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Acaba a era da exuberância no futebol – e os clubes vão sentir o impacto

Todo ciclo de exuberância tem seu fim, que é o momento em que se deve colocar os pés-no-chão, e repensar as estruturas para recolocar a máquina nos trilhos
Por  Cesar Grafietti -
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Importante: os comentários e opiniões contidos neste texto são responsabilidade do autor e não necessariamente refletem a opinião do InfoMoney ou de seus controladores

No momento de paralisação que vivemos, um dos temas que mais vem aos debates é sobre como será o mundo, e especialmente o futebol, quando voltarmos à normalidade, seja ela qual for. Dado o cenário de enormes incertezas, trata-se de um exercício de adivinhação, mais que um exercício de lógica.

Nesse sentido, e provocado em diversas “lives” e conversas que tenho participado, vou abordar o tema do futuro da indústria do futebol, baseado no passado recente. Sem bola de cristal, sem cartas na mesa, apenas tentando apelar para os sinais de mercado e bom senso.

Primeiro, o futebol é parte da economia, mas tem comportamento que foge à média do que se observa. O que mostra isso é o exemplo brasileiro, e comparamos abaixo a evolução do PIB com a evolução das Receitas Totais e Recorrentes dos 27 clubes que compõem a análise anual do Itaú BBA.

Claro que a magnitude da variação é menos relevante, e o que temos que analisar é a direção. Note que entre 2013 e 2018 as direções de evolução são diferentes, inclusive nos anos de recessão (2015 e 2016) quando as receitas cresceram. Ou seja, o futebol não parece ter uma correlação tão grande com o PIB, pelo menos nos anos observados.

Mas voltemos para a economia. Antes da Covid-19 havia uma linha de economistas que dizia que o mundo entraria numa forte recessão com perda no valor dos ativos, baseado em sinais como o volume de endividamento das empresas americanas. Veja o gráfico abaixo.

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Se tomarmos o valor da dívida das empresas em relação ao PIB americano teríamos a repetição do ocorrido em dois momentos recentes: a bolha das Pontocom, no início dos anos 2000 e a crise do Subprime em 2008/2009. O mais interessante é observar que o crescimento da dívida não acompanha o PIB e nem a renda real das pessoas, como veremos no gráfico abaixo.

Note que a variação do PIB americano tem sido estável desde 2010, acima dos 2% ao ano. Ou seja, o PIB cresceu mas as dívidas cresceram mais, repetindo cenário parecido com o das crises anteriores. Um pouco mais erráticos são a Zona do Euro e o Brasil, com oscilações mais sensíveis, especialmente a queda europeia em 2018 e 2019, cuja variação do PIB foi praticamente zero.

Vamos então para a renda, que no caso do futebol é a variável que mais importa, uma vez que é atrás da renda das pessoas que todos estão, dos clubes aos detentores dos direitos de transmissão, passando pelas marcas que se associam aos clubes.

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Note que o comportamento da renda média mensal por habitante (não é PIB Per Capita, mas renda efetiva) é de quase estabilidade no período, exceto por algum crescimento na Alemanha e EUA. Ou seja, a principal fonte receita dos clubes, que é a renda dos torcedores, praticamente não se alterou ao longo do período. Mas veremos a seguir como se comportou o valor dos direitos de TV das principais competições europeias.

Aquilo que todos estão carecas de saber, mas que em imagem fica claro: os valores dos direitos de TV das competições de futebol europeias cresceram astronomicamente, especialmente os da Premier League e de LaLiga. As variações são as seguintes:

Mesmo no Brasil, enquanto a renda cresceu 2,46% entre 2010 e 2018, as receitas recorrentes do futebol cresceram 83,9%. Aliás, falando em receitas totais na Europa, veja os dados abaixo, considerando todos os países europeus.

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Ou seja, se lembrarmos que nem o PIB nem a Renda Média das pessoas cresceu na mesma proporção ao longo do período, então é possível dizer que houve, de fato, valorização do produto Futebol, seja como atividade fim, seja como veículo de divulgação de marcas.

Graças a esta valorização todos os valores envolvidos na cadeia do esporte cresceram, de salários a negociações de atletas, cujo impacto final foi uma retroalimentação do aumento das receitas. Afinal, para manter custos cada vez mais altos é necessário ter receitas maiores.

Então subiram os valores dos ingressos, os valores dos espaços de publicidade, e surgiram outras formas de receitas, como a exploração das redes sociais e dos canais de comunicação direta entre clube e torcida.

No fim, o impacto acaba sempre no torcedor. E vamos a algumas informações sobre este tema, para ir construindo nossa tese. Uma delas é o preço do futebol nos países das 5 maiores ligas. A informação abaixo representa o custo de um assinante para ter direito a ver a liga local e as partidas da Champion’s League, que geralmente estão no pacote em que se permite ver outras ligas. Inclui inclusive os pacotes de streaming nos países que tem esta modalidade, como a DAZN na Itália e a Amazon na Inglaterra.

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No Brasil, considerando assinatura da TV Paga, mais o Premiere, o valor representa algo perto de R$ 199,00 mensais, o que significa dispender perto de 8% da renda média mensal se quiser ver as partidas de futebol do Brasileiro e da Libertadores. Se quiser adicionar Champions League e ligas europeias, além de Sulamericana, o valor será maior, sem dúvida.

