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Fair Play Financeiro: uma reflexão sobre passado, presente e futuro

Falamos muito em problemas de gestão, mas parte deles poderia ser resolvida se houvesse regras claras, firmes e sanções duras no Brasil e na Europa
Por  Cesar Grafietti -
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Importante: os comentários e opiniões contidos neste texto são responsabilidade do autor e não necessariamente refletem a opinião do InfoMoney ou de seus controladores

Toda vez que há algum movimento no mercado do futebol envolvendo grandes nomes e muito dinheiro, as vozes sobre os efeitos do Fair Play Financeiro se elevam.

Foi assim com PSG-Neymar-Mbappé e com o caso UEFA-Manchester City. Agora, voltamos ao tema com a transferência de Messi para o PSG.

Isso tudo acontecendo e ainda nem falamos sobre o Brasil. Como os atrasos salariais, de encargos trabalhistas e acúmulo de dívidas com outros clubes são recorrentes, a todo momento alguém pergunta: “E o Fair Play Financeiro no Brasil?”.

A pergunta também sempre surge quando algum clube resolve gastar o que tem (e o que não tem) para alcançar um status acima do que a realidade lhe possibilita.

Perguntas justas para comportamentos também justos, uma vez que não há regras de controle.

Falamos muito em problemas de gestão, mas parte deles poderia ser resolvida se houvesse regras claras, firmes e sanções duras no Brasil e na Europa.

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Aqui, precisamos fazer uma análise pragmática do modelo de Fair Play Financeiro europeu e o que não consegue deslanchar no Brasil.

FAIR PLAY FINANCEIRO EUROPEU: UM CRAQUE PARADO NO TEMPO

Começando pela Europa, vamos lembrar que cada país tem seu modelo de controle financeiro, que abarca todos os clubes profissionais locais.

São sistemas que vão do simples controle de pagamentos em dia, passando pelo monitoramento através de um modelo de “rating” – que é mais complexo e representa uma combinação de vários índices – e chega no que faz a La Liga, que autoriza gastos baseada numa análise entre os últimos dados econômico-financeiros reais e o orçamento da temporada seguinte.

Esses modelos controlam os clubes nacionalmente, a ponto da FIGC (Federação Italiana) rebaixar o Chievo Verona da Série B para a Série C por atraso no pagamento de impostos, ou a La Liga não autorizar o contrato de Messi com o Barcelona.

Depois vem a UEFA e seu modelo, que controla os clubes que disputam as competições continentais (Champions League, Europa League, Conference League).

São sete regras, sendo que as mais relevantes estão relacionadas ao prejuízo máximo de € 5 milhões na soma de três anos e limitação de gastos salariais em 70% das receitas, além de limitar a entrada de receitas oriundas dos acionistas e suas empresas a 30% do total de receitas que o clube faz anualmente.

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Essa estrutura funcionou bem nos primeiros 10 anos, ajudando os clubes a se reorganizarem financeiramente, reduzindo dívidas, prejuízos e equilibrando as contas. Mas como todo modelo de controle, o potencial infrator está sempre pronto a encontrar formas de burlar a lei – mesmo que não a esteja desrespeitando – e cabe ao controlador não deixar que isso aconteça.

É preciso, portanto, atualizar constantemente os controles, os modelos e as regras. É o que chamamos de “modelo vivo”.

O sistema nasceu e se perpetuou a partir de modelos geralmente simples, com poucos controles, e segundo ouvi, “tem que ser fácil de explicar para o torcedor”. Respeitosamente, discordo.

Os torcedores europeus mal sabem o que é e como se calcula o Fair Play Financeiro local e continental. E só tem ideia de que “não pode ter prejuízo”. Ou seja, a ideia de facilitar entendimentos não se concretiza.

Para piorar, os sistemas são tão limitados e frágeis que, em vez de ajudar os torcedores a entendê-lo, deixam enormes dúvidas sobre como alguns clubes nunca são punidos. Há tantas manobras e possibilidades que os torcedores colocam em dúvida a seriedade dos sistemas.

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Afinal, quando um clube é punido? Por que os clubes seguem jogando mesmo com prejuízos recorrentes e dívidas imensas? Como o Barcelona seguiu operando com tantas dívidas?

Ou seja, sistemas que aparentemente seriam fáceis de entender, mas que acabam sendo mal geridos, explicados, apresentados, de forma que os torcedores os têm em descrédito.

Para piorar, chegou uma pandemia que obrigou os sistemas a serem momentaneamente suspensos e provocou a necessidade de mudanças. Não foi apenas a pandemia, mas também a eterna reclamação dos clubes milionários que queriam gastar descontroladamente.

Esta soma permite então que surja a possibilidade de trocar o modelo atual por outro teoricamente ainda mais simples, e cuja base é o controle dos gastos salariais em 70% das receitas, mas permitindo extrapolar esse valor pagando um imposto, a “Luxury Tax”.

