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Da qualidade de jogo ao preço do ingresso: como os dados moldam o esporte mundial

O problema do entendimento tardio da necessidade de evolução no futebol é que perdemos em vários campos, incluindo a formação dos atletas
Por  Cesar Grafietti
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Importante: os comentários e opiniões contidos neste texto são responsabilidade do autor e não necessariamente refletem a opinião do InfoMoney ou de seus controladores

Vivemos a era da transformação tecnológica. Em todas as indústrias e segmentos da vida as palavras de ordem são Inteligência Artificial, Machine Learning, dados, processos disruptivos. “Data is the new gold”, e todo mundo corre atrás de aplicações que transformem seus negócios.

Assim como em todas as indústrias, a do esporte está passando por um período de transformação digital que vai muito além dos e-sports. Revolução digital que muda o jogo, muda a forma de atuar, muda a estratégia, a formação de atletas. Dados e tecnologia usados para melhorar o desempenho humano e não substituí-lo.

Há uma realidade fora do Brasil que está mudando a forma como os jogos se desenvolvem, muitas vezes sem que os torcedores percebam. É a revolução silenciosa que traz mais qualidade, mais produtividade, sem mudar o objetivo central do negócio (entreter) nem seus atores (atletas). São tantas as aplicações que optei por resumir o tema a dois esportes: o basquete e o futebol. Ainda assim sem ser exaustivo.

Na temporada 2013/14 tivemos os primeiros movimentos de equipes da NBA (basquete profissional americano) em direção ao uso de tecnologia na gestão das equipes, com a introdução de vídeo tracking das partidas, como forma de coletar informações individuais dos atletas e auxiliar em seu desenvolvimento. A partir dos resultados obtidos com estas informações as equipes da NBA passaram a utilizar de forma consistente informações estatísticas, dados, inteligência artificial, e isto mudou o jogo.

Primeiro, a ideia básica de que usar os arremessos da linha de 3 pontos poderia ser mais eficiente que trabalhar as bolas de 2 pontos. Parece óbvio, mas além da ideia havia a barreira cultural de um esporte estruturado à base de atletas gigantes, pivôs que faziam o jogo embaixo da cesta, com enterradas espetaculares. A partir do vídeo tracking foi possível desenvolver estratégias de movimentação de equipe que permitiam que surgissem cada vez mais oportunidades de arremessos de 3 pontos. Para se ter uma ideia, a linha de 3 pontos na NBA foi criada em 1979. Na temporada 85/86 Larry Bird foi o destaque dos lances de 3 pontos, com 82 cestas em 82 partidas. Este desempenho seria apenas o 130º no ranking da temporada 2018/19.

Analisando os 3 últimos grandes vencedores da NBA (San Antonio Spurs, Golden State Warriors e equipes onde LeBron James atuava), todos tinham como característica trabalhar mais velocidade, com atletas talentosos e menor dependência de pivôs no garrafão. Claro que para isso funcionar é preciso que haja atletas talentosos. E para isso também são utilizadas análises estatísticas, desde a escolha dos atletas que comporão o elenco – padrão “Moneyball” – até a análise de como os atletas se comportam em quadra, como arremessam. Desta forma, comparam movimentos reais com movimentos ideais, e isto é utilizado para a prática de treinamentos específicos, melhorando o rendimento do atleta.

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Isto se vê na NBA hoje, que começa a usar análise de dados das partidas para definir estratégias de jogo e formação de equipe em quadra. Por exemplo, as equipes estão começando a analisar não apenas seus atletas, mas também os adversários. Assim, aplica-se o uso de inteligência artificial e algoritmos para avaliar a escalação adversária em quadra e suas características durante o jogo. A partir dessa análise é possível escalar a equipe que melhor se adapta ao adversário. Tecnologia auxiliando os treinadores a obter o melhor desempenho possível.

No futebol nosso de cada dia o uso de dados e ferramentas de tecnologia está cada vez mais intenso. Dentro e fora de campo.

Por exemplo, as equipes de gestão de estádio utilizam comportamento de demanda para definir preço de ingressos dos jogos. No Brasil isto é mais recente, mas na Europa e nos EUA é bastante difundido há tempos. O NY Knicks joga em Nova York, cidade repleta de turistas mas também de atrações.

Mesmo atuando no mítico Madison Square Garden, a gestão de ticketing (definição de valor de tickets dos jogos) trabalha analisando o dia e horário da partida, quais as atrações da cidade que competem com o jogo, qual o adversário e como a equipe está na classificação para definir a melhor estratégia de preço. O basquete compete com o teatro, o cinema, as luzes da Times Square, e a equipe não pode se dar ao luxo de ter um ginásio vazio.

A LaLiga espanhola trabalha suas partidas a partir de informações estatísticas combinadas do desempenho de público histórico, da posição das equipes na tabela e com 30 dias de antecedência tem uma previsão de público esperado em cada jogo. Assim pode trabalhar o marketing focado nas partidas com tendência de menor público.

As áreas de marketing dos clubes europeus de futebol já contam com profissionais que se apoiam no uso de dados para conhecer seu público e definir estratégias, inclusive com análise de presença em redes sociais. Há sempre dois públicos nos times globais: o torcedor local, que é tratado e pensando de uma forma, e o torcedor global, que também consome e demanda ações específicas para se manter fiel à marca. Afinal, não basta Van Dyik, Salah e Klopp fazerem a parte de eles em campo, se fora das quatro linhas a gestão não for capaz de transformar arte em dinheiro.

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A revolução tecnológica do futebol tem se mostrado muito relevante também dentro de campo, sendo mais um elemento a dar subsídios para que treinadores e equipe técnica tomem decisões de jogo.