Mas quando analisamos sob a ótica de quem compra os direitos e os transmite, o cenário não é exatamente positivo. Os números de 2019 da Sky Itália, por exemplo, mostram o seguinte:

  • Receitas: € 3,29 bi (+ 10% em relação a 2018)
  • Assinantes: 5,2 milhões (+ 6% em relação a 2018)
  • Resultado Operacional: Prejuízo de € 71 MM, motivado pelo aumento de € 456 milhões nos custos com direitos de transmissões de competições esportivas.

Ou seja, mesmo aumentando receitas e número de assinantes, a operadora detentora dos direitos de transmissão da Serie A e da Champions League apresentou prejuízo no primeiro dos 3 anos de contrato de transmissões das competições. Significa que será necessário fazer alguma mágica para em dois anos reverter o prejuízo e gerar valor para o acionista.

Aliás, já seria mágica, mas agora com os efeitos da Covid-19 o cenário é simplesmente impossível, pois o efeito direto na renda das pessoas certamente fará com que as assinaturas não tenham reajuste, e que o número de assinantes caia.

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Outro exemplo de problemas foi visto na recente renovação dos direitos de transmissão da badalada Premier League. Os valores de transmissão domésticos foram renovados com redução de 9% em relação ao ciclo anterior. Por enquanto foi compensado pelo crescimento das transmissões internacionais, que foi de 11% superior. Ou seja, os valores dentro do Reino Unido já estavam acima do que gera valor para quem os compra.

Até aqui temos o seguinte: mundo vivia um cenário de crescimento econômico pífio, sinais negativos de endividamento das empresas, indicando potencial crise se aproximando. Além disso, futebol com receitas crescendo além da economia, inflando os valore da indústria, mas já apresentando sinais de esgotamento no elo que gera os maiores valores na cadeia. Ou seja, os sinais de que o ciclo de exuberância estava em risco eram evidentes.

E daí vamos aos clubes. No final de 2019 o presidente da Juventus e também da ECA – European Club Association, que é a associações de clubes europeus – o italiano Andrea Agnelli fez uma palestra na Universidade de Oxford alertando para o fato de que o futebol estava entrando num período de recessão, baseado em 3 aspectos:

  • Os custos envolvendo o futebol estavam saindo do controle, mesmo com receitas crescentes, mas cada vez mais em risco: tendência de menos dinheiro das TVs e redução do mecenato com as práticas de Fair Play Financeiro;
  • As 5 maiores ligas canibalizaram as demais, reduzindo o interesse local pelo futebol, e isso traz sérias consequências para o futuro do esporte;
  • Há um excesso de partidas e competições, e isso é anti-econômico: excesso de oferta significa queda de valor;

O principal líder dos clubes europeus pensava isso antes da Covid-19. Baseado nos dados que vimos anteriormente, é natural que tenhamos que pensar um futebol diferente a partir do retorno à normalidade. Quão diferente? Não se sabe, mas alguns caminhos parecem começar a se desenhar:

  • Queda nos valores dos direitos de TV: é possível que os novos contratos venham mais baixos, mesmo com a entrada em cena de novos players de streaming, ou mesmo as ligas tentando operar suas próprias competições. Haverá menos dinheiro no mundo, pelo menos nesta retomada.
  • Menos partidas e competições: não faz sentido tantos jogos e competições, que competem entre si. Há um excesso de oferta do produto. Há necessidade de duas Copas na Inglaterra, além da Premier League? Há necessidade de 20 clubes nas ligas nacionais? É preciso campeonatos estaduais desinteressantes e pouco inteligentes no sentido do melhor uso do capital humano?
  • A ideia de concentração e super-competições pode ser questionada, colocando em check a Super Champions League e o Mundial de Clubes inchado;

Isto significa que então veremos os atletas deixarem de ganhar milhões e os clubes empobrecerem? Não, não é isso. Os valores envolvidos no futebol tendem a cair, mas ainda assim continuarão elevados, e se o futebol souber se organizar neste momento, com novas ideias e ajustes que o mantenham relevante, será um dos primeiros a receber dinheiro quando a economia retornar a alguma normalidade.

Questionar os valores do futebol é ignorar sua importância e o impacto das atividades na economia dos países. No Brasil, segundo estudo da EY, do qual colaborei, a futebol representa pouco mais de 0,7% do PIB e contribui com mais de 150 mil empregos. Na Espanha representa cerca de 1,4% do PIB segundo matéria do jornal AS. A Premier League recolheu cerca de € 3,6 bi em impostos em 2018 e gerou cerca de 120 empregos diretos no Reino Unido.

O futebol será impactado como tantas outras atividades, a partir da vida de cada um de nós. Já seria independentemente da Covid-19. Todo ciclo de exuberância tem seu fim, que é o momento em que se deve colocar os pés-no-chão, e repensar as estruturas para recolocar a máquina nos trilhos.

Cesar Grafietti Economista, especialista em Banking e Gestão & Finanças do Esporte. 27 anos de mercado financeiro analisando o dia-a-dia da economia real. Twitter: @cesargrafietti

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