No escuro

A saída da Ford do país foi lamentada. Não se sabe, porém, se a manutenção de sua presença do país seria positiva ou não. Nossa verdadeira ojeriza à avaliação de políticas públicas é um obstáculo permanente ao uso eficiente de recursos.
Por  Alexandre Schwartsman -
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Mais uma vez meu bloqueio semanal foi quebrado graças a uma notícia fresca: o anúncio da Ford acerca da sua decisão de cessar a produção de seus veículos no Brasil.

Digo desde já que não sei a explicação exata para a medida, mas, dado que empresas raramente estão no negócio de rasgar dinheiro, me parece óbvio que – qualquer que seja a razão precisa por detrás dela – deve refletir suas preocupações quanto à lucratividade privada esperada.

Algumas coisas, contudo, me chamaram a atenção sobre o anúncio.

Uma delas, o tom geral de lamento. Outra, as certezas de alguns sobre os motivos: o reposicionamento global da empresa, a proteção insuficiente ao mercado doméstico, a carga tributária elevada, as leis trabalhistas, a perda de competitividade, o excesso de subsídios, a falta de subsídios (por exemplo, o incorrigível Nelson Barbooosa, que lamenta o fim do Inovar-Auto) e, não tenho dúvida, alguém ainda irá acrescentar que o dólar a “apenas” R$ 5,50 inviabiliza a produção doméstica de bens de alta complexidade tecnológica, já que a “taxa de câmbio de equilíbrio industrial” deveria ser R$ 7,15/US$ 1 (sempre 30% acima de onde está no momento da afirmação).

Por outro lado, ninguém parece se perguntar se a presença da Ford valia a pena para o país.

Sob certas condições é possível provar que uma decisão ótima do ponto de vista da empresa, dado o sistema de preços, costuma também ser ótima para a economia como um todo (atenção: “ótimo” nesse contexto não significa “bom”, significa “o melhor possível”, um conceito comparativo, não absoluto).

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É bem verdade que nem sempre as “certas condições” que amparam essa afirmação se verificam.

É possível, por exemplo, que a presença da Ford no país tenha implicações para a economia como um todo que não se refletem na lucratividade esperada da empresa (em economês castiço, pode haver “externalidades” positivas não capturadas pela decisão privada), talvez ganhos relacionados ao desenvolvimento tecnológico em outros setores, ou aprofundamento do mercado de trabalho que gere incentivos à educação de trabalhadores, beneficiando os demais segmentos.

Caso isso seja verdade, seria justificada a concessão de subsídios para a manutenção da empresa em território nacional e deveríamos lamentar mesmo a saída da empresa do país.

Isso dito, muitas coisas são possíveis; já serem verdadeiras é uma história completamente distinta (Res est res; quod aliud est aliquid aliud* , como dizia o grande filósofo e comentarista de futebol, Juarez Soares).

Não houve, não há e, dado nosso histórico impecável na área, jamais haverá qualquer estudo sério que indique a existência de “externalidades” justificando a tomada de medidas para manter uma empresa que decida encerrar suas atividades no país.

Normalmente, o máximo a que se chega em termos de justificativa é a criação (ou, no caso a destruição) de “X mil empregos”, número que, diga-se de passagem, costuma ser inflado para além de qualquer limite razoável.

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Mesmo, porém, que tais estimativas “otimistas” de emprego fossem verdadeiras, nunca as vemos serem confrontadas com estimativas de emprego que resultariam de outras decisões acerca do uso do dinheiro público.

Concretamente, como regra, se alguém afirma que o uso de tantos milhões gerará X mil empregos, podemos ter certeza que jamais houve um cálculo estimando quanto Y mil empregos (onde Y>X) poderiam ser criados com os mesmos recursos.

Essa conta, conhecida também em economês como “custo de oportunidade” (o efeito do uso do recurso para fins alternativos àquele sendo avaliado), deveria ser obrigatória da distribuição de recursos públicos; no Brasil, o obrigatório é ignorá-la a qualquer custo (sem trocadilho).

Parece haver verdadeira alergia à avaliação de políticas públicas no país. Não é por outro motivo que – a bem da verdade – não sabemos se a saída da Ford é positiva ou negativa para o Brasil, assim como não sabemos se os bilhões enterrados em outras empresas do setor fazem sentido, como também desconhecemos os efeitos das renúncias tributárias, da proteção comercial, dos créditos subsidiados do BNDES, das políticas industriais, etc.

De tempos em tempos, uma quebradeira em massa (por exemplo, a indústria naval em sua segunda tentativa de ressurreição) sugere que os efeitos são negativos, mas a triste verdade é que permanecemos no escuro a maior parte do tempo e os breves relâmpagos que iluminam a noite revelam que os sorvedouros de recursos públicos entregam muito pouco em retorno para a sociedade, com honrosas e, infelizmente raras, exceções.

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* Uma coisa é uma coisa; outra coisa é outra coisa

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Alexandre Schwartsman Alexandre Schwartsman foi diretor de assuntos internacionais do Banco Central e economista-chefe dos bancos ABN Amro e Santander. Hoje, comanda a consultoria econômica Schwartsman & Associados. Formou-se em administração pela Fundação Getulio Vargas, fez mestrado em economia na Universidade de São Paulo e doutorado em economia na Universidade da Califórnia em Berkeley.

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