O mito do estado mínimo

Dados levantados pelo Tesouro Nacional mostram que os três níveis de governo no Brasil gastam hoje mais do que em 2016, apesar do teto de gastos
Por  Alexandre Schwartsman -
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Houve quem manifestasse surpresa quando da divulgação do novo conjunto de emendas constitucionais acerca do tamanho estimado do gasto público no país, pouco menos da metade do PIB no ano passado, correspondente a R$ 3,5 trilhão, medidos a preços do segundo trimestre deste ano. Espero que não os leitores desta coluna, que já haviam sido apresentados a este conjunto de dados em coluna recente, quando explorei precisamente a evolução da despesa pública no país.

Estamos acostumados a acompanhar os gastos do governo federal, divulgados mensalmente pelo Tesouro Nacional, série histórica que se iniciou em 1997 (embora haja esforços de reconstrução dos números pelos mesmos critérios a partir de 1991). Em que pese sua utilidade, inclusive pelas tentativas de compatibilização do resultado do governo central com o resultado estimado, segundo metodologia distinta, pelo Banco Central (conhecido como Necessidade de Financiamento do Setor Público), a verdade é que ele nos oferece uma visão parcial do resultado fiscal do governo, deixando de lado tanto estados quanto municípios.

Mais recentemente, porém, o próprio Tesouro tem feito um esforço considerável para ampliar o retrato, estimando receitas e despesas dos três níveis de governo, trabalho que tive a oportunidade de apresentar em capítulo de livro organizado por Affonso Pastore e publicado (em PDF) pelo Centro de Debate de Políticas Públicas (CDPP) (link aqui). Os números são calculados com base na metodologia do Manual de Estatísticas de Finanças Públicas do Fundo Monetário Internacional, representando visão não só mais moderna acerca do tamanho dos fluxos do governo, como também integradas à metodologia das contas nacionais, as mesmas utilizadas para o cálculo do PIB.

A tabela acima resume a evolução das despesas do governo (medidas a preços constantes do segundo trimestre deste ano) desde 2010, quando a atual série começou.

Há, além da diferença em termos de cobertura, também distinções importantes em termos de conceitos entre esta série e o resultado do governo federal. Sem querer esgotar o assunto (interessados podem explorar o capítulo do livro acima referido), quero chamar a atenção para as seguintes questões:

a. Enquanto na metodologia tradicional os gastos com pessoal compreendem tanto o que é pago a trabalhadores na ativa quanto a inativos, a remuneração de empregados refere-se apenas aos funcionários ativos (inativos estão incluídos na conta de benefícios sociais);
b. Por outro lado, inclui-se nesta remuneração as contribuições feitas para a aposentadoria do funcionalismo, da mesma forma que se inclui na folha de pagamento de uma empresa privada não apenas os salários, mas também os encargos (dentre os quais contribuições previdenciárias);
c. A nova metodologia separa o pagamento de juros do recebimento de juros (por exemplo, sobre reservas internacionais, ou empréstimos ao BNDES), enquanto a antiga contabiliza o resultado líquido de despesas menos receitas de juros;
d. Segundo a nova metodologia, os investimentos não são contabilizados como despesas (aparecem como aquisição de ativos não-financeiro), isto é, o número de quase 50% do PIB não contempla os investimentos dos três níveis de governo; por outro lado, as estimativas da “depreciação” dos bens públicos (consumo de capital fixo) são incluídas entre as despesas, embora não representem saída do caixa.

Isto dito, o que há para destacar?

Em primeiro lugar, a trajetória de alta constante dos gastos públicos, mesmo após a promulgação da emenda constitucional 95, o “teto de gastos”. Em 2016, quando a emenda foi aprovada, o governo geral gastava R$ 3,37 trilhões; no ano passado, R$ 3,46 trilhões (e R$ 3,44 trilhões nos 12 meses até junho deste ano).

Note-se que houve queda do gasto com juros no período (de R$ 692 bilhões para R$ 605 bilhões). Já os gastos primários (sem investimento e, no caso, sem considerar o consumo de capital fixo) aumentaram de R$ 2,57 trilhões (37,2% do PIB) para R$ 2,73 trilhões (38,4% do PIB).

Duas despesas representam praticamente a totalidade do aumento observado de 2016 a meados de 2019: R$ 55 bilhões se originam do aumento dos gastos com funcionalismo; R$ 100 bilhões vêm de maiores despesas com benefícios sociais, que representam principalmente aposentadorias e pensões pagas tanto aos egressos do setor privado como a funcionários inativos (e pensionistas), embora também capturem programas assistenciais como o Bolsa-Família. À luz, contudo, da evolução deste último, o aumento dos benefícios sociais reflete na prática gastos maiores com pensões e aposentadorias.

Em contrapartida, o uso de bens e serviços, que se relaciona aos serviços providos pelo governo (medicamentos, suprimentos, merenda escolar etc.), permaneceu praticamente inalterado de 2016 para cá e bem inferior ao registrado em 2014, revelando piora na prestação de serviços.

É também contra este pano de fundo que se observa a forte queda do investimento público: R$ 11 bilhões a menos entre 2016 e 2019. Todavia, comparado a 2014, quando o investimento bruto ultrapassou R$ 181 bilhões (2,4% do PIB), o nível atual (pouco superior a R$ 90 bilhões, ou 1,3% do PIB) revela a natureza do problema do gasto público no país.

A verdade é que a elevação persistente do dispêndio público obrigatório, como funcionalismo e previdência (principalmente), vem expulsando o gasto com a provisão de serviços à população, bem como levando o investimento do governo abaixo dos níveis estimados para a reposição do capital público consumido pela depreciação, como mostram tristemente os viadutos paulistanos.

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É neste contexto que se inserem as reformas fiscais. Iniciamos com a previdenciária, mas, como sugerido pelos números acima, isto não esgota o assunto. As novas propostas, que pretendo examinar nas próximas colunas, tentam lidar precisamente com a elevação persistente das despesas obrigatórias e abrir espaço no orçamento do governo, em seus três níveis, para a prestação de serviços e investimentos, em detrimento dos gastos que até agora beneficiaram principalmente uma parcela reduzida da população: o funcionalismo.

Quem argumenta que o objetivo seja precisamente o de promover o “estado mínimo” precisa urgentemente entender a mensagem que os técnicos do Tesouro Nacional têm se esforçado para levar à sociedade.

Alexandre Schwartsman Alexandre Schwartsman foi diretor de assuntos internacionais do Banco Central e economista-chefe dos bancos ABN Amro e Santander. Hoje, comanda a consultoria econômica Schwartsman & Associados. Formou-se em administração pela Fundação Getulio Vargas, fez mestrado em economia na Universidade de São Paulo e doutorado em economia na Universidade da Califórnia em Berkeley.

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