No país da matemágica

Os Defensores dos Gastos ignoram evidências que eles mesmo levantaram para atingir conclusões em completo desacordo com os dados
Por  Alexandre Schwartsman -
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Importante: os comentários e opiniões contidos neste texto são responsabilidade do autor e não necessariamente refletem a opinião do InfoMoney ou de seus controladores

O último artigo dos Defensores dos Gastos não poupa os autoelogios. Começa afirmando que:

“Nosso artigo ‘Por que cortar gastos não é a solução para o Brasil ter crescimento vigoroso?’ publicado no dia 14 de setembro na Folha de São Paulo, teve grande repercussão ao contrapor as ideias defendidas em artigo anterior.”

Apenas omitem que a repercussão se deve à duvidosa honra de terem sido brindados pela Folha com um Erramos, provavelmente o primeiro na longa história do jornal a ser atribuído um artigo de opinião.

Meus leitores sabem o porquê: como notado na minha primeira coluna a respeito, os autores confundiram a emissão líquida de títulos (conta que inclui, entre outras, a capitalização de bancos públicos e aquisição de reservas internacionais) com o superávit primário.

Concluíram, assim, erroneamente que este último não teria colaborado para a redução da dívida pública no período 2007-13, e que os déficits primários registrados entre 2014 e 2018 não teriam elevado a dívida pública.

Confundiram também o crescimento nominal do PIB (que inclui a inflação) com o crescimento real do PIB, algo que se espera não acontecer depois do curso de Introdução à Economia. Superestimaram desta forma o impacto do crescimento no comportamento da relação dívida-PIB, como pude mostrar na segunda coluna a respeito.

Ao contrário do que acreditavam, o impacto do crescimento foi menos decisivo para o comportamento da relação dívida-PIB do que o saldo primário, tanto no período em que esta caía, como no período de forte elevação, a partir de 2013.

Há algum reconhecimento dos seus erros na nova tentativa? Nenhum de forma explícita. Os assuntos foram convenientemente varridos para baixo do tapete, o que por si só já revela a vergonha sofrida.

É também na surdina que parecem ter encaixado o papel do saldo primário na dinâmica da dívida. Afinal, agora querem discutir a causa da piora dos resultados primários, insistindo na lorota que a queda da receita foi o principal fator, não o aumento persistente da despesa federal.

Curiosamente apresentam como evidência sua decomposição do resultado primário que mostra que os gastos contribuíram em média 0,72% por ano para a redução do superávit primário entre 2007 e 2013, quase totalmente compensado pelo aumento de receitas, 0,69% do PIB por ano. Já entre 2013 e 2018 suas próprias estimativas revelam que os gastos seguiram pressionado o resultado primário, 0,33% do PIB por ano, enquanto a queda das receitas contribuiu 0,30% do PIB por ano para a redução do superávit.

Como, até prova em contrário, 0,33 é maior do que 0,30, deve ficar claro que, sim, o aumento das despesas teve impacto maior sobre o resultado primário do que a queda das receitas, notando que o teto de gastos, criticado pelos Defensores, é o responsável pela menor (embora ainda positiva) contribuição do dispêndio. Apesar disto reafirmam que:

“O suposto (sic) crescimento acelerado dos gastos públicos não explica a evolução da dívida”.

Eu já achava esta afirmação esquisita à luz das evidências levantadas por outros, mas, ao contrariar a evidência que os próprios autores levantaram, a declaração atinge patamares inéditos de bizarrice.

Apesar disto, os argumentos esdrúxulos não cessam por aqui. Os autores invocam artigo também publicado no sítio da Folha por João Romero, para quem o déficit primário não existiria se a receita do governo federal tivesse mantido a tendência registrada no período anterior.

Eu, para ser sincero, apresentei argumento semelhante à Confederação Brasileira de Basquete, notando que, se eu tivesse crescido entre os 14 e 18 anos ao mesmo ritmo que cresci dos 11 aos 14, faria jus à vaga de pivô titular em qualquer seleção brasileira de 1981 até pelo menos 2003. Fui injustamente ignorado…

O tal “argumento” nada mais é do que uma extrapolação linear, procedimento contra o qual também somos alertados nos primeiros cursos de Econometria, e neste caso não é difícil entender o motivo.

Caso a receita e o PIB tivessem mantido suas “tendências” a partir de 2014, a carga tributária brasileira – hoje na casa de 35% do PIB – já teria superado 37,5% do PIB; em 2029, ultrapassaria 41% do PIB, provavelmente sufocando de vez o setor privado, mas conseguindo um lugar na seleção brasileira de basquete.

Insatisfeitos com a realidade, que teima em impor limites à tributação, afirmam que:

“A elevação dos gastos pode ser feita de forma a manter o orçamento equilibrado e ainda assim ter efeitos positivos sobre a economia.”

Aqui o pensamento mágico atinge o ápice, expresso na noção que o aumento de gastos poderia elevar a receita em montante ainda maior com base no “efeito multiplicador”, ignorando que o “moto-contínuo” tributário, mesmo nas condições mais favoráveis, só funcionaria se a alíquota marginal de imposto superasse 100%. Ou seja, que, dada a estrutura tributária, para cada R$ 1 de elevação de renda, o governo arrecadasse quantia maior (os cálculos estão à disposição para quem se interessar).

Em suma, a maior contribuição do artigo é a envergonhada confissão tácita acerca da importância do resultado primário para a evolução do endividamento. De resto, vale pelo passeio divertido pelo país da matemágica.

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Alexandre Schwartsman Alexandre Schwartsman foi diretor de assuntos internacionais do Banco Central e economista-chefe dos bancos ABN Amro e Santander. Hoje, comanda a consultoria econômica Schwartsman & Associados. Formou-se em administração pela Fundação Getulio Vargas, fez mestrado em economia na Universidade de São Paulo e doutorado em economia na Universidade da Califórnia em Berkeley.

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