conceito da FIFA de evitar a acumulação de atletas. Muito tem se falado sobre teto salarial ou mesmo impostos sobre negociações, mas na prática a UEFA tende a adotar um modelo de controles que seja feito no início da temporada, atribuindo a cada clube um limite de gastos para salários e contratações, baseado nas receitas recorrentes. Algo parecido com que a LaLiga faz na Espanha.

Isso, e mais um limite no número de atletas sob contrato, incluindo limitação de empréstimos, é uma das possibilidades de evolução do sistema, que atingiu seu objetivo que era levar os clubes ao equilíbrio, conforme podemos ver no gráfico abaixo preparado pela UEFA para o relatório Benchmark de 2019.

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A mudança vem também porque há uma maior complexidade nas estruturas do futebol hoje em relação ao que havia em 2008, quando o modelo foi desenhado. Holdings que controlem diversos clubes em vários continentes, estruturas de negócios convergentes fora do campo de jogo, como parcerias comerciais em negociações de direitos de TV, negociações de atletas entre equipes de mesmo controle acionário.

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Modelos de controle e monitoramento precisam ser reavaliados e ajustados constantemente. Modelos são “vivos” e precisam estar prontos a atender as demandas que surgem o tempo todo.

Parte desses ajustes também serão feitos nas sanções. Atualmente os clubes que são punidos por quebrarem as regras do Fair Play Financeiro costumam ser penalizados esportivamente, e a sanção mais temida é ser proibido de disputar a Champions League. No novo desenho que está sendo pensado as sanções passam a ter caráter mais financeiro e menos esportivo.

A ideia parece estar associada à proibição de registro de atletas – o Transfer Ban já conhecido e aplicado pela FIFA – e a limitação no número de inscritos, que são mais eficientes que tirar receita dos clubes. Se o objetivo é garantir equilíbrio, o melhor é atacar os custos e não reduzir as receitas.

Não se engane: o novo modelo tende a ser mais restritivo. É o preço para garantir a estabilidade.

Fair play financeiro no Brasil

Ainda que os processos possam parecer mais lentos do que muitos gostariam, o sistema brasileiro de Fair Play Financeiro está evoluindo. Já está em curso um processo de conversas com clubes, apresentação dos cronogramas de implantação, e em breve haverá uma divulgação formal do tema.

Trata-se de uma construção que necessita de solidez. Muitas vezes é preciso dar um passo para trás se quisermos evoluir dois. A pandemia retardou a implantação, pois o objetivo de 2020 foi tentar ajudar os clubes a atravessar um período turbulento. Hoje, com mais clareza do cenário, que ainda é difícil, podemos trabalhar ajustes necessários para a estabilidade do sistema.

Há sempre quem não quer ser monitorado, há questões de trocas de comando nos clubes, mas certamente há um entendimento de que este é o caminho que nos levará ao futuro. E, analisando as evoluções sobre o tema na Europa, é possível dizer que no Brasil o sistema nascerá com o direcionamento justo.

Não há outro caminho se quisermos um futebol brasileiro mais forte. Ou continuaremos admirando e invejando os grandes clubes globais.

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Cesar Grafietti Economista, especialista em Banking e Gestão & Finanças do Esporte. 27 anos de mercado financeiro analisando o dia-a-dia da economia real. Twitter: @cesargrafietti

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