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Pedra cantada

Conforme previmos, a desvalorização do real levou de fato à redução expressiva do passivo externo líquido do país, principalmente no setor privado. Cai por terra, assim, o argumento de que a redução da Selic poderia afetar a estabilidade financeira das empresas endividadas em dólares; ao contrário, desse ponto de vista, o setor privado saiu mais fortalecido
Por  Alexandre Schwartsman -
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Importante: os comentários e opiniões contidos neste texto são responsabilidade do autor e não necessariamente refletem a opinião do InfoMoney ou de seus controladores

Contestei em coluna recente a visão defendida pelo Banco Central (BC), a saber, que haveria um piso para a taxa Selic abaixo do qual seus efeitos se manifestariam ao contrário, isto é, contraindo – ao invés de expandir – a atividade econômica e portanto, afastando ainda mais a inflação da meta.

Segundo o BC, isso ocorreria por conta da piora dos balanços das empresas endividadas em dólares, uma vez que taxas de juros mais baixas levariam ao fortalecimento daquela moeda face ao real e, portanto, ao aumento da dívida expressa em moeda local.

Assim, argumenta o BC, essas empresas diminuiriam tanto o emprego quanto o investimento, com efeitos adversos sobre o produto, reduzindo adicionalmente a inflação.

Notei, no entanto, que, ao olhar apenas para o lado passivo dos balanços, o BC perdia de vista os consideráveis ativos externos ​​acumulados pelo setor privado.

De fato, conforme resumido na tabela abaixo, embora o setor privado tenha registrado em dezembro do ano passado um passivo externo líquido equivalente a US$ 863,7 bilhões, sua exposição efetiva às flutuações da moeda seria bem menor que a sugerida pelo Banco Central.

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A tabela revela que a maior parte do passivo externo líquido do setor privado era denominada em moeda local, correspondendo principalmente ao estoque de investimento direto estrangeiro.

Segundo nossas estimativas, com base nos dados do BC, o passivo externo líquido privado em moeda local totalizava US$ 948,4 bilhões naquele momento, enquanto os denominados em moeda estrangeira eram negativos (ou seja, eram ativos externos líquidos), equivalentes a US$ 84,7 bilhões.

Nessas circunstâncias, o real mais desvalorizado fortaleceria, em média, os balanços do setor privado. Dito de outra forma, o passivo externo líquido privado diminuiria à medida que o dólar se fortalecesse, ou seja, quem corria o risco de câmbio era o investidor estrangeiro.

A tabela abaixo atualiza esses números para março de 2020, revelando ser exatamente isso que ocorreu. Para o país como um todo (tanto setor público como privado), o passivo externo líquido caiu de US$ 731,9 bilhões para apenas US$ 362,5 bilhões.

Note-se que isso não resultou do comportamento do passivo externo líquido em moeda estrangeira, que permaneceu praticamente estável (US$ 315,2 bilhões em março de 2020 contra US$ 318,6 bilhões em dezembro de 2019).

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Tal melhora expressiva decorreu, na verdade, do declínio substancial no passivo externo em moeda local, conforme havíamos previsto, que caiu de US$ 1.050,5 bilhões em dezembro de 2019 para US$ 677,7 bilhões em março de 2020, refletindo a valorização do dólar no período, de R$ 4,03/US$ para R$ 5,48/US$ (cotações de final de trimestre).

Esse movimento teve efeito principalmente sobre o setor privado. Seu passivo externo líquido em moeda local caiu de US$ 948,4 bilhões para US$ 604,7 bilhões no primeiro trimestre do ano, um impacto de US$ 343,7 bilhões, expresso logo abaixo.

Vale dizer, como previsto, o fortalecimento do dólar melhorou os balanços do setor privado, efeito contrário àquele postulado pelo BC.

Obviamente, isso não é verdade para todas as empresas locais, pois estamos lidando com números agregados aqui, sem a granularidade necessária para chegar a conclusões para cada empresa em particular.

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No entanto, os dados indicam que os receios do BC não se materializaram na época e permanecem improváveis (para dizer o mínimo), à luz da estrutura do passivo externo líquido resumida nas tabelas acima.

Nesse ponto, um analista modesto evitaria falar “eu te disse”, mas tal qualificação dificilmente se aplicaria a mim.

Repito, assim, o desafio: mesmo que uma taxa Selic mais baixa fosse a principal causa do dólar mais caro (o que não é verdade: prêmios de risco e preços de commodities são bem mais importantes), não há razões para acreditar que isso levaria a uma deterioração tamanha dos balanços das empresas que provocasse um impacto na atividade econômica e na inflação contrário ao normalmente esperado.

Se restava qualquer dúvida a respeito, os dados aqui apresentados devem tê-la eliminado por completo.

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Alexandre Schwartsman Alexandre Schwartsman foi diretor de assuntos internacionais do Banco Central e economista-chefe dos bancos ABN Amro e Santander. Hoje, comanda a consultoria econômica Schwartsman & Associados. Formou-se em administração pela Fundação Getulio Vargas, fez mestrado em economia na Universidade de São Paulo e doutorado em economia na Universidade da Califórnia em Berkeley.

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