Num ambiente onde 10 a 15 clubes se destacam pelo elevado montante de receitas que geram, é fundamental que os demais clubes sejam eficientes na gestão dos recursos limitados. Por isso, montar elencos e desenvolvê-los passa necessariamente pela capacidade de utilizar informações de maneira precisa. A referência neste tema é Ramón “Monchi”, espanhol que trabalha no Sevilla.

Segundo ele, utilizar dados na formação do elenco, assim como em “Moneyball”, é mais que ser eficiente na compra, gastando pouco em atletas qualificados mas desconhecidos. É também reduzir o risco contratar errado. O futebol é um jogo de combinação e as análises são complexas, pois o campo é grande, há muitos atletas, as funções e características precisam ser cruzadas com a expectativa de jogo coletivo. A escalação de um lateral direito tem que compatível com o meio-campista, o zagueiro, o atacante. As funções no futebol moderno se confundem e estão ligadas, então a análise combinatória entre as características do atleta e de seus companheiros, associada ao perfil tático da equipe, é uma das chaves do sucesso de uma contratação.

Na gestão do elenco também se usa tecnologia. A análise de desempenho dos atletas ajuda as equipes técnicas a definir características individuais, como por exemplo, se um atleta é melhor jogando em casa ou fora; em partidas importantes ou comuns; contra adversários fracos ou difíceis. Os atletas possuem padrões e as análises os identificam e possibilitam ao treinador a melhor escolha. E assim como no basquete, a análise dos adversários permite à equipe técnica avaliar a melhor estratégia de jogo e melhor escalação, além de permitir ações específicas em jogadas ensaiadas.

Atualmente há algumas empresas que trabalham softwares estatísticos no futebol, como a OPTA, a Wyscout e a ISF, assim como no Brasil há desenvolvimentos interessantes como a Footure.  Mas os clubes de ponta já estão desenvolvendo softwares próprios, que trabalhem os conceitos de acordo com a visão de cada equipe. Liverpool, Bayern, Manchester City, Barcelona, Sevilla, Leicester são alguns clubes que possuem estruturas de análise de dados sofisticadas, que vão além do Scouting (uso de análise de desempenho dos atletas). Eles possuem PHDs  em Matemática, Física e Cientistas de Dados em suas equipes, desenvolvendo softwares proprietários capazes de otimizar as estruturas dos clubes.

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Com isso definem claramente o que é um passe curto, um passe longo, uma roubada de bola eficiente. Assim, o resultado das análises fica mais aderente à visão de jogo da equipe. No Brasil alguns poucos clubes estão trabalhando estruturas além do scouting, e o melhor exemplo é o Athletico Paranaense. A grande maioria ainda engatinha nesse campo.

Não é só na contratação de atletas, escalação e monitoramento de equipe. Nos treinamentos, especialmente no desenvolvimento das categorias de base, o uso dos dados e de tecnologia é capaz de melhorar o desempenho dos atletas.

O vídeo tracking e monitoramento via GPS associados à análise de desempenho técnico permitem treinamentos específicos que ajudam a corrigir deficiências técnicas e desenvolver habilidades. Não é à toa que vemos proliferar na Europa atletas de ótimo nível técnico.

Nem falo de craques fora-de-série, mas atletas que são mais que eficientes, e conseguem ter desempenho que antes eram esperados apenas de sulamericanos. Isto reduz a demanda por nossos atletas, e não podemos esquecer que a venda desses atletas é uma das receitas mais importantes para os clubes brasileiros. Perder espaço na Europa significa que nossos clubes perdem receitas. Esperamos um dia não precisar vender tantos atletas, mas esta é uma realidade ainda distante para a maioria.

Chegamos aqui e nem mencionamos o uso de dados na avaliação de desempenho físico dos atletas, que ajudam a prevenir lesões musculares. Só mais uma forma de trabalhar informações que podem ser úteis e decisivas.

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O problema do entendimento tardio da necessidade de evolução no futebol é que perdemos em vários campos: deixamos de formar bem nossos atletas, e isto diminui a qualidade do que vemos em campo; deixamos de explorar possibilidades táticas por desconhecer os adversários; gastamos mal e muito além do necessário para montar equipes, pois o tempo todo os clubes precisam corrigir elencos com novas contratações; por fim, recebemos menos quando vendemos atletas mais baratos do que valeriam.

Pep Guardiola disse recentemente que o departamento de Scouting do Manchester City, comandado por Txiki Begiristain é o mais importante do clube, pois as contratações indicadas por ele, baseada nas análises de dados dos atletas, economizam dinheiro do clube e tempo do treinador, já que os atletas chegam prontos a executarem o que este tem em mente.

Agora, não dá para ter ilusões. Não há Erro Zero. O esporte tem o fator humano como principal característica. O uso de tecnologia não vai acabar com a dificuldade de adaptação aos companheiros de equipe, às cidades, ao clima. E haverá sempre o talento a desequilibrar as estatísticas.

Aliás, quanto mais tecnologia em campo, maior será o valor dos talentos, capazes de desmontar estruturas milimetricamente construídas em computador. Mas a tecnologia será uma aliada na potencialização da qualidade do espetáculo, seja do atleta, seja da equipe. Não vencerá sozinha, mas se bem utilizada pode ser o elemento que fará a diferença na pontuação final.

Cesar Grafietti Economista, especialista em Banking e Gestão & Finanças do Esporte. 27 anos de mercado financeiro analisando o dia-a-dia da economia real. Twitter: @cesargrafietti

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