No lugar de aproveitar a pandemia para apertar ainda mais, tornando o sistema mais controlado e acelerando a recuperação dos clubes, parecem optar por algo “simples e fácil de explicar ao torcedor”, mas que não controla nada. Assim, ao menos não precisarão explicar para ninguém o motivo de alguns serem sancionados e outros não.

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Isso parece bacana, mas é uma forma de aumentar o desequilíbrio do esporte. Afinal, o pagamento dessa taxa seria feito de duas formas: aporte de recursos dos acionistas ou novas dívidas. E quem pode fazer isso? Clubes com donos. Ou seja, um duro golpe nas associações como Real Madrid e Barcelona, e um privilégio para quem tem “família rica”, como PSG, City, Bayern.

O Fair Play Financeiro ajudou o futebol a se equilibrar mesmo sendo bastante simplório na sua estrutura.

É uma ferramenta importante de gestão e sustentabilidade, mas está caindo por terra por ter demorado a ser repensado e porque trilha um caminho preguiçoso e elitista.

E NO BRASIL?

No Brasil, estamos num processo lento de implantação. Formulado em 2019, ele teve seus primeiros testes em 2020 e o primeiro cálculo formal em 2021. O modelo adotado será o do rating. A ideia é combinar 10 índices financeiros, de forma a capturar por completa a condição econômico-financeira dos clubes.

Os índices de maior peso são aqueles que medem o famoso EBITDA, que nada mais é que a diferença entre as receitas e os custos e despesas. Esta informação é importante pois indica se os clubes gastaram dentro de suas possibilidades, e quanto maior a sobra (o EBITDA), maior a capacidade de reduzir as dívidas.

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Depois, esse número é comparado com as dívidas, especialmente as de curto prazo. É uma forma de confirmar que o clube está operando de forma a conseguir reduzir suas dívidas.

Lembrem-se sempre que há dois objetivos básicos no sistema de Fair Play Financeiro: (i) levar os clubes a terem condições de pagarem suas contas em dia e reduzirem as enormes dívidas, e (ii) controlar o recurso que entra no sistema sem lastro, para evitar desequilíbrios momentâneos.

Por isso, se o EBITDA é negativo ou muito pequeno, sobra pouco dinheiro para pagar as dívidas, e isso indica que o clube está operando com custo acima do que pode pagar, sendo financiado por dívidas.
Por fim, existem dois itens que controlam investimentos em aquisição de atletas e a estrutura financeira.

Cada item tem um peso, e o resultado combinando gera uma nota:

AAA, AA, A, B, C, D, E.

Os clubes que tiverem entre AAA e B estarão aprovados e os demais precisarão apresentar um plano para se enquadrarem à nota mínima (B) dentro de um prazo máximo.

Além disso, ainda serão cobradas declarações de adimplemento, de forma a garantir que as contas estejam sendo pagas em dia. Se houver atrasos, sanções serão aplicadas.

“Ah, mas isso é complicado, o torcedor não sabe fazer as contas”.

Na Europa, mesmo com modelos simples, nenhum torcedor faz conta. Mas sabe qual a lógica: não atrasar pagamentos e não ter prejuízo. Do meu lado, prefiro explicar dez vezes para que os torcedores entendam, a ter que me esconder para não explicar o motivo de alguns clubes nunca serem sancionados.

No que diz respeito ao dinheiro de acionistas e mecenas, serão aceitos patrocínios de até 30% das receitas totais. Acima disso, o valor será desconsiderado dos cálculos.

E as dívidas estarão nas contas, ou seja, clubes que arrecadam pouco ou tem EBITDA pequeno ou negativo serão penalizados nos cálculos em função das elevadas dívidas com sócios, associados e eventuais acionistas.

O futebol precisa fechar suas contas sozinho, sem depender de alguém que um dia resolva ir embora.

Sobre as sanções, se a ideia é equilibrar financeiramente os clubes, então a opção foi por restringir contratações até que o rating de equilíbrio seja atingido. Não contrata, não gasta, se equilibra.

Com o tempo e o equilíbrio, o modelo deve passar por simplificações, mas sempre buscando conexão entre as diversas partes das demonstrações financeiras.

Vimos na Europa que os clubes adotam práticas para burlar regras. Quanto mais amarradas, menor é a margem de manobra. Se for possível ser antecipativo, como na La Liga, melhor. Garante o equilíbrio prévio e evita que clubes se beneficiem esportivamente para serem sancionados após conquistas.

Ainda temos desafios a serem ultrapassados. Muitos clubes não entendem ou não querem seguir um modelo de controle, porque não percebem o valor para a indústria. Seguimos tentando vencer esses desafios.

Afinal, o futebol brasileiro precisa evoluir, ou então aceitar definitivamente que será uma opção secundária de entretenimento.

Cesar Grafietti Economista, especialista em Banking e Gestão & Finanças do Esporte. 27 anos de mercado financeiro analisando o dia-a-dia da economia real. Twitter: @cesargrafietti